domingo, 18 de outubro de 2009

Artigo publicado - DP, dom, 18 out. 2009

COMPREENDENDO EVO MORALES

Clóvis Cavalcanti

Economista e pesquisador social

Coisa difícil da vida moderna é aceitar o diferente. Nós brasileiros habitamos um mundo de cunho ocidental, cristão, antropocêntrico (ou que supervaloriza a espécie humana), machista, dominado pelo dinheiro, guiado pela famigerada Lei de Gerson. Pensamos que a humanidade inteira nutra os mesmos valores ou que deveria comportar-se assim. A cultura dominante na América Latina reflete isso também. Com percepção análoga, nos anos 90, os Estados Unidos dirigiram sua guerra contra o narcotráfico nas zonas de cultivo da folha de coca da Bolívia. O governo boliviano da época cooperou na erradicação dos cultivos, destruindo o sustento dos povos indígenas que sempre os praticaram. Como resposta à agressão sofrida (para os indígenas bolivianos, a coca não é usada como droga), os cultivadores da erva formaram poderoso sindicato. O líder que os conduziu foi um índio aymara, Evo Morales, homem decido, de idéias socialistas e que, em 2005, lançou histórica e bem-sucedida campanha presidencial. Evo Morales governa o país sem esconder ou modificar o que pensa, nem fazer alianças espúrias justificadas pela “governabilidade”. Na verdade, pensa de maneira muito distinta do paradigma economicista, produtivista, excludente do outro que nos caracteriza. Vi-o oferecendo de maneira muito nítida essa visão de mundo em reunião recente de que participei em Cochabamba (Bolívia), a V Conferência Latino-Americana e Caribenha de Ciências Sociais (a primeira conferência da série foi uma idéia minha aprovada pela Fundação Joaquim Nabuco, que a encampou e realizou em 1999 no Recife). O presidente da Bolívia fez o discurso de abertura do evento no dia 7 deste mês.

Com muita pertinência, Evo Morales referiu-se à “descoberta” da América como uma invasão – que, de fato, foi. Aprendemos na escola que o continente foi descoberto pelos ibéricos, mas essa é uma versão ridícula. Os ancestrais de Morales (que, apesar do nome, não tem nenhuma gota de sangue europeu) viviam aqui há uma dezena de milênios ou mais quando os espanhóis chegaram, empregando métodos pérfidos de conquista. É óbvio que os povos conquistados pensem muito diversamente dos europeus conquistadores e vejam o episódio da conquista com olhos de oprimidos. Outro ponto abordado por Morales foi o de que, quando menino, presenciou muitas situações de reivindicação de direitos dos nativos tratadas pelas elites opressoras como manifestações políticas inaceitáveis. Diziam as elites: “A política de vocês é a enxada e a foice”. E quando os campesinos insistiam em seus pleitos, eram reprimidos sob a acusação de “comunistas” e “socialistas” (nada diferente de situações vividas aqui entre nós). Como poderia alguém fiel a suas origens aceitar pechas que denegriam a história de povos dignos? Foi assim que os Estados Unidos terminaram prestando grande colaboração para o fortalecimento do nome de Evo Morales.

Querer diminuí-lo com a referência de “cocalero” que se faz a Morales, comumente, no Brasil e no mundo, é uma ofensa que, se revela ignorância de quem fala, indica também o grau de preconceito com que se vê o diferente. O termo cocalero caracterizava originalmente o cultivador de coca, mas se converteu em apodo depreciativo que sugere envolvimento com o tráfico de drogas. Os indígenas da região andina nada têm a ver com o vício de elites drogadas do Brasil, dos EUA, da Europa. Eles usam a coca para mascar e fazer chás, não como pó para cheirar. Na minha viagem recente à Bolívia tomei chá de coca, o qual, inclusive, ajuda a suportar as altitudes dos Andes (em Cochabamba, não é fácil respirar o ar mais rarefeito e seco dos 2.600 m de altitude do lugar). Evo Morales veio para ficar. Ele inclusive afirma ser mais importante defender a Terra (“la Madre Tierra”) que os direitos humanos. Essa fala não é antropocêntrica.

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