domingo, 21 de março de 2010

artigo publicado DP, dom, 21.3.2010

JOAQUIM NABUCO, GILBERTO FREYRE E A FUNDAÇÃO NABUCO

Clóvis Cavalcanti

Economista ecológico e pesquisador social

Comemora-se em 2010 o centenário da morte de Joaquim Nabuco. Muitos eventos dão substância às comemorações. Joaquim Nabuco, de fato, como reformador social, escritor e homem de idéias, possui projeção que justifica o que se faz a seu respeito. Porém, tudo isso estaria numa situação de menos evidência, não fosse o empenho de Gilberto Freyre (1900-1987) em 1948 para que, em 1949, quando Nabuco faria 100 anos, se desse ao pernambucano o mesmo relevo que então recebia Rui Barbosa, cujo centenário também ocorreu em 1949. Em discursos na Câmara de Deputados, para a qual fora eleito em 1946, Gilberto Freyre chamou a atenção para as diversas dimensões de Nabuco. Nesse marco, propôs a criação do Instituto Joaquim Nabuco como instituição de pesquisa voltada para a realidade social do Nordeste. A primeira atividade do Instituto foi exatamente uma pesquisa, em 1951, sobre as condições de habitação no norte do Brasil. Estudo levado a cabo pelo sociólogo americano Olen Leonard, com patrocínio da ONU, a pedido do governo brasileiro.

A preocupação com condições de vida em geral e com as das populações excluídas do Nordeste, em particular, motivara ações de Gilberto Freyre desde a década de 1930. Em 1935, ele e seus companheiros de reflexões Sylvio Rabello, Olívio Montenegro e Ulysses Pernambucano entraram num conflito que se criara entre o deputado estadual padre Gonzaga Lyra e o Sindicato dos Usineiros de Pernambuco. O político pedia que se pusesse cobro a diversas formas de injustiça que afligiam os trabalhadores rurais da atividade canavieira em Pernambucano. Os industriais do açúcar defendiam-se dizendo que faziam muito por sua força de trabalho, prestando-lhe assistência social, etc. Freyre e companheiros, em manifesto, levantaram dúvidas com respeito ao que os usineiros diziam, oferecendo-se para esclarecer a realidade através de inquérito que propunham realizar. Essa atitude repercutiu de maneira desastrada entre os proprietários dos canaviais, sendo rechaçada com fúria – havendo Ulysses Pernambucano sido chamado de “soviete”. Gilberto Freyre fora o autor do manifesto. Sua argumentação estava ancorada em estudos que antes publicara. Encontra-se aí o ponto de partida de “uma vertente do projeto cultural mais amplo que, no seu conjunto, forneceu as linhas mestras da ideação do Instituto Joaquim Nabuco, em termos de sua pré-história”, nas palavras de Joselice Jucá (1943-1996), autora de uma história da instituição. Essas mesmas linhas mestras estão nos fundamentos da Fundação Joaquim Nabuco (FJN).

Por isso, quando tanto se exalta Nabuco, soa estranho que a instituição que consagra seu nome pareça cada vez menos a instituição de pesquisa social de que o norte do Brasil continua a necessitar (pois os problemas que preocupavam Freyre na década de 1930 teimam em não ceder, e até em se multiplicar). Na instituição, já houve oito departamentos (cobrindo diversas áreas da problemática) fazendo pesquisa social. Hoje são quatro, sendo que um quinto sofreu diminuição de status em época recente. Curiosamente, um departamento voltado para questões de ciência e tecnologia. A Fundação Nabuco pertence ao Ministério de Educação, mas seus funcionários são da carreira de ciência e tecnologia. Nada disso impede que o setor que mais se expanda na organização seja o de atividades culturais. Nada contra essa tendência. Só que ela caberia numa repartição do Ministério da Cultura. Quem executa atividades de ciência e tecnologia são pesquisadores científicos, tais como os que Freyre, inspirado em Nabuco, imaginara para o instituto que criou em 1949. Querer homenagear o patrono da FJN atribuindo menor papel à pesquisa nem faz jus à proposta original de Freyre nem ao sentido de combate às injustiças sociais de Nabuco.

domingo, 7 de março de 2010

Artigo publicado DP, 7 mar 2010

SUAPE, TAMARINEIRA E OUTRAS DESGRAÇAS
Clóvis Cavalcanti
Economista e pesquisador social

A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2010 adotou tema de enorme significado: “Economia e Vida”. E tem como lema um ensinamento básico de Jesus: “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24c). Na versão completa da Bíblia de Jerusalém, o que Mateus (6, 24) escreveu foi: “Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro”. É óbvio o sentido do ensinamento. Existe hoje um conflito entre o interesse econômico predominante (o dinheiro) e todas as manifestações do plano da vida (a ecologia, as inúmeras espécies, a humana). Nessa peleja, o dinheiro é sempre vencedor. A sociedade se deixou magnetizar pelo crescimento econômico a todo custo (expresso em maiores valores monetários do PIB). No Nordeste, vastas áreas de manguezais foram destruídas para a construção irregular de viveiros de camarão. Depois de muitas denúncias de pescadores, ambientalistas e pesquisadores, inclusive da Fundação Joaquim Nabuco, esses viveiros continuaram funcionando e, mais grave, muitos outros foram construídos de forma irregular. O que se observa é deplorável ilustração de um desenvolvimento desordenado, de efeitos destrutivos sérios (muitos deles humanos) inteiramente ignorados. Ao mesmo tempo, apenas as virtudes dos projetos são decantadas e louvadas de todas as maneiras, até mesmo, ou sobretudo, em propaganda oficial.
Exemplo da vitória lastimável do dinheiro é o desfecho atual do caso da bela área do hospital da Tamarineira, no Recife. O espaço seria motivo de orgulho para qualquer lugar civilizado do planeta – como Tóquio, que consegue ser a maior cidade do mundo com impressionante patrimônio verde. Aqui, não. Com a Igreja à frente – quem? Dom José Cardoso, de triste memória; dom Fernando Saburido, de boas expectativas? Não interessa –, entrega-se facilmente o sítio admirável para sua transformação em lamentável (até no nome) shopping center. Não conheço ninguém a favor dessa doidice (deve haver). Diz-se que vão preservar 70% da área. Nossa tradição não condiz com o cumprimento da promessa. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu no parque Memorial Arcoverde, em Olinda, com o beneplácito do governo estadual, socialista, e da prefeitura do município, “comunista do Brasil”. Ali passou um divertimento de ricaços e novos ricos – o Cirque du Soleil – durante 25 dias. Acabou em agosto de 2009. No rescaldo, ficou uma destruição permanente para qualquer turista que queira ver. Absurdo maior, desgraça maior não se pode conceber para área urbana destinada ao uso lúdico da população. Prometeram que ela seria recuperada.
A situação é ainda mais aterradora no Complexo de Suape. Longe de nossas vistas, avança uma destruição inominável da natureza e de comunidades de pessoas que ali viviam há séculos. No momento, por exemplo, decretou-se a morte de um rio, o Tatuoca, represado por necessidades do senhor dinheiro. Ao mesmo tempo, draga-se o leito do que era a continuação do mesmo rio, para facilitar a vida do estaleiro em construção no local. Local desabitado? Não, absolutamente não. Aí, e em toda a ilha de Tatuoca, como, de resto, na paisagem completa de Suape, registra-se um processo que é a negação de um desenvolvimento que traga benefícios para comunidades humildes, vítimas das alterações no ambiente promovidas por empreendimentos que sacrificam meios de vida, estes sim, sustentáveis. Tudo feito sem consultas prévias à população – destruição da vida –, em troca de ganhos monetários para investidores que representam o senhor dinheiro. Segundo a Bíblia, a ser odiado. É evidente que, em Suape, ama-se o dinheiro e odeia-se a vida. Dom Fernando, ame a vida!