Artigos




Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 20.12.2017
Felicidade e Economia
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Em qualquer língua de país do Ocidente, nesta época do ano, ouve-se e escreve-se continuamente “Feliz Natal!”. O que se quer dizer com isso? Que se formulam votos de felicidade às pessoas próximas – claro! Ninguém diz “Vamos fazer o PIB crescer mais e mais”, sequer na virada do ano. Porque, na verdade, o que todos nós queremos e desejamos às pessoas queridas é ser felizes. Uma economia pujante pode ser buscada; nunca, contudo como um fim em si mesmo. Nosso objetivo último é sermos felizes. Para isso, precisamos de coisas que a atividade econômica produz – mas não a quantidade enorme de bugigangas que somos induzidos a comprar e que jamais compraríamos se a decisão fosse completamente soberana, sem o apelo intenso de uma publicidade lamentável.
Ser feliz é o propósito derradeiro de todos nós, mesmo que não o expressemos declaradamente. São Tomás de Aquino (1225-1274) fala disso, usando o termo summum bonum (bem supremo). Aristóteles (384 aC-322 aC), antes dele, aludia à eudaimonia. Na encíclica Laudato Si’, de 2015, o Papa Francisco lembra a questão. Entre os hindus, a palavra é nirvana; entre o zen-budistas, sartori; no budismo, iluminação. Ou seja, o que todas as pessoas visam essencialmente é desfrutar da existência da melhor forma possível ou, usando uma expressão do filósofo britânico A. N. Whitehead (1861-1947), “promover a arte da vida”. Isso não é, seguramente, o que fazem as pessoas quando se preocupam no Natal, antes de tudo, com comprar, comprar, comprar – uma enfermidade social que se exacerba cada vez mais e que, agora, é precedida de uma idiotice importada dos EUA, a “Black Friday”. Na minha casa, há tempos, que presentes de Natal foram abolidos. Amigo secreto para mim não faz sentido. Mais importante é falar coisas boas, escrever um poema, fazer uma cantata natalina, tirar foto, abraçar.
Na Laudato Si’ critica-se, com toda razão, a “cultura do descarte”, com seu conteúdo de consumir e jogar fora de modo cada vez mais veloz um bem adquirido. Segundo o documento, o ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões. Isso é demonstrado pela ciência, haja vista que a ferramenta da “pegada ecológica”, que calcula a dimensão do impacto dos seres humanos sobre a natureza, já excede em 70% o fluxo de bens e serviços que o planeta pode oferecer em um ano. Quer dizer, consumimos hoje 70% mais do que legitimamente podemos. Esse valor era de 50% em 2012 e de 5% em 1972.

Para consumir, é preciso produzir. E produção de qualquer coisa exige recursos da única fonte que os pode fornecer – a natureza. Extrair recursos, por sua vez, é como cavar buracos, alguns dos quais não param de crescer e são eternos. Depois do consumo, os bens viram energia e matéria degradadas, as quais são inexoravelmente lançadas de volta ao meio ambiente. Fazer isso é como amontoar sujeira – sujeira essa que é eterna e não pára de crescer em muitos casos. O buraco cavado e o monte de porcaria representam o custo ambiental da atividade humana, ignorado no modelo econômico do crescimento a todo custo, que governa o mundo. Coletividades humanas, e outras coletividades de seres vivos sofrem com isso. Daí por que perseguir o aumento contínuo do PIB termina constituindo uma insanidade. Tem-se que perguntar antes que pegada ecológica o planeta é capaz de suportar. Certamente, uma em que seu valor esteja abaixo do da capacidade biofísica do ecossistema terrestre. Sem contar que muitas atividades econômicas causam desgraças humanas inaceitáveis, como no caso de projetos tipo Belo Monte, do agronegócio que esgota aqüíferos na região do São Francisco, de inversões como a de Suape, de projetos de mineração como os do desastre de Mariana. Assim, desejar felicidades nesta época do ano significa tomar o partido do bem-estar humano, que é o que se deve promover, sem agressões socioambientais. Pensando em filhos e netos, queremos que eles possam desfrutar de um mundo gostoso, sem as desgraças ecológicas, sociais e culturais de hoje. Feliz Natal mesmo!

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 4.12.2017
“Sustentabilidade”
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Recebi do Diario, no último dia 28 de novembro, o “Grande Prêmio Orgulho de Pernambuco no segmento Sustentabilidade”. Esse galardão, em gesto generoso, foi instituído pelo jornal. A escolha dos nomes contemplados nos seus diversos segmentos, como Lia de Itamaracá, “Cultura”, Maestro Forró, “Cidadania”, Carlos Augusto Lyra, “Arquitetura”, Camila Coutinho, “Moda”, André Ferraz, “Tecnologia e Inovação” – para citar apenas alguns – foi resultado de votação das pessoas que tiveram acesso ao site criado especificamente para isso. Havia quatro nomes em cada categoria. Concorri com Socorro Cantanhede (da importante ONG ambientalista Recapibaribe), Everaldo Feitosa (da empresa Eólica Tecnologia) e Frederico Vilaça (da Usina São José). Grande honra para mim ser escolhido diante de concorrentes tão respeitáveis. E, mais ainda, por ter tido como patrono, Vasconcelos Sobrinho (1908-1989), o maior nome da ecologia nordestina e meu amigo também. A cerimônia de entrega do laurel aconteceu diante de auditório dos mais ilustres. Enfim o prêmio e sua entrega seguiram um padrão que as tradições pernambucanas sabem ensejar.
            Provavelmente, uma parte boa do público que tomou conhecimento da premiação não tenha noção mais precisa do termo sustentabilidade, segmento a que meu nome foi associado. Essa palavra entrou no léxico corrente das discussões sobre desenvolvimento exatamente há 30 anos, quando a ONU lançou importante estudo denominado Nosso Futuro Comum, fruto do trabalho de uma comissão de notáveis, chefiada pela primeira-ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland. O estudo introduziu o conceito de “desenvolvimento sustentável” como aquele processo em que se usam recursos da natureza para satisfação das necessidades das gerações atuais sem comprometimento das possibilidades de satisfação das necessidades das gerações futuras. Tenho estado muito envolvido com esse assunto. Escrevi um dos capítulos do livro organizado pelo oceanógrafo americano Robert Costanza, publicado em 1991, com o título de Ecological Economics: The Science and Management of Sustainability (economia ecológica: a ciência e gestão da sustentabilidade). Todo meu trabalho desde a década de 1980 passou a ter compromisso com o importante conceito. Na verdade, só existe desenvolvimento que seja sustentável. Se for o contrário, insustentável, vai acabar. Ou seja, não é desenvolvimento algum. Trata-se de fraude, mentira, ilusão.
Ao receber o prêmio, subi ao palco na companhia de meu neto Cauê, de 9 anos, que pediu para ir comigo. Na ocasião, expliquei por que estava ali com ele: o prêmio remete às gerações futuras. E a questão toma corpo porque a realidade atual vai se mostrando cada vez mais insustentável. A mudança climática, por exemplo, está num avanço que faz a comunidade científica mundial avisar do perigo de um colapso ambiental de feições nunca imaginadas. Ao mesmo tempo, a inchação do sistema financeiro global, que é uma bolha, preocupa pelos riscos de estouro com violenta destruição de ilusórios patrimônios de papel. Na verdade, a economia financeira (virtual) do planeta está num patamar que a faz valer 16 vezes a economia real de produção e consumo de coisas. Do mesmo modo, índices de violência e corrupção atingem níveis absolutamente insustentáveis. Esses sinais todos podem ser mudados pela ação inteligente de populações e governos. Entra exatamente aqui o que significa buscar sustentabilidade.
No meu breve pronunciamento na premiação do Diario, mencionei que a busca de sustentabilidade é uma regra para tudo o que se faz: saúde, educação, habitação, indústria, agricultura, comércio, transportes, ciência, etc. Ou seja, é preciso pensar no impacto das ações humanas em termos da base de recursos que assegura sua realização. Os economistas ecológicos, entre os quais me incluo, usam o conceito de pegada ecológica – que mede o impacto de nossas ações –, comparando-o com o da biocapacidade, que é o potencial de uso dos sistemas naturais. Só podemos fazer coisas com uma pegada ecológica que não exceda a biocapacidade dos ecossistemas. Agir assim leva à conservação da natureza para o bem das gerações futuras. Sustentabilidade.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 16.9.2017
Reservas da natureza e exploração mineral
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Em 1972, numa conversa comigo depois de almoço em sua casa, Moura Cavalcanti (1925-1994), que seria governador de Pernambuco (1975-1979), me contou uma história incrível. Em 1961, jovem, foi nomeado pelo presidente Jânio Quadros, governador do Território Federal do Amapá. Escolha que ele não tinha cogitado. Aceitou, porém, o encargo. Na ocasião, o Amapá se destacava por uma única coisa – além do fato de ser a unidade federada mais isolada (e preservada) do Brasil –, a atividade de extração do minério do manganês, um ingrediente básico da siderurgia. Explorava esse recurso, a empresa chamada Icomi (Indústria e Comércio de Minério), controlada pelo então maior consumidor de manganês do mundo, a norte-americana Bethlehem Steel. Das receitas de exportação do produto estratégico, uma fração de 4-5% era devida por contrato como royalties para o tesouro do Território Federal.
Em agosto de 1961, Moura Cavalcanti recebeu denúncia de que havia subfaturamento – prática comum no mundo – nas informações sobre montantes do manganês exportado, resultando, portanto, em pagamentos inferiores aos que eram devidos ao Amapá. Como governador, resolveu ir pessoalmente à mina da Icomi, no lugar conhecido como Serra do Navio, a pouco menos de 200 km de Macapá, a capital, para fazer uma inspeção. Na época, tudo era muito simplificado, ainda mais em fronteira tão distante do país. Moura viajou num “jipão” só com o motorista e um ajudante de ordens. Chegando ao portão da Icomi, teve que parar devido a uma cancela fechada. O guarda de plantão explicou ao governador que não era permitida a entrada de ninguém ali, a não ser com autorização da empresa. Moura explicou que era o governador; não poderia ser barrado. Mas foi. Meio moleque, mandou o motorista recuar e investir com toda potência contra a cancela fechada. Isso foi feito, o portão derrubado. Ele pôde fazer a inspeção no escritório da empresa, onde foi atendido no que lhe interessava, percebendo irregularidades contábeis no tocante às exportações do minério. De volta a Macapá, já havia em seu gabinete recado do presidente Jânio pedindo que retornasse uma ligação por este feita (via rádio). Ao falar com Jânio (admirado com a rapidez com que o episódio chegara a Brasília), Moura contou ter recebido de saída uma reprimenda, sendo chamado de atrabiliário. Mas pôde explicar ao presidente o que acontecia. Jânio então lhe deu apoio. Só que, uma semana depois, renunciou e Moura Cavalcanti foi destituído do cargo. O subfaturamento prosseguiu.
Fiz o relato acima para evidenciar que o negócio da exploração mineral é algo que costuma usar artimanhas condenáveis a fim de lograr seus propósitos. E para questionar a decisão autocrática do governo federal, de 22/8/2017, de extinguir a Reserva Nacional do Cobre e seus associados (Renca), cobrindo uma área de 4,7 milhões de hectares dos estados do Amapá e Pará, em que se localizam nove áreas protegidas, inclusive a belíssima Serra de Tumucumaque, pouco conhecida dos brasileiros. É certo que o decreto, já modificado, não extingue tais áreas e adverte que a legislação de proteção ambiental terá que ser cumprida. Mas quem é que imagina que a mineração ocorrerá de forma benigna, deixando pouco rastro de destruição? Basta ver o terrível exemplo do maior desastre ambiental brasileiro, causado por uma mina de minério de ferro no município de Mariana (Minas Gerais), de propriedade da empresa Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela australiana BHP Billiton, em novembro de 2015. A devastação causada, além de matar seres humanos, significou a morte do portentoso Rio Doce e de todo o ecossistema ribeirinho da barragem que estourou até a foz do Doce, no Espírito Santo. Trata-se de uma tragédia de dimensão incalculável.

Quem ganha com a exploração mineral como a da Samarco? Quem perde com ela? A Icomi faturou com o manganês da Serra do Navio de 1957 a 1995, quando acabou o minério. Seus acionistas engordaram seu patrimônio. No lugar do manganês cavou-se um buraco eterno. Que ganharam de duradouro a sociedade amapaense e a sociedade brasileira com o prejuízo físico, ambiental, irreversível que foi causado a seu território? Essa realidade, a de Mariana e a de muitos outros casos no mundo inteiro impõem que não se aceite a canetada maldita da extinção da Renca. Moura Cavalcanti, com quem briguei em 1975 por causa de Suape, deveria ter algo a dizer agora. 

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 10.8.2017
Garanhuns, qualidade de vida e o FIG
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)


Como faço todos os anos desde 1997, fui a Garanhuns em julho passado para desfrutar da programação do seu 27º Festival de Inverno (conhecido pela sigla FIG). Mais um momento de alegria no encontro com as diversas manifestações da rica cultura nordestina. Estar na agradável cidade de Garanhuns já é motivo, por si só, de grande satisfação para quem aprecia as coisas simples da vida, o encontro com pessoas, as conversas na rua, em casa, nas lojas, na barbearia, nas mesas de bar. Poder desfrutar ainda de espetáculos de todo tipo que demonstram o compromisso que muitas pessoas têm com a promoção da arte de viver, acrescenta mais conteúdo à alegria do passeio. No Brasil, há muitos festivais de inverno. Já estive em alguns, como o de Campos do Jordão (SP), dos mais famosos. Nada, porém, me agrada mais do que o evento criado pelo prefeito Ivo Amaral, em 1991. De Ivo, aliás, sou contraparente (relação que descobri em conversa no nosso barbeiro comum de Garanhuns, Isaac).

Sem pagar para assistir a belos espetáculos de música popular, de folguedos folclóricos, de rodas de sanfona, de música erudita, de som instrumental, de teatro, de literatura, de cinema, de circo e muitas outras coisas, o participante do Festival tem muitos motivos para se alegrar. Garanhuns oferece bom cenário para a alegria. Tem comércio movimentado no centro aberto da cidade – sem as limitações e frieza dos modernos shopping centers, com seu isolamento do mundo ao redor. Infelizmente, a cidade vai no rumo de adoção desse modelo. E tem permitido que belas obras da arquitetura tradicional de lá sejam demolidas e substituídas por prédios sem beleza, sem a graça dos desenhos das fachadas antigas: imóveis elegantes e simbólicos de um bom gosto histórico dão lugar a construções medíocres, algumas sofrendo deformações imperdoáveis como ter fachadas graciosas substituídas por paredes cobertas de uma das mais lamentáveis invenções dos últimos tempos, como é o caso do “porcelanato”.

Em Garanhuns se oferta uma diversidade de serviços comerciais de impressionante qualidade. É de lá o melhor técnico de máquinas fotográficas que conheço – Geraldo. Igualmente, em Garanhuns, existe uma lojinha – na verdade, um boxe – de conserto de celulares, em frente do qual o volume de gente a sua procura já atesta a competência do trabalho que oferece. Comprovei isso, obtendo solução para um problema de meu aparelho. Meu barbeiro também, Isaac, é de lá. Já tive boas experiências com conserto de mecânica e pneus de carro em Garanhuns. Até uma loja de produtos naturais, na Rua XV de novembro, a Gamboa, dispõe de incrível variedade de produtos. Em Heliópolis, às quintas-feiras, perto da casa de minha sogra, uma feira livre faz a festa de quem está atrás de todo tipo de fruta, verdura, tubérculos, feijão, farinha, queijos, ovos e mesmo carne de várias espécies animais. Com preços sempre mais em conta do que na capital pernambucana.

Para mim, tudo isso só confirma uma coisa: a importância da qualidade de vida. No FIG, em particular, e na cidade de Garanhuns, de modo geral – uma cidade limpa, de bom calçamento, arborizada, com calçadas largas e inteiras, muita flor em toda parte –, é isso o que se experimenta. A atmosfera do ambiente produz sensações de bem-estar, o que não tem nada a ver com grandezas tipo PIB nem com crescimento acelerado da economia. É alegria de viver que se experimenta. Durante o 27º FIG, como aconteceu nos últimos quatro anos, essa alegria se multiplicou com a programação Saraus em Pasárgada, uma iniciativa da Funarte com a prefeitura de Garanhuns, que gira em torno de Manuel Bandeira, o grande poeta recifense, mas abarca todo o universo da poesia. Sob o comando de Marília Mendes, o programa envolveu gente jovem e talentosa da literatura de Garanhuns – César Monteiro, Celina Berto, Raiz Nunes, Débora Ramos –, ao longo de 6 dias, no ambiente apropriado de um café-livraria, o Casa Café, de Pedro Coelho. Foi uma vivência enriquecedora para o espírito, algo que o cálculo do PIB ignora. Qualidade de vida na sua melhor acepção.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 22/23.7.2017


Preço do atraso
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

A propósito de meu artigo nesta página do DP da edição de 8-9 de julho corrente,  Indecência política e desgraça social”, recebi comentários que muito me sensibilizaram. Um deles, do meu amigo e destacado botânico José Alves de Siqueira, professor da Univasf. Escreveu ele: “seu texto me inspirou na ocasião em que rodamos quase 1.000 km pra ver de perto a 40ª Romaria da Terra e das Águas, em Bom Jesus da Lapa, nas margens do combalido Rio São Francisco, no interior da Bahia [...] As histórias do agronegócio com seus pivôs de irrigação que sugam milhões de litros de água diariamente e já comprometeram 54% da água do Rio das Éguas, mais conhecido como Rio Corrente, num show de desperdício de água em terras griladas dos povos tradicionais.  O peixe que se come aqui é o tambaqui de criatório, algo semelhante a se comer galinha de granja nos sítios e engenhos da zona da mata pernambucana [...] Aproveitamos [...] para perambular pelas casas e sítios na zona rural de Santa Maria da Vitória pra conversar com o povo. Ainda se toma cachaça brejeira e café bem adoçado. Histórias de vida e de uma natureza farta no passado”
Esse relato autêntico e pungente retrata bem a realidade de um Brasil no qual o bem-estar humano é a última coisa que efetivamente preocupa a quem tem poder. Por que empresas do agronegócio podem tirar um recurso que pertence a todos, como a água, para gerar lucros fabulosos que tornam cada vez mais ricos e poderosos, grupos que não medem o mal que estão fazendo a populações simples e esquecidas da sociedade brasileira? Na verdade, o agronegócio é um setor da economia brasileira que só parece contribuir para a felicidade nacional. É assim, com efeito, que se exalta com enorme frequência a suposta contribuição que ele oferece para que a economia brasileira cresça. Sim, a grande agricultura comercial do país ajuda o PIB a crescer. Porém, faz isso a um tremendo custo ambiental e humano que é simplesmente ignorado. As empresas de porte considerável que atuam no segmento agropecuário brasileiro dizimam biodiversidade, desperdiçam água, expulsam populações campesinas, envenenam o meio ambiente. No entanto são exaltadas porque ajudam o PIB a crescer. Esse é um erro, inclusive econômico, pois a produção de bens e serviços gera receitas, por um lado, e despesas, por outro. A realidade do PIB, contudo, é a de só contabilizar ganhos. Celso Furtado (1920-2004) classifica-o de “vaca sagrada dos economistas”. Dos economistas e de todos os que adotam suas “verdades”.
O fato é que se dá importância demasiada ao aumento da economia, fazendo de conta que isso não causa dor, mal-estar, sofrimento. Escrevo de Belo Horizonte, da 69ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Aqui está sendo apresentado um livro, de grupo de trabalho da SBPC, liderado pela respeitada antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que segue rigorosos métodos e critérios da ciência, com o título A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte. O que ele tem em mira é expor histórias, reflexões e propostas com o objetivo de sensibilizar a sociedade e os poderes públicos de modo que se restituam aos ribeirinhos do Rio Xingu as condições de que desfrutavam antes da construção da Usina de Belo Monte – condições que eram de uma vida satisfatória, sem degradação ambiental, exatamente o oposto do que se vai proporcionar agora a populações que, durante séculos, nenhum mal causaram a ninguém. Seria aceitável dizer que isso seja o preço do progresso? Claro que não. Porque, simplesmente não se pode considerar progresso uma transformação que penaliza tanta gente, para que minorias privilegiadas acumulem mais privilégios, esbanjando opulência e destruindo formas de vida sustentáveis que preexistiam. Conforme assinala o historiador ambiental, meu amigo José Augusto de Pádua (professor da UFRJ), nos primórdios do século XIX já havia a percepção de que a destruição do meio ambiente natural não era o “preço do progresso”. José Bonifácio (1763–1838), em 1823, pelo contrário, taxava-a de “preço do atraso”. A destruição da Mata Atlântica, por exemplo, se pode considerar como fruto do atraso e da ignorância. Nossa sociedade não merece que a história se repita.


Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 8.7.2017

Indecência política e desgraça social
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Procuro conhecer lugares quando realizo minhas caminhadas matinais diárias. Antes, de 1973 a 2012, eram corridas de 10 km todos os dias, menos sábados. Meus percursos variavam. Dessa forma, eu entrava em bairros simples e até favelas, do mesmo modo que corria em bairros de renda alta, centros de cidade, estradas e até desertos (o Saara, em Timbuctu, no Mali, onde passei uma semana em 1986). Foi assim que conheci áreas de Luanda (Angola) em plena bagunça depois de duas décadas de guerra civil. Subi e desci ladeiras pronunciadas em Berkeley (Califórnia). Mas na Índia, era tanta gente na rua que não deu para correr. Passei a caminhar em 2012 por razões médicas. Em Olinda, onde moro, geralmente passo pelo bairro modesto de Amaro Branco, por ruazinhas estreitas, em algumas das quais carro não entra. Percorro também a favela do V-8, considerada zona perigosa. Nunca, graças a Deus, sofri qualquer ameaça. Em compensação, posso ver as condições reais em que vive parcela substancial de nossa população, coisa que não é constatada por quem corre apenas no Parque da Jaqueira, na praia de Boa Viagem, nas ruas de Casa Forte.
E o que eu testemunho é uma realidade de extremo abandono. Imundice monumental em toda parte. Alagamentos duradouros quando chove. Casas de grande precariedade. Gente se alimentando logo cedo de porcarias como refrigerantes (induzidos pela televisão e seus poderes de convencimento) e comidas embaladas em papel de alumínio, cujo conteúdo certamente mereceria severa reprovação caso houvesse vigilância rigorosa da saúde pública acerca de maus hábitos dietéticos da população. Os ambientes, quanto mais miseráveis, menos oferecem uma visão que agrade. Aliás, nesse ponto, tampouco se pode dizer que a arquitetura medíocre, vulgar e agressiva dos prédios que se erguem no Recife e Olinda proporcione qualquer visão que possa causar prazer visual. É o caso do monstrengo no antigo quartel de Casa Caiada, onde um shopping está sendo construído; caso ainda das novas torres da rua da Aurora, como as mais antigas do cais de Santa Rita. Entre esses pontos de contraste e celebração da feiura, as desigualdades de nossa sociedade se projetam. Os pobres e excluídos da V-8 e de Amaro Branco fazem parte da mesma população que permite enriquecimento ilícito desmedido dos que desviam dinheiro público, e dos que se encastelam em castas privilegiadas de servidores públicos que ganham como se fossem potentados de países árabes. Cada vez mais, fica-se sabendo de setores abastados que gozam férias de 2 meses ou mais por ano, que possuem auxílio moradia e de transporte, planos de saúde gratuitos e outras benesses como se isso fosse um direito divino.
O mal-estar que tudo isso causa se acentua quando se percebe que países verdadeiramente ricos como a Suécia, a Dinamarca, o Canadá – com mínimos índices de corrupção também – projetam algo muito mais decente e aceitável. As profissões privilegiadas no Brasil se resguardam atrás de reservas de mercado, tal como, por razões compreensíveis, ocorre com certas especialidades médicas, no caso das quais o interesse primordial não é elevar os ganhos de renda de seus praticantes, mas bloquear a invasão de charlatães e incompetentes. O Brasil passa por momentos de grande aflição. Não se tem esperança. Não se vê um raio de luz que sinalize o fim da escuridão a que estamos sendo levados. A sensação que se experimenta é a de que o país é uma miséria de concepção de projeto de nação, uma indecência política, uma desgraça social. Estamos promovendo aqui, de forma exacerbada, a tendência que o jovem e brilhante economista francês Thomas Piketty retrata com enorme precisão, à base de reunião fantástica de dados empíricos, única no mundo, em seu livro O Capital no Século XXI, de 2013. A obra, publicada quando o autor tinha 42 anos, com tradução brasileira impecável da economista Monica Baumgarten de Bolle, evidencia que a tendência de aumento da desigualdade de renda e patrimônio, no mundo, é mais acentuada do que a de igualdade. Diz Piketty: “a história da renda e da riqueza é sempre profundamente política, caótica e imprevisível”. A forma como essa história evolui, completa, “depende de como as diferentes sociedades encaram a desigualdade e que tipo de instituições e políticas públicas essas sociedades decidem adotar para remodelá-la e transformá-la”. Isso é tudo o que o Brasil não vem fazendo. Agravado pelo fato de que, pela análise de Piketty, a anulação da tendência à desigualdade requer investimentos em capital humano – “aumento do nível geral de educação e formação”. Ou seja, a convergência para a equalização impõe que se promova “a difusão do conhecimento”. Isso não é possível com gente vivendo em sua maioria nos extremos da exclusão – e quando elites parasitas, de todo tipo de rentistas, ao mesmo tempo, só fazem criar muros em torno de seu condomínio social, eletrificado e guardado por exércitos de seguranças e cúmplices.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 24.6.2017
“Devolvam meu São João”
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

Em toda minha vida, só passei o São João fora de Pernambuco quando estudava o curso secundário em Nova Friburgo (RJ) e ao fazer pós-graduação, primeiro, no Rio e, em seguida, nos Estados Unidos. Foram 10 festas “perdidas” em 75. Na minha primeira ausência, em 1952, no meu colégio, e na cidade onde ele ficava, celebrava-se Santo Antônio (no dia 12, a véspera); o São João era ignorado. As comidas não incluíam nada de milho, exceto mungunzá branco, chamado de “canjica”. Havia fogueira, batata doce nela assada, quentão, bolos. E também quadrilha; só que da versão brasileira autêntica, divertida, espontânea, não ensaiada, sem as tolices e exageros das estilizadas, sem concursos idiotas, sem coreografias estereotipadas. Longe daqui, eu sentia enorme falta das nossas coisas tradicionais – milho cozido e assado, canjica (a nossa), pamonha, pé-de-moleque, bolo de macaxeira, forró com sanfona, zabumba e triângulo.
Essa tradição foi incorporada de forma natural às comemorações de minha propriedade, no brejo de altitude de Gravatá, desde que a adquiri em 1976. Nos quatro primeiros anos, sequer tínhamos luz elétrica. Mas sanfoneiro, milho e o quentão que faço estavam aí presentes. A festa era para a vizinhança toda. Assim, desde 18h do dia 23 até o amanhecer do dia 24, a animação não parava, com gente dançando o tempo todo – normalmente, umas 80-100 pessoas. De 1980 em diante, com a luz elétrica, não mudou nada. Só que, a partir de 2005, o pessoal jovem e as mulheres começaram a escassear. Saíam do lugar para os mega-shows na cidade de Gravatá, badalados intensamente pelos meios de comunicação. A frequência ficou sendo muito mais de homens que vinham para beber e sair bêbados, alguns arrastados. Em 2011, depois que a festa acabou (aí, já antecipávamos o encerramento para as 2h da manhã), houve um assassinato dentro da propriedade. Dois homens aparentados se desentenderam, o que estava despencando devido ao quentão que tomara em excesso terminou assassinado e jogado no meu açude. Já não havia mais ninguém acordado por ali, exceto os dois. E o assassino saiu da cena do crime direto para a delegacia da polícia da cidade, a pé, onde comunicou o que havia feito – e foi preso.
Com isso, cessaram os meus festejos abertos. Ficou só uma comemoração em família e para as pessoas mais próximas do lugar. Convivendo de perto com a comunidade, percebo como é forte a ligação das pessoas com o que o São João tem de mais tradicional entre nós. Os jovens, porém, têm tomado outro rumo – e não por uma mudança cultural suave. É tudo vítima de apelos comerciais, que também os fazem aceitar trabalhar no cultivo de flores, abundante ali, com uso intenso de venenos, dos quais muitas consequências funestas têm decorrido (incluindo cinco suicídios por ingestão de agrotóxicos líquidos de pessoas de menos de 30 anos de idade em 2016).

No ano passado, na feira de Gravatá, encontrei uma moça (bonita) tocando forró com sanfona, sentada na beira da entrada de um supermercado. Era a antevéspera do São João. Som muito agradável, da tradição de Luiz Gonzaga, e a menina, simples, cheia de adereços atuais (piercings, tatuagens, a roupa). Fiquei na plateia. Logo, um senhor de uns 60 anos me procurou e pediu uma colaboração para a sanfoneira. Dei 20 reais. Era o pai dela, também sanfoneiro, da tradição visceral do Nordeste, chamado Biu Galego. Conversamos. Simpatizei com a menina. Só que, até aquela altura, o único dinheiro que havia entrado para ela foi o que eu tinha dado. Uma verdadeira praticante da boa música, gente da terra, telúrica, mas completamente marginalizada – algo pelo qual têm passado nossos artistas, do incomparável Gonzagão a Petrúcio Amorim. Ora, de repente, a gente sabe que “artistas” invasores com baixíssimas credenciais de cultura recebem cachês de centenas de milhares de reais para “animar” festejos juninos da região. É incrível a insensibilidade de quem contribui para essa desigualdade de tratamento sem nenhuma razão de ser. Por que a filha de Biu Galego vai permanecer ignorada e essas duplas goianas, paulistas cafonas não param de faturar massas absurdas de dinheiro? Como disse no DP, no fim de semana passado, meu amigo Leonardo Dantas: “Esses rapazes do Centro-Oeste chegam aqui fantasiados de caubói, com chapéu do Texas e querem mandar na festa da gente e ainda serem pagos com dinheiro público”. Isso não é evolução cultural, e sim imposição de valores, colonialismo. Não há como eu não me posicionar ao lado de Leonardo, de Ariano Suassuna, Alceu Valença (cujo filme A Luneta do Tempo é um belíssimo manifesto regionalista), Elba Ramalho, Renato Phaelante, Maciel Melo, Santana, Alcymar Monteiro; do apresentador Sérgio Gusmão, meu amigo, cujo discurso é exemplar no assunto aqui tratado. Meu universo de São João é o mesmo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Sivuca – uma herança de minha família, de minha educação, dos valores que o Nordeste encerra.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 10.6.2017
PIB e meio ambiente: hora de ler a encíclica Laudato Si’
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

                Recentemente, quando se soube que o PIB brasileiro tinha crescido 1% no primeiro trimestre de 2017 relativamente ao último de 2016, foram múltiplas as manifestações de regozijo. Teria terminado a recessão econômica dos dois últimos anos. Duas coisas podem ser pensadas a respeito desse fato. Primeiro, o ato de fé de todos que lidam com estatísticas macroeconômicas, acreditando que houve indiscutivelmente um aumento do PIB brasileiro no período indicado. Acontece que, na ciência, qualquer medição está sempre sujeita a erros. Daí a razão pela qual, na literatura científica, sempre se usam margens de erro e intervalos de confiança. É assim, aliás, que os resultados de sondagens eleitorais são divulgados. Por que então a certeza absoluta quando se trata de uma grandeza da economia, cujo cálculo – diga-se de passagem – é efetuado de maneira indireta, cheia de contorcionismos? A esse respeito, vale uma observação de Celso Furtado (1920-2004), em seu livro O Mito do Desenvolvimento Econômico, de 1974. A de que “a contabilidade nacional pode transformar-se num labirinto de espelhos, no qual um hábil ilusionista pode obter os efeitos mais deslumbrantes”. Isso, de fato, é o que, não raro, acontece. Furtado chama o PIB, ainda, de “vaca sagrada dos economistas”, por conter definições e arranjos mais ou menos arbitrários, entre os quais a exclusão no cálculo do produto dos impactos ou custos ambientais. E pergunta: “Por que ignorar na medição do PIB, o custo para a coletividade da destruição dos recursos naturais não-renováveis, e o dos solos e florestas (dificilmente renováveis)? Por que ignorar a poluição das águas e a destruição total dos peixes nos rios em que as usinas despejam seus resíduos?”
            A segunda coisa que pode ser pensada diz respeito à observação de que o PIB – abreviação do termo produto interno bruto, uma medida do nível da atividade da economia de um país, região, cidade, etc. – é só uma face do processo econômico. A face, digamos assim, brilhante. Ou face dos benefícios. Como não existe almoço grátis, onde estão os custos – a face sombria – de obtenção do PIB? Simplesmente, eles são omitidos. No entanto, para realizar o processo econômico, é preciso usar recursos, retirá-los de uma fonte. O que se faz aí, figuradamente, é cavar um buraco no sistema ecológico ou ecossistema, buraco que pode ser eterno e cada vez maior, como no caso dos recursos esgotáveis (petróleo, por exemplo). E como no caso dos recursos renováveis, caso sua extração se faça a ritmo superior ao da sua reposição. O processo econômico segue transformando recursos – ou riqueza verdadeira – em artefatos e serviços que proporcionam bem-estar (nem sempre, como quando um carro atropela gente) e que viram lixo em algum momento, além da poluição de todo tipo que causam. Nada que se consome vai existir eternamente. Alguns bens – como uma pirâmide – podem durar milênios, e acabar um dia. Raríssimos são esses. Dentro da normalidade, os bens se acabam inexoravelmente logo. Viram lixo. Alguns podem ser reciclados. A maioria não o é. Acumula-se, dessa forma, um monte de dejetos no fim do processo econômico. O monte pode ser eterno e crescente, como, sem dúvida, acontece com detritos, cinzas, energia degradada, certas sucatas (telas de computadores, celulares). Quer dizer, de um lado, no destino, um monte crescente; do outro, na origem, um buraco cada vez maior. É como sintetiza meu amigo paulista Hugo Penteado, economista ecológico e ex-economista chefe do Banco Santander no Brasil: as discussões sobre a economia não passam “de um teatro para não mudar uma vírgula sequer de um sistema econômico que nunca abandonou a pretensão de ser maior que a Terra, com cada vez mais vetores lineares (extrai-produz-consome-desperdiça-joga fora) diminuindo cada vez mais as chances de a vida continuar aqui”.
            Ladislau Dowbor, professor de economia da PUC de São Paulo, propôs uma questão interessante em 2009: como pode a destruição ambiental aumentar o PIB de uma nação? Ele mesmo respondeu a ela com a seguinte provocação: “simplesmente porque o PIB calcula o volume de atividades econômicas, e não se essas atividades são úteis ou nocivas”. E completou, afirmando: “na metodologia atual, a poluição aparece como sendo ótima para a economia, e o Ibama vai aparecer como o vilão que a impede de avançar”. Ora, tudo isso é muito insano. Um alerta para tal realidade foi feito na encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, em 5/6/2015. Hora de lê-la, ou relê-la.


Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 30.5.2017
Peçam perdão
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

                Willy Brandt (1913-1992), do Partido Socialista, foi um grande e respeitado político alemão. Prefeito de Berlim Ocidental, depois chanceler da antiga República Federal da Alemanha (RFA), de 1969 a 1974. Renunciou ao cargo de chefe do governo em virtude de um assessor próximo seu, Günter Guillaume, haver sido identificado como espião da polícia secreta da rival Alemanha Oriental (comunista). Brandt confessou que não sabia da condição de espia do auxiliar, mas, envergonhado, pediu desculpas pelo deslize involuntário e entregou o cargo. Não houve pressão para isso, nenhuma ameaça. Muito popular, tinha realizado esforços importantes para aproximar a RFA do Leste Europeu, trabalho que lhe proporcionou o Prêmio Nobel da Paz de 1971. Nada disso foi impedimento para que ele demonstrasse humildade, largasse sua liderança e pedisse perdão a seus concidadãos.
            Gestos assim faltam no Brasil. Multiplicam-se os casos da corrupção mais deslavada e ninguém dos apontados pelo desrespeito à ética vem a público reconhecer erros assustadores, penitenciar-se por possível incompetência ou fraqueza diante de fatos e situações, e pedir desculpas à sociedade. Errar é humano. Ninguém é infalível. Muitas vezes, por exemplo, usamos palavras grosseiras, ríspidas ou de voz alterada quando não gostamos de alguma coisa. É prova de sensibilidade, de delicadeza, formular um pedido de escusas em casos assim. Muito mais quando se trata de gestão do patrimônio público, quando se evidencia, como há meses, um conluio entre governo e poderosos da economia. Com o agravante de um quadro amplo de acertos entre empresários e políticos, que vai se evidenciando mais e mais, envolvendo valores que estão muito acima do que pode imaginar até o eleitor mais informado Não há sentido algum, por outro lado, em um robusto homem de negócios ir conversar com o presidente da República às 23h. Sem testemunhas. Sem uma gravação do encontro pela segurança presidencial.
Chico de Oliveira, grande sociólogo pernambucano e respeitado professor da USP, na Folha de São Paulo de 14/12/2003, já sugeria algo errado ao escrever por que estava se desligando do PT na ocasião. Disse: “Afasto-me porque não votei nas últimas eleições presidencial e proporcional no Partido dos Trabalhadores [...] para vê-lo governando com um programa que não foi apresentado aos eleitores. Nem o presidente nem muitos dos que estão nos ministérios nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e para o Senado da República pediram meu voto para conduzir [...] uma política de alianças descaracterizadora [...] um conjunto de políticas que fingem ser sociais quando são apenas funcionalização da pobreza”. Chico, que sempre se recusou a ocupar cargos, estava insatisfeito com o que chamava de “política de alianças descaracterizadora”. Na ocasião, ele não imaginava o grau de desvio que ocorreria daí por diante. Não quero demonizar ninguém. No entanto, a enorme proximidade do governo de empreiteiras, empresas do agronegócio, bancos – com a fartura de recursos do BNDES (cuja denominação fala em “desenvolvimento econômico e social”) – não poderia terminar bem. Essa realidade, que tem se revelado enormemente promíscua, criou uma conjuntura em que a economia fica emperrada e a população não sabe para onde vá. Pedir desculpas, ao invés de ficar inventando fábulas tolas, para esconder a promiscuidade, seria a primeira providência a ser feita.

Um dado interessante de minha experiência de vida foi o acesso ao presidente João Goulart que a diretoria da UNE (União Nacional dos Estudantes) tinha em 1963, quando fui membro do Conselho da entidade. Vinícius Caldeira Brant, o presidente (até julho de 1963), ligava para o Palácio do Catete altas horas; Goulart dizia “Pode vir”. O que ia falar um jovem estudante com a maior autoridade do país tão tarde da noite? Coisa que ele e a UNE achavam importantes. Não era para gravar nada. Pelo contrário, era para se fazer aliança de forças, para ajudar o governo no plano político. Parece incrível, hoje, uma história dessas. O próprio Vinícius, um mineiro que foi meu amigo e morreu jovem, as contou-me em conversas na época e tempos depois. A UNE não possuía receitas. Vivia sobriamente. Nunca foi pedir verbas ao governo. Como atuava de forma destemida pelas causas nacionalistas e de justiça social, virou alvo do ódio que estourou no golpe de 1964, havendo sua sede sido incendiada na noite de 31 de março daquele ano. Eu estava nas proximidades. Foi doloroso testemunhar um efetivo golpe militar. A redemocratização do país não deveria nunca levar à realidade podre que, com tristeza e dor, presenciamos agora. Que os culpados comecem pedindo perdão.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 13.5.2017
A esperança que resta
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

Nunca vejo televisão. No sábado, dia 6/5, atrás do jogo Náutico e Santa Cruz, surfava a minha (que é analógica!) quando caí acidentalmente na Globo News. Vi que o canal exibia um programa sobre o ex-governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro. Uma história de roubo e mentira sem tamanho, dentro da trajetória do político recheada de declarações próprias enaltecendo e assegurando sua probidade (como se ele fosse um Frei Damião ou Irmã Dulce). Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff aparecem no documentário como fiéis aliados do governador. Em comício da campanha de reeleição dele, em 2010, os dois são filmados em comício fazendo enormes elogios a Cabral. Já se sabe hoje, com certeza, porém, que a dimensão da desgraça do desvio de dinheiro público que aconteceu sob suas vistas ultrapassa qualquer nível de imaginação. É uma história que devemos todos, como muitas mais, à Operação Lava-Jato. De outra forma, na verdade, a impressão que o cidadão comum tem é de que a enorme prática de corrupção dos últimos tempos passaria incólume. E não é pouca coisa que se tem descoberto. As revelações que vêm a público oferecem um espetáculo de uso impróprio do dinheiro alheio que não figura nos cálculos de quem age sob o anteparo de princípios de decência e honestidade.
Vive-se hoje, no país, em consequência, uma situação de estado de choque. Todas as esperanças de progresso nacional, alimentadas depois do Plano Real, vão sendo substituídas pela vergonha, pelo sentimento de impotência diante do que aconteceu e, imagina-se, ainda possa estar acontecendo. A sociedade se questiona a respeito das escolhas que fez confiando em pessoas que mentiam de forma descomunal. Na campanha presidencial de 2014, por exemplo, desconstruiu-se a imagem da candidata Marina Silva com mentiras da pior categoria. E o que a ela se atribuía como maldades a ser postas em prática quando assumisse a presidência, o governo adotou em 2015 sem a menor cerimônia como remédio inevitável para conter o descalabro das finanças públicas. Mentia-se atribuindo os problemas do Brasil à crise internacional, não resolvida, que dura desde 2008, a mesma que foi considerada pelo então presidente Lula, nesciamente, como “marolinha”. Prometia-se o inalcançável, com apoio em propaganda edulcorada que oferecia o paraíso, omitindo completamente o grau de limitações a que o Brasil fora levado por anos de má gestão fiscal.
O grande mal-estar de agora, a sensação de vergonha diante da falsificação da verdade por nossos dirigentes, a tristeza em face do agravamento da pobreza e da falta de emprego, a decepção pela descoberta de safadezas cometidas por governantes que não souberam honrar a confiança neles depositada – tudo isso se agrava pela falta de perspectivas que se percebe à nossa frente. Atribui-se à recuperação da economia, a um melhor desempenho do PIB, ao crescimento econômico, que é o fetiche mais venerado do país, a capacidade de levar nossa sociedade a dias mais venturosos. Mas como, se houve tanta deterioração de valores, tanto desrespeito à verdade, tanto recurso aos meios mais condenáveis para enriquecimento pessoal?
O caso do governador Sérgio Cabral é chocante. Já na década de 1990, o ex-governador Marcelo Alencar, do Estado do Rio, questionava a exibição de riqueza que ele, então simples deputado estadual, fazia. Cabral usava de todo sortilégio para enganar Deus e o mundo. Foi bem sucedido. Lula e Dilma não tiveram o desconfiômetro que Marcelo Alencar possuía. E é aqui que nossa vergonha fica mais robustecida, pela evidência cada vez maior de uma realidade de corrupção que ultrapassa todo cálculo. Se os delatores da Odebrecht mentem, certamente não poderiam mentir todos simultaneamente contando as mesmas histórias, com os mesmos personagens, as mesmas quantias envolvidas. O certo é que o país afunda, causa tristeza e vergonha, e espanta porque não se consegue imaginar o futuro que nos espera.
A sorte, no meu entender, é que ainda existe no Brasil um país silencioso que trabalha: um país de vergonha, um país que cultiva valores de solidariedade, de decência, de honestidade, de compromisso com o bem comum, de cumprimento da palavra dada. Um país esquecido, mas que age para que se possa viver fraternalmente. É o Brasil Profundo das populações sertanejas, por exemplo. O Brasil de cuja alma tão bem falava Ariano Suassuna. Em 1926, dele tratou Gilberto Freyre, no poema “O outro Brasil que vem aí”, que assim começa: “Eu ouço as vozes/ eu vejo as cores/ eu sinto os passos/ de outro Brasil que vem aí/ mais tropical/ mais fraternal/ mais brasileiro.” O final do poema, que motivou artigo meu aqui no DP em 20/10/2002, tem este desfecho: “Eu ouço as vozes/ eu vejo as cores/ eu sinto os passos/ desse Brasil que vem aí.” É meu sentimento. Minha esperança.



Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 26.4.2017
Meu Deus, como me enganei!
Clóvis Cavalcanti

Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

No dia 10/11/2002, saiu aqui no DP um artigo meu, de opinião, intitulado “Agora, mãos à obra!” Eu falava sobre a vitória de Lula, dias antes, no segundo turno das eleições presidenciais. Dizia: “É para se pensar como será o Brasil sob o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Afinal, não é só alguém dos grupos subalternos de nossa sociedade que vai ascender à máxima instância do executivo nacional. Trata-se de um cidadão decente, ético, de passado respeitável em todos os sentidos. De alguém que, por exemplo, nunca teve uma empregada doméstica [...]. De alguém que não pôde freqüentar escola, que teve de trabalhar quando criança, que foi retirante do Nordeste, que sobreviveu sem pai, criado, junto com mais sete irmãos, por mãe corajosa e digna (como tantas neste país). Estamos diante de uma situação absolutamente nova, especialmente porque Lula tem noção de tudo isso, nunca se afastou de suas raízes, e sua trajetória política forjou-se nos embates sindicais para defesa dos direitos de uma categoria profissional. Discreto, Lula mantém fora do foco de atenções sua vida familiar, sua prática religiosa. No dia do primeiro turno das eleições deste ano, conta seu amigo Frei Betto, para comemorar os 57 anos de Lula, na casa do presidente eleito, apagou-se uma vela, cortou-se um bolo, rezaram-se o Pai Nosso e o Salmo 72 na versão de Frei Carlos Mesters (‘o bom governante escuta os pedidos dos pobres’). E foi tudo. O Brasil precisa de dirigentes assim, austeros, frugais, tanto na vida pessoal – para exemplo da Nação – quanto nas escolhas para a realização do programa de governo”.
Empolgado, eu falava mais: “Essa mensagem de luta, de severidade [...], de espírito titânico, representa requisito indispensável para que se enfrentem os problemas brasileiros atuais. Entretanto, Lula sozinho será incapaz de qualquer sucesso, se não contar com seguidores em seu modo de ser e de agir. As administrações petistas no Brasil [...] devem procurar emular o grande líder eleito para governar o Brasil a partir de 2003. É necessário que todos trabalhem 24 horas por dia, tal como também faz, a propósito, o atual vice-presidente da República, Marco Maciel, uma figura austera e frugal. Fala-se muito em ‘austeridade fiscal’, porque é preciso gastar dentro dos limites rigorosos das contas públicas. O Brasil, porém, precisa de um choque de austeridade em estilos de vida esbanjadores que adota. É conhecida a farra da corte brasiliense com suas mordomias, com a facilidade com que permite que seus integrantes viajem sem nenhum pudor para cima e para baixo do território nacional (e para fora dele). Um presidente austero e trabalhador tem que disciplinar o uso das receitas públicas, submetendo-as a freios que sirvam de paradigma para todos os níveis da administração pública”.
Eu comentava que, na versão clássica “do Estado do bem-estar, proposta pelo economista inglês William Beveridge (1879-1963), cumpre ao governo espantar os demônios da doença, das privações, da fome, da miséria, da falta de teto. Não se trata, portanto, de criar situações de parasitismo, luxo ou opulência. O Brasil necessita de avanços sociais nítidos assim. Não se pode admitir que a exclusão persista, sobretudo nos níveis indecentes que o País ostenta. O compromisso de Lula é claramente com o combate às carências identificadas por Beveridge, que não foi nenhum revolucionário. A assunção ao poder de alguém com sua formação deve servir para que se realize entre nós um choque de valores humanos, aproveitando o que a sociedade tem de bom (e eu estou certo de que o potencial para isso é grande). Algum antídoto para a miséria tem que se amparar em mecanismos redistributivos” cuja importância “será percebida quando ficar patente que a redistribuição da riqueza levará a menos insegurança, a menos crianças de rua, a menos sobressalto. Que é o que nós desejamos. Não se pode é tolerar a convivência do festim perdulário de uns poucos em face das enormes carências [...]. Lula aqui tem que fazer o que diz o Salmo 72 (ou será que é para jogá-lo fora?): ‘Que o rei faça justiça aos humildes do povo, salve os filhos do pobre’”.
Salientei: “Infelizmente, temos visto que o sofrimento das camadas despossuídas do País não comove os que alimentam crenças obsessivas no poder do mercado de resolvê-lo. Karl Polanyi (1886-1964), na Grande Transformação, já comentava o tipo de sociedade que se regula por esse ente, quando o certo seria a sociedade regular o mercado, submetê-lo ao interesse público. Esta percepção tem se manifestado no discurso de Lula, que não quer frustrar aqueles que lhe deram o voto consagrador. É certo que os limites da realidade impõem condicionantes duros [...]. Para evitar que a insensibilidade à maneira de Margaret Thatcher (1925-2013), Ronald Reagan (1911-2004) ou Augusto Pinochet (1915-2006) prevaleça, a proposta do diálogo das partes interessadas ou pacto social que Lula tem enfatizado como parâmetro de seu governo é algo que merece a maior atenção. A sociedade toda tem que ser mobilizada, inclusive como forma de capitalizar a enorme energia social que sinaliza agora o desejo de mudanças. Mãos à obra, portanto!” Meu Deus, como me enganei! Como fomos trapaceados!

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 22.4.2017
Suape, meio ambiente, população
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

No dia 5 de abril de 1975, o extinto semanário Jornal da Cidade, do Recife, estampou manchete de capa com os dizeres: “Cientistas lançam manifesto contra o Complexo de Suape”. Na verdade, quem o redigiu fui eu. Submeti-o depois à apreciação de um número de pessoas, das quais foram seus signatários, comigo, os professores Nelson Chaves, grande nome da nutrição, José Antonio Gonsalves de Mello, o maior historiador do período holandês no Brasil, João de Vasconcelos Sobrinho, um dos maiores ecólogos brasileiros, Renato Carneiro Campos, diretor do Departamento de Sociologia do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, todos falecidos, e Renato Duarte, professor de economia da UFPE e Roberto Martins, coordenador do Curso de Mestrado em Sociologia da UFPE. Naquele momento (antes da “abertura política”), a atmosfera era de risco para críticas ousadas. Precisava-se de coragem para contestações ao governo federal e aos estaduais, que se empenhavam em promover grandes empreendimentos. O Brasil tinha atravessado anos – que jamais se repetirão – de crescimento econômico miraculoso, com taxas da ordem de 10% a.a., e até maiores. Havia euforia em torno de grandes empreendimentos que alavancassem o PIB, sob a suposição de que se criaria emprego e acabaria com a miséria. Essa era a imagem que os autores do Projeto de Suape passavam. Só que tudo era feito – e continua sendo, na verdade – sem consulta à população e ignorando-se os custos sociais e ambientais das iniciativas. Eu me incomodava com essa omissão. Ao escrever o manifesto, eu propus que, com uma metodologia de ausculta à sociedade, se fizesse a avaliação de impactos ecológicos. Este último era assunto de que ninguém tratava então. Inexistia movimento ambientalista e era rala a consciência ecológica no país.
Foram fortes as reações ao manifesto. O governo de Pernambuco o rebateu com fúria afirmando que os autores do protesto “apenas encontraram bases emocionais e pressa na crítica, com total desconhecimento do assunto”. Assegurava: Suape “trará emprego, melhorará as condições de vida das populações do Estado e dará condições de aumentar a produtividade dos campos de Pernambuco e da região”, absorvendo “o excedente de população do meio rural” – coisas que, quatro décadas depois, são negadas pelos fatos. Conversa fiada. Quanto à crítica ecológica, a nota assegurava que não haveria perigo de poluição com o projeto. A razão: havia nele a previsão de uma central de tratamento de resíduos, que os autores do documento não enxergavam. Mais mentira. Dizia o governo haver também previsão de uma barreira de proteção ecológica, com reflorestamento, algo que só começou a ser realizado em 2011, quando Eduardo Campos nomeou Sérgio Xavier secretário de Meio Ambiente de Pernambuco – 39 anos depois. No tocante à falta de discussão da iniciativa, de consulta à sociedade, rebatia a nota: “As consultas se fizeram, pois a Assembléia Legislativa aprovou o projeto ... e os órgãos de classe e Clubes de Serviço debateram e deram seu apoio”. Sublinhava que “o Conselho Estadual de Cultura, sob a presidência do Mestre Gilberto Freyre, louvou o projeto por sua preocupação em preservar os sítios históricos e cuidar da defesa do meio ambiente”. Que essa preocupação não era prevista deduz-se do que escreveu em 2007 o secretário de Planejamento de Pernambuco de 1975, Luiz Otávio Cavalcanti: “O movimento que se opunha à construção de Suape colaborou, com suas opiniões, para que o governo adotasse medidas oportunas, voltadas ao controle ambiental”.
Passados 42 anos, o que se pode testemunhar em Suape é uma irreparável destruição ambiental, afetando o ecossistema marinho da região e acabando com a pesca, que era abundante ali. Ao mesmo tempo, o histórico de indignidades e violência cometidas contra comunidades que moravam na área ocupada e que resistiam à expulsão forçada de lá, de que o Fórum Suape, de entidades ligadas à população dali, revela, causa revolta. Por outro lado, com a destruição dos manguezais, berçário natural de peixes, as populações de pescado de Suape sofreram drásticos cortes. Isso abalou a comunidade local, que girava em torno da pesca, causando sofrimento e empobrecimento aos habitantes do lugar. Cristiano Ramalho, antropólogo e professor da UFPE, registra-o em sua tese de doutorado, de 2007, para a Universidade de Campinas (Unicamp). O drama de Suape também se estende à extinção de fontes de alimento para a Região Metropolitana do Recife, como no caso de frutas de excelente qualidade ali encontradas: caju, mangaba, manga, jaca, cajá, jambo, pitomba, abacate, etc. Para mim, uma desgraça. Desgraça mais ampla ainda, na verdade, e que está bem documentada em trabalho de conclusão do curso de ciências sociais da UFRPE, de 2009, de Marcos Miliano, bolsista da Fundação Joaquim Nabuco, relativo ao processo de expulsão dos moradores da Ilha de Tatuoca, para a construção de um estaleiro. O Manifesto de 1975 não desenhou uma falsa realidade. Profetizou. Está vivo.


Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 29.3.2017
“Carne Fraca” e comida saudável
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            O evento tumultuado da denominada operação “Carne Fraca” teve foco em supostas fiscalizações irregulares, envolvendo suborno, da produção de carne bovina em algumas grandes empresas da pecuária industrial brasileira. Tudo o que se discutiu em torno do que foi feito, depois da ação policial, se prende ao efeito dela sobre a economia brasileira, especialmente no tocante às exportações de carne do país. Para quem se preocupa com uma comida saudável, o foco certamente é outro. E não diz respeito somente à produção de carne de boi. A questão envolve, de fato, o tipo de comida que consumimos. Já que somos alimentos transformados – a qualidade do sangue humano depende do que colocamos na boca –, importa muito a natureza de nossa alimentação.
A consciência disso me fez mudar de dieta em 1971, quando me dei conta de que minha saúde não correspondia ao que eu esperava e eu não avaliava a natureza do que estava comendo. Comecei a estudar o assunto influenciado por meu pai, muito cuidadoso que era quanto à comida. Cheguei à macrobiótica, a mim por ele apresentada. Passei a comer grãos integrais, o arroz à frente, a incorporar molho (shoyo) e pasta de soja (missô) aos meus pratos, a renunciar à carne, ao açúcar, ao sal refinado, ao álcool, a comer verduras de boa procedência. Terminei adquirindo uma propriedade para produzir boa parte de minha comida e adotei a agricultura 100% orgânica em 1976. Sem me desfazer dos princípios macrobióticos, introduzi hábitos da alimentação nordestina tradicional (comer bode, por exemplo) nas minhas refeições. Meu pai também mudou algumas coisas de sua comida. Não tomava álcool. Continuou assim. Eu, não.
Evito completamente os hábitos alimentares comuns da população em geral. Há 40 anos, refrigerantes não entram em minha casa (nem copos, talheres, pratos plásticos). Não como galinha e ovo de granja – só de capoeira. Evito comê-los fora de casa. Peixe, só do mar; nada de cativeiro. Bode, carneiro entram. E cachaça, vinho, chás – café, raramente. Tomo para referência tanto os ensinamentos orientais da macrobiótica quanto a tradição da comida nordestina, considerando ainda a agradável dieta do Mediterrâneo. Sobre isso, li a respeito da dieta de Jesus, por exemplo. Ele comia peixe, pão (esses mesmo depois da Ressureição), azeitonas, figo, uva, carneiro, cabrito, feijão, lentilhas, melão, romã, passas, nozes, leite, queijo, iogurte, ovos, pepino, mel, milho, trigo, vinho (há quem diga que o teor alcoólico fosse nulo; não creio). Grãos integrais e sal, não refinados, sempre. Comia ainda alho, cebola, alho porró.
Tudo isso é comida tradicional, algo que resulta de milênios de evolução, de experiências que mostram o caminho certo. Nada a ver, por exemplo, com a aberração dos refrigerantes, uma desgraça para a humanidade, quando se tem tanto suco delicioso, água de coco, água de fonte, chás, café. Sobre refrigerantes, vale a pena ver o que diz a Escola de Saúde Pública T.H. Chan, da Universidade de Harvard: o consumo crescente deles, que são verdadeiramente doces líquidos, tem sido marcante na epidemia de obesidade do país. Com açúcar em exagero em sua composição, os refrigerantes não conferem a mesma sensação de alimentar que dariam as mesmas calorias de um doce em forma sólida, e assim quem os consome não compensa o exagero comendo menos. Uma saída para isso, e que não impõe o abandono da carne de gado criado solto, nem da galinha de capoeira (a de granja sofre martírios inomináveis), é oferecida por um movimento internacional, nascido na Itália, o Slow Food, que reúne pessoas que querem comer direito, celebrando o alimento de qualidade, limpo, sem venenos, e o prazer da alimentação. Comer é um ato prazeroso. A boa comida, a que agrada, a que não deixa rastros de mal-estar, faz bem à saúde. Com arroz integral e verduras orgânicas, melhor.

 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 14.3.2017
Fraternidade, biomas, transfiguração,
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            Como faz todo ano, a igreja católica lançou na quarta-feira de cinzas sua Campanha da Fraternidade de 2017 (CF 2017). Escolheu um tema muito relevante no momento, “Biomas brasileiros e defesa da vida”, citando o Gênesis, “Cultivar e guardar a criação”. O mundo se encontra diante de uma encruzilhada. São sérias, as ameaças de colapso ecológico. De 1,5 bilhão de pessoas em 1900, a população do planeta passou para 7,4 bilhões em 2017. E o PIB global, a preços atuais, de 2 trilhões de dólares em 1900 para 95 trilhões em 2017. Ou seja, em pouco mais de um século, o contingente demográfico do planeta se multiplicou de 4,8 vezes e a economia, de 47,5. Isso tem implicações muito mais impactantes do que imagina quem desfruta de conforto num 20º andar de prédio na av. Boa Viagem. De mundo vazio, passamos para um mundo cheio, onde as pessoas, por assim dizer, estão se acotovelando. Daí, déficits ecológicos têm atingido patamares muito elevados. O problema se agrava porque é preciso cada vez mais esforço para obtenção de uma mesma quantidade de recursos. No caso do pré-sal, por exemplo, vendido insanamente como salvação da pátria, vale a pena considerar a realidade alternativa de um petróleo à flor da terra, como o saudita. Um barril de petróleo do subsal brasileiro requer muito mais energia para sair da terra do que um barril bombeado de jazida a 20 metros de profundidade nos países árabes. Além disso, petróleo é para se usar menos, pois ele reforça o peso ameaçador da mudança climática.
            O Papa Francisco, falando como cidadão planetário muito mais do que como sumo pontífice, avisa sobre isso em sua encíclica Laudato Si’, que tem quase dois anos. “Cultivar e guardar a criação” é o conselho mais pertinente para uma humanidade que se imagina senhora e dona da natureza, e acredita que os problemas ambientais possam ser resolvidos através da ciência e tecnologia. Há limites biofísicos no planeta, que não podem ser desrespeitados. É o caso, por exemplo, da biodiversidade, cuja existência não depende dos humanos, mas cuja diminuição, sim. Sobre isso, pode-se classificar de assustadora a extinção da vida planetária das últimas décadas, de uma ordem tal que faz o mundo da ciência compará-la à que aconteceu 65 milhões de anos atrás, quando os dinossauros desapareceram. Esta nossa será a sexta grande extinção da vida na Terra, resultante da destruição de habitats, da introdução de espécies invasoras, das mudanças climáticas. Na verdade, a perda de espécies agora é 100 vezes maior do que a que seria considerada normal. O conjunto de fenômenos antropogênicos, que possui enorme amplitude, até fez surgir um nome para a era geológica atual, Antropoceno. Ele expressa justamente a arrogância do poder destruidor da Homo sapiens.
            Ao trazer a lume a significação da defesa da vida tendo como referência os biomas brasileiros – Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal, Cerrado, Pampa – a Campanha da Fraternidade de 2017, além de se preocupar com sua integridade e seu valor estético, traz um recado para o que eles representam na mitigação das mudanças climáticas. Como diz o físico Alexandre Costa, da UFCE, em entrevista à Revista ihu on-line, é preciso entender a ciclagem de água e carbono e as influências do desmatamento, queimadas e mudança do clima global nesses biomas. Preservá-los “vai além da mudança de hábitos (por exemplo, reduzir o consumo de carne, principalmente se a procedência desta for a Amazônia ou o Cerrado). É preciso ter políticas públicas no sentido contrário daquelas que vêm sendo aplicadas há vários anos e que levaram à expansão da soja, da pecuária, da mineração, da exploração de combustíveis fósseis e da construção de grandes barragens, como Belo Monte”. Ou seja, estamos diante do desafio de uma Transfiguração: esse parece ser o recado de Francisco e da CF 2017.

 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 2.3.2017
O bom carnaval de 2017 em Olinda
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

Quando levantei às 5h do sábado de Zé Pereira, doido para sair cedo para o Galo, leio no meu WhatsApp duas mensagens assustadoras. Ei-las, respeitando suas próprias redações: (1) “GALO SEM POLÍCIA! A polícia de Pernambuco acaba de deflagrar um movimento de paralisação das atividades durante o galo da madrugada. Devido à intransigência do governo do estado. Repassem para todos os grupos, parentes, amigos e conhecidos”; (2) “As BR’s estão bloqueadas com caminhões. Assalto na 232 e na 101”. Pensei: deve ser mentira de gente inimiga da alegria, da amizade, da confraternização, das tradições, da linda música pernambucana. As mensagens provinham de duas amigas minhas, merecedoras, ambas, de crédito. Uma de Olinda, a outra de Garanhuns. Não poderia ser coisa delas, matutei. Fui olhar a Internet – nada. Minha decisão foi então: sairei normalmente com Vera para o Galo, como nos últimos 20 anos. Peguei meu carro; fomos nele. Cidade tranqüila em toda parte. Policiamento educado, eficiente. Clima geral de descontração. Levei meu celular, contra a vontade de Vera, que deixou o seu. Não houve problema nenhum. Não vi nem sequer crise de ciúmes entre marido e mulher!
Foi assim o carnaval inteiro – no Recife, aonde vou apenas para o Galo, até 11h, e em Olinda, onde passo o resto da folia. Aliás, a festa de Momo em Olinda pode ser considerada um marco do prefeito Prof. Lupércio. Começa que o orçamento para a ocasião foi a metade do gasto do ano passado, e o número de adesivos para carros trafegarem no Sítio Histórico teve apreciável corte de 6 para 3 mil! A prefeitura não gastou, por outro lado, com exageros de decoração, dispensando adereços sem qualquer serventia e de indesejável impacto ecológico. Ela acertou admitindo que o valor da folia é dado não por enfeites, e sim pela alegria dos carnavalescos. Alegria essa que, a meu ver, foi prejudicada pelo mantra cansativo, sem foco, raivoso e vazio do “Fora Temer”. Meu bloco, o Eu Acho É Pouco, surgido na oposição à ditadura e no qual saio desde 1978, era mais alegre no regime militar (do qual tenho motivos pessoais para lembrar com dor) do que foi neste carnaval. O que significa “Fora Temer”, ainda mais para gente que o elegeu duas vezes?! Não era a hora de fazer comício. Isso não é assumir luta política – ainda mais no meio de tanta gente embriagada. Ter um projeto alternativo, consistente, com líderes à altura é que é a rota a ser traçada. Sem sectarismos.
A organização geral do carnaval em Olinda esteve muitos níveis acima do que vivenciamos nos últimos anos da triste gestão do PCdoB (Luciana Santos, em 2011, começou muito bem). No carnaval de 2017, não havia carros circulando no meio da multidão. As barracas, mais arrumadas do que antes, ficavam fora da pavimentação. Lixo se recolhia com rapidez. O som dos focos não perturbava tanto quem não queria participar da festa. E os blocos cumpriram horários, como há muito não se via. Quando peguei a Ceroula, no sábado, ela já estava na rua. E que lindo espetáculo, o dessa troça tradicional com sua orquestra incomparável! Igualmente, não deu para chegar em Guadalupe às 11h da terça-feira. Os bonecos gigantes já tinham saído, com suas 5 orquestras do melhor frevo de Pernambuco, quando fomos a seu encontro. Fizeram um desfile de que pude participar até a Ribeira, quando, normalmente, não dava para passar da igreja do Amparo. Violência? Não tenho o que contar. Só vi gente alegre em todo o espaço do perímetro do Sítio Histórico. Policiamento digno de elogios. Daí por que foi tão lamentável o boato de que não haveria policiais na rua. Gente má faz isso. O povo do bem se diverte, mesmo em meio às agruras por que passa. Sem ofensas, querendo amar. Apenas para ser feliz nem que seja numa horinha.
PS- Eu já tinha escrito este artigo quando soube de grave incidente de violência na rua da Boa Hora, envolvendo uma senhora, Dona Dá, líder da comunidade local e organizadora ali de belo encontro de bois nas Quartas-feiras de Cinzas. O episódio, resultante de ação de malfeitores, se deveu a falta de policiamento no local. Essa reclamação, ouvi de mais pessoas que sentem a necessidade de presença maior da polícia em Olinda.

 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 24.1.2017
Inferno Dominical em Olinda
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            Todo ano, é a mesma coisa em Olinda. Passado o réveillon, a cidade vive o clima de pré-carnaval. No entanto, não se trata de uma situação que os moradores do Sítio Histórico – invadido nos domingos que antecedem o carnaval por hordas de ignorantes do que seja a folia olindense genuína – delineiem do jeito que gostariam. Na verdade, a impressão que se tem é de que tal multidão, com as exceções de praxe, se constitui de algo como “rebanho sem pastor”, da imagem bíblica. Morador da Cidade Alta, vejo isso como um processo que se agrava a cada ano. Por exemplo, a barulheira impenitente, nos sábados e domingos à noite, proveniente de um palco que privatiza espaço público, perto do Fortim do Queijo – perto também da minha casa e do convento franciscano –, está cada vez pior. No domingo 22/1, à 0h30, por motivos inexplicáveis, até porque nada justificaria aquilo, houve uma estúpida explosão de fogos de artifício que me despertaram e fizeram pensar na desgraça que os moradores de Aleppo, na Síria, experimentaram em diversos momentos recentes. Durou, sei lá, meia hora. Fiquei sem conseguir dormir; minha mulher, Vera, também. E o som que os microfones berravam ali era a escória da música de pior qualidade do planeta (Aleppo, pelo contrário, possui bela tradição musical árabe, como a Muwashshah, uma forma de poesia andaluza cantada).
            Que direito certas pessoas julgam que possuem para, atrás de lucros fáceis, incomodar toda uma comunidade? Não discordo de que cada um escute a música ou barulho que quiser. Nem me julgo na condição de impor meu gosto pelo canto gregoriano, Mozart, Bach, Mahler, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Capiba. Porém, aceitar que me forcem a ouvir esses sons de punk, funk, forró eletrônico, música baiana, etc. que agradam tanta gente por aí, é aceitar uma agressão cultural que me tira a alegria de viver. O mais condenável é que, além de invadir as casas das pessoas, impedindo-as de escutar o que gostariam, a música tocada acima de qualquer nível civilizado de som, maltrata pessoas doentes e idosas, agride crianças, ofende o direito ao silêncio quando se quer, e se precisa, dormir.

            A barulheira é um dos capítulos do inferno de Olinda no período pré-carnavalesco, especialmente aos domingos. Além dele, há pelo menos mais dois que tiram a paz da cidade, estendendo-se também aos que a visitam: insegurança e atitudes desrespeitosas. Arrastões, assaltos, agressões acontecem de modo aterrador. O noticiário de TV registra isso, com pessoas correndo, gritando, desesperadas. Moradores se trancam em casa, assustam-se, ficam impossibilitados de exercer seu direito à mobilidade. Ao mesmo tempo, necessidades fisiológicas são feitas em locais abertos, de movimento de pessoas. Vai-se andando numa rua. De repente, esbarra-se em homens que urinam como se estivessem num mictório público. Uma atmosfera constrangedora cerca quem imagina que vive em um mundo de respeito a normas de convivência digna. Levar visitantes de outros países para uma circulada e encontrar essa situação de ofensa aos brios civilizados do mundo moderno incomoda muito. Em minhas andanças, pude testemunhar tal comportamento em Luanda (Angola) e outras cidades africanas, em La Paz e algumas cidades da América Latina; mas nunca testemunhei em Cambridge (Inglaterra), Roma, San Francisco (EUA), Melbourne, Irkutski (Rússia) ou Lisboa. Certamente, a realidade de Olinda que retrato é mais um dado para configurar o grau de atraso em que nos encontramos. Como reverter isso? A desejada repressão policial nos casos de violência óbvia não vai produzir efeitos de longo prazo. Mas ela é necessária para assegurar respeito aos direitos dos cidadãos que cumprem seus deveres.

 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 18.1.2017
Atraso persistente do Brasil
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            O Brasil possui fachada impactante de traços modernos, aparentando prosperidade. No entanto, a realidade por detrás desse véu não pode enganar. Passei os anos da minha adolescência estudando no Rio de Janeiro. Meu pai, em 1952, me internou no Colégio Nova Friburgo – um educandário-modelo da Fundação Getúlio Vargas –, onde fiz do admissão ao terceiro científico. Eu morava no interior de Pernambuco, na usina Frei Caneca, onde nascera e da qual meu pai era contador. A passagem dali para a capital federal representou um choque que me ensinou muitas coisas. Meu pai descendia de donos de engenho, tinha estudado em Garanhuns, quando meu avô ainda não fora golpeado duramente pela crise dos anos 1930. No fim de 1951, já com seis filhos – sou o mais velho –, ele me consultou se eu concordava em estudar no Rio. Gostei da idéia. Eu tinha 11 anos. Fui-me embora.
Em 1952, a proporção de analfabetos na população brasileira (50,6% dos maiores de 15 anos) era muito maior do que hoje (8,3%). Havia favelas no Rio, malandragem na Lapa. Mas se tinha impressão de segurança, além de que a cidade era alegre, divertida. Nos meus 13-14 anos de idade, andava em toda parte sem qualquer receio. Aproveitava para curtir tempos dourados. Ia ao Maracanã de bonde sem perda de tempo. Nunca presenciei atos violentos no estádio, fora dele ou em ocasiões comuns. Nunca encontrei alguém que houvesse sido assaltado. A garotada não tomava drogas. Namorava numa boa, sob severas restrições dos pais das meninas, talvez por isso frequentando bordéis – que não eram tão sórdidos quanto se imagina. Na minha família, não havia plano de saúde. Todavia, ninguém nunca ficou sem a melhor assistência médica possível. Meu pai só ia aos melhores clínicos do Recife – como Altino Ventura, para os olhos, ou Waldir Cavalcanti, para nariz, ouvido e garganta. Nada parecido com as agruras de hoje para quem tem bons planos de saúde e luta para obter serviços à altura do que espera.
Francamente, olhando o panorama brasileiro atual, sinto que o contexto todo piorou. Na década de 50, para viajar ao Rio, dispunha-se de navio, avião, rodovias (ruins, é certo) e trem (era uma epopeia fazer a viagem por via férrea, mas existia essa possibilidade). Eu mesmo, indo para o colégio, viajei duas vezes de vapor – no italiano Comte Grande (em 1955) e no brasileiro Pedro II (em 1956). Também fui de ônibus, aí já em 1961, quando tinha voltado a residir em Pernambuco. Queria viver essa aventura – aventura mesmo, numa viagem de 6 dias, a única vez que usei ônibus entre o Recife e Rio. De trem, viajei em 1958 de São Paulo a Corumbá, com um colega de colégio. Fizemos baldeação em Bauru. Viagem formidável, de quase 3 dias. O segundo trem era lento. Mas existia o serviço. Hoje, não mais: evidência de retrocesso. Nosso meio de transporte nos anos 1940 e 1950 entre a usina e o Recife era só o trem. O Brasil optou nos anos 50 por um modelo com base no meio rodoviário, atendendo ao interesse das montadoras e das petroleiras. Não consegue retomar o trem. Para mim, mais sinal de atraso. Já a China, em 2006, começou a construir seu primeiro trem-bala. Alcançou hoje a marca de uma rede maior do que a da Europa, com trens que andam a 300 km por hora. Espera alcançar 11 mil km em 2020. E a Transnordestina – uma estrada de ferro pré-moderna, de via única? Começou a ser construída em 2007. Não dispõe agora sequer de 400 km. Que marca maior de atraso? Nesse ritmo, a ferrovia, que deve ter 1.500 km quando concluída, levará 25 anos para isso. Ou seja, temos que esperar o ano de 2042 chegar para inaugurá-la! Como estará então a sociedade brasileira?

 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 10.1.2017
Para enfrentar a desordem crescente de Olinda
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            Sei que a aparência de caos em que corre a vida do país não é exclusiva de Olinda, a minha cidade. Por toda parte, o quadro se reproduz com enorme semelhança. Algo de maligno está acontecendo que aumenta a insegurança, promove a violência (no trânsito, por exemplo, ninguém respeita nada), torna as pessoas grosseiras, diminui o grau de educação no trato, leva a maior sujeira e pichação em toda parte, oferece uma imagem de decadência generalizada. Isso tudo é a antítese do progresso, a negação do desenvolvimento que os governos afirmam constituir seu compromisso maior (embora, na prática, mostrem que o que interessa mesmo é fazer crescer a economia, o PIB).
            Olinda poderia ser uma vitrine do discurso da melhoria social e econômica que a população gostaria de ver acontecer. Não é. Comparando a cidade com o que acontecia nela em 1982, quando a Unesco lhe conferiu o (merecido) galardão de Patrimônio da Humanidade, não há como evitar a conclusão de que a ela piorou muito. Moro numa rua de passagem obrigatória dos turistas que visitam Olinda. São hoje mais comuns os assaltos que nela acontecem, como o de uma argentina jovem na última segunda-feira. Bem junto de minha casa, esta própria vítima de ladrões que entraram pelo telhado no amanhecer do dia 2 de janeiro último (Vera e eu estávamos em Gravatá). Nas redondezas, esse tipo de roubo é frequente, o que tem levado a fuga de moradores. Basta dar um passeio pelo Sítio Histórico para ver a quantidade de casas fechadas e que ostentam placas de “Vende-se”.
            Se a solução para essa crise de insegurança, grosseria, sujeira, destruição do patrimônio, etc. requer um ataque de âmbito mais extenso, envolvendo políticas nacionais, por um lado, não se pode ficar parado, por outro, esperando que as coisas aconteçam, vindo de cima. É o caso de cobrar das novas autoridades municipais, ações que tornem o lugar onde vivemos algo que realmente valha um mínimo a pena. Em Olinda, instalou-se uma administração que parece ser menos desvairada do que a que empalmou o governo municipal durante 16 anos, descendo ladeira abaixo em termos de competência, sobretudo nos últimos dez anos.

A cidade pede ações urgentes que promovam a sensação de pertencimento e de integração nas comunidades que se empobrecem cada vez mais no anel de miséria que cerca o Sítio Histórico. Educação, artesanato (Olinda sempre teve bons artesãos), cultura de modo geral, esportes, atenção à criança, atendimento à saúde, combate às drogas, proteção ao cidadão – essas são coisas de que a prefeitura pode assumir um mínimo para conferir mais sentido e contentamento à vida olindense. Um lugar com os atrativos que Olinda possui, oferece enorme potencial para a criação de empregos relacionados ao turismo. Isso requer um ataque forte no plano da educação. Moro defronte a um hotel – o 7 Colinas –, bem concebido e administrado, que mostra como coisas sólidas cabem em Olinda, podendo servir para que a economia da cidade prospere. Nesse sentido, proteger seu patrimônio histórico, preservar a cultura local, garantir que a festa de carnaval olindense não vai abandonar as características que a tornam inconfundível (urinar nas vias públicas não é componente dessa tradição. É algo a coibir), são medidas que podem melhorar a qualidade de vida dos que tanto apreciam e vêm ver o que a Marim dos Caetés sempre exibiu. Está nas mãos de Lupércio Carlos do Nascimento, o novo prefeito, pôr em prática um compromisso nessa esfera.

 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 23.12.2016

Com o Papa Francisco no Vaticano
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

                Nunca imaginei que iria ter a oportunidade de conversar com um papa da igreja católica romana no Vaticano. Conversar, e não simplesmente ver Sua Santidade. Pois isso aconteceu no dia 23 de novembro deste ano. Desde que li a encíclica papal Laudato Si’, logo que ela foi publicada em maio de 2015, senti o desejo de colaborar com o Vaticano na difusão e aplicação dos ensinamentos nela contidos. É que o texto do Papa Francisco contém a essência da área científica a que tenho dedicado meus esforços desde meados nos anos 1980 – a economia ecológica. O que é isso? Uma nova visão de mundo, um novo paradigma que vê o sistema econômico como uma parte do grande todo que é o ecossistema global. Trata-se, na verdade, de uma disciplina que não se enquadra dentro da moldura da ciência econômica convencional: ela não é um ramo daquilo que os economistas estudam, cujo modelo do sistema econômico corresponde a o que a física classifica de sistema isolado. Para os economistas ecológicos, ao contrário, o sistema econômico constitui um sistema aberto (existem ainda os sistemas fechados), com entradas e saídas de matéria e energia, sob o regime da implacável Segunda Lei da Termodinâmica, a da Entropia.
Na encíclica Laudato Si’, o raciocínio se desenvolve inteiramente no âmbito do pensamento econômico-ecológico, cujas bases podem ser encontradas no livro seminal de Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994), The Entropy Law and the Economic Process (de 1971). É esse pensamento que deu origem à Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE, sigla em inglês), criada em 1987 e para cuja presidência fui eleito em janeiro deste ano. Nessa minha condição, desde que me lançaram candidato, propus que deveríamos nos aproximar do Sumo Pontífice. Houve discussão sobre as implicações desse envolvimento, natural numa organização científica que congrega pesquisadores de origens religiosas diversas, além de ateus. Mas, no fim, por unanimidade, minha proposta foi aprovada. E eu tratei de buscar o encontro com o Papa Francisco. Graças a amigos argentinos, cheguei a seu secretário particular, o padre Fabián Padocchio.
Assim, no dia 23 de novembro último, foi marcada a audiência no Vaticano. Fui (nosso grupo podia ter até 5 pessoas) com Vera, minha mulher, e o estrategista eco-social Stuart Scott, um judeu americano com histórico de trabalho em Wall Street. Iria conosco também o arcebispo Seraphim Kikotis, do Patriarcado de Alexandria da Igreja Ortodoxa Oriental, filiado à ISEE e membro de um comitê que discute a mudança climática. De última hora, ele ficou impossibilitado de viajar. No dia da audiência, recebemos um convite (branco), que nos colocava no meio de uma platéia de 800 pessoas. Na entrada, ele foi trocado por um verde, o qual nos punha entre cerca de 100 religiosos do evento. Já nesse grupo, alguém do protocolo nos disse que nosso convite seria o amarelo, o das 25 pessoas que falariam com o Papa. Assim, nos sentamos na primeira fila de cadeiras. Para ela Francisco se dirigiu ao fim de orações e leituras do Evangelho em várias línguas. Meu número de assento era o 9; o de Vera, o 8 (Stuart era o 12). Enquanto Vera beijava o anel do Santo Padre, fui direto à conversa. Falamos o suficiente para um acerto de perspectivas e início de cooperação. Francisco segurava a mão de Vera enquanto ele e eu falávamos, o que impediu Vera de acionar logo seu celular para fotos e filmagem. Mas tudo ficou registrado pelo Osservatore Romano. Mais que isso, o Papa e eu iniciamos aquilo que eu buscava: entendimento entre a ISEE e a Santa Sé. Para mim, mais tarde, parecia que eu conseguira o impossível. Um sonho. 


 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 2.11.2016

Que é isso, Prof. Lupércio?!
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            Não votei no segundo turno da eleição municipal deste ano em Olinda. Viagem providencial a Bogotá me poupou do sacrifício. É que a escolha estava muito difícil para qualquer um que habita, como eu, o Sítio Histórico. Depois de 8 anos de um prefeito forasteiro – Renildo Calheiros –, sem nenhuma identificação com a cidade, a candidatura de Antônio Campos soava com a mesma melodia. Não cabia alusão a Miguel Arraes e Eduardo Campos como referência para o candidato do PSB. Ele, simplesmente, não tinha a mínima dose do carisma dos dois, não se integrava com a população, não angariava simpatia e empolgação. O mistério é que haja querido ser candidato e tivesse seu nome lançado na disputa do executivo municipal. Poeta, escritor – herdeiro de um artista da palavra como seu pai, Maximiano Campos, de quem fui amigo –, membro da Academia Pernambucana de Letras, intelectual, advogado competente, nunca evidenciou, contudo, predicados para ser prefeito de Olinda. Como Renildo, não morava na cidade. Nunca o vi caminhando pelas ruas da Cidade Alta em dias que não fossem os da Fliporto – este último, aliás, um evento que, logo que migrou de Porto de Galinhas para Olinda, causou destruição ambiental na Praça do Carmo. Participar do carnaval olindense é algo que nunca se soube dele (e, para ser prefeito, uma condição é que o candidato saia no Ceroula, no sábado de Zé Pereira). Enfim, depois da experiência com Calheiros, estava todo mundo detestando a idéia de mais um prefeito que não exibisse pulsação de sangue olindense.
            Nesse quesito, não se pode criticar de saída a qualificação do prefeito eleito, conhecido apenas como Professor Lupércio (até agora, ignoro seu nome completo), um morador e político de raízes em Olinda. Diferente de Antônio Campos, contudo, que conheço de muito tempo, do candidato do Solidariedade, vencedor da disputa, nunca tinha ouvido falar – nem ninguém do meu vasto círculo de relações na cidade o tinha. Fiquei sabendo a respeito dele a apenas 3 semanas da votação, graças a informações que o prof. Jailson Silva, amável gerente do Hotel 7 Colinas, meu vizinho de rua, me passou numa conversa em que o assunto eleição surgiu por iniciativa minha. Foi aí que descobri o significado do título de professor, de Lupércio: ensina matemática (e é também advogado). Depois, minha instrutora de Pilates, Fabianne Coelho, contou que, uma vez, em solenidade de aula da saudade na FOCCA, Lupércio tinha sido ovacionado quando o chamaram para fazer seu discurso. Tanto que ele, modestamente, pediu que os aplausos ficassem para os estudantes, que os mereciam, não para ele, professor. Fabianne não tinha candidato quando me disse isso. Passei então a nutrir simpatia pelo nome dele, inclusive por um trabalho que ele – que foi o vereador mais votado de Olinda em 2012 e é deputado estadual – fazia na periferia e em Igarassu. Trabalho assistencial sem caráter eleitoreiro, segundo me contaram.
            Acontece que Lupércio tem mostrado preconceito em relação a uma das coisas mais agradáveis e tradicionais de Olinda – seu carnaval –, preconceito que parece ir mais longe do que o tolerável. No dia 31 de outubro, de fato, entrevistado pela Rede Globo acerca dessa festa que é marca da cidade, ele começou declarando: “Sou cristão e minha fé é inegociável”. Depois fez ressalvas. Quer dizer que o carnaval significa a antítese do cristianismo? Que é isso, Prof. Lupércio?! E, por favor, pense direitinho se deve se aliar ao PCdoB, partido que não deixa saudade em Olinda.
 
 Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 18.10.2016

Quando a beleza se avilta
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com
Um dos marcos mais deploráveis da ocupação do solo urbano de Olinda – refletindo o que se observa, tristemente, em toda parte neste país – é o centro comercial (shopping, como se prefere dizer, na pobre macaqueação brasileira do idioma inglês) que se ergue em Casa Caiada onde havia um quartel do Exército. Sem nenhuma explicação sensata, interesses exclusivamente econômicos estão impondo ali uma obra da pior arquitetura que se possa conceber. O lugar, quando ocupado pelo quartel, tinha graça e leveza. Era um parque com cajueiros que botavam belos cajus. Suas construções possuíam linhas simpáticas. Enriqueciam a paisagem. Foi vendido. Um pedaço virou loja do Wal-Mart. Acabou-se com a vegetação e a areia do terreno, aparecendo em seu lugar asfalto e uma caixa de cimento sem nenhuma graça (mas, pelo menos, de altura que não agride a vista). O pedaço restante é onde se constrói o monstrengo do shopping. Que autoridade pública autorizou tamanha aberração, um edifício sem nenhum compromisso ecológico, totalmente contrário aos princípios da sustentabilidade? E com altura descomunal, protegido por paredes dessa porcaria moderna do porcelanato. Todas elas de cor negra. É de causar ânsia de vômito.
Fico pensando como seria se Olinda tivesse sido erguida sob tanta falta de compromisso com valores estéticos. A catedral da Sé, o Mercado da Ribeira, o convento de São Francisco, a igreja do Carmo, o mosteiro de São Bento, o prédio do Museu de Arte Sacra (antigo Palácio dos Bispos), a igreja de Santa Gertrudes (não o colégio respectivo, que essa é uma construção feia), tudo isso atrairia turistas, levaria Olinda a ser considerada Patrimônio Mundial pela Unesco? Faria com que nos encantássemos andando pelo Sítio Histórico? Levaria Carlos Pena Filho a exclamar que “Olinda é só para os olhos./ Não se apalpa./ É só desejo”? Na verdade, o que acontece na área do quartel da PM do Exército, que sempre foi um componente querido da população, é parte de um processo de infame degradação urbana generalizada. As fachadas de casas, os muros, os prédios estão todos submetido à tirania do princípio da cerâmica, com suas lajotas sem nenhum sentido da beleza que a paisagem urbana deve exibir. Cidades como Ouro Preto, Salvador (Pelourinho), São Luís do Maranhão (Praia Grande) como ficariam? Olhando a silhueta de Nazaré, em Portugal, de Porto Conte, na Sardenha, das vilas das ilhas gregas, da costa da Dalmácia (Croácia), a sensação é de como empobrecemos cada vez mais uma herança rica de belos lugares que nos foi legada – como em Olinda, e no Recife também. 
Assusta saber que a destruição sistemática ao nosso redor – sem falar na verticalização residencial e na decadência da infraestrutura urbana – acontece sob a complacência de gestores públicos. No caso de Olinda, foram 16 anos de administração de um grupo político (o PCdoB) que tem a palavra Comunismo em sua denominação. Assusta que a perspectiva anticapitalista desse partido tenha se curvado completamente à lógica do capital. Melhor seria procurar colaboração com o capital, submetendo-o a regras de concessão cuidadosa de prerrogativas. Os interesses da população não podem ser tratados como se a qualidade de vida não faça sentido. E para que esta seja levada em conta, beleza, estética, charme do lugar em que se vive são cruciais

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 16.9.2016
Mito do Crescimento Econômico
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

David Korten, editor de yes!, revista americana, em artigo de 2014, trata do que chama de “estória dos Santos Dinheiro e Mercado”. Seria algo assim. “Tempo é dinheiro. Dinheiro é riqueza. Ganhar dinheiro gera riqueza e é o propósito que define o indivíduo, as empresas e a economia. Aqueles que ganham dinheiro são os criadores de riqueza da sociedade. O consumo material é o caminho para a felicidade. Nós, seres humanos, por índole, somos individualistas e competitivos. A mão invisível do mercado livre dirige nossa motivação competitiva insaciável para servir a fins que maximizam a riqueza de todos. Desigualdades sociais e estragos ambientais, coisas lamentáveis, são danos colaterais necessários no caminho da prosperidade para todos. Se nos mantivermos fiéis ao curso das coisas, o crescimento econômico findará por criar riqueza suficiente para acabar com a pobreza e impulsionar os avanços tecnológicos necessários para extinguir a dependência humana da natureza.” Essa percepção, que se embute em tudo o que é feito na sociedade moderna, permite que se admita como progresso um processo da economia que conta a destruição da vida para promover lucro monetário como progresso. Tal concepção cria uma realidade em que a idolatria do dinheiro e dos mercados se repete continuamente – na mídia dominadada pelas corporações, no discurso da maioria dos economistas, nos programas de governo dos partidos dominantes à esquerda e à direita. 
Sobre isso, meu amigo paulista Hugo Penteado, até janeiro último economista-chefe do Banco Santander no Brasil, indaga: “O modelo empresarial mudou? Resposta: não.  A visão do economista mudou? Resposta: não.  As pessoas percebem que a estrada desse sistema vai desembocar num precipício?  Resposta: não.  As pessoas estão decisivamente preocupadas em mudar e ver o mundo mudar? Resposta: não.  E [pior de tudo]: aqueles que realmente se importam possuem uma visão que realmente significa uma mudança?  Resposta: a maioria não, porque seus principais clientes são justamente aqueles que não querem mudar nada, porque são os maiores beneficiários dessa situação toda e se consideram inatingíveis por qualquer problema criado por eles mesmos.”
Celso Furtado publicou um livro em 1974 cujo título, O Mito do Desenvolvimento Econômico, exprime bem seu raciocínio: o crescimento constitui um mito, um fetiche, uma crença. É quimera a ser enfrentada. Escrevendo sobre o pensamento de Furtado, em 2002, usei a reflexão do pesquisador suíço Gilbert Rist, que esclarece: “o mito é compartilhado por todos, não é nunca desafiado, e é um plano de ação pronto, disponível em quaisquer circunstâncias; por implicação, o mito é também histórico, resultado de uma criação coletiva a que a sociedade, não conscientemente, dá forma ... O mito é um mapa para a ação que dispensa reflexões. É suficiente que ele seja uma crença compartilhada. Nós agimos como agimos porque não conseguimos imaginar-nos atuando de outra forma. A primeira causa não tem causa.” Diante de uma situação maligna como essa – de adoração ao dinheiro e mercados, de destruição sistemática da vida, de situações de penúria e exclusão social –, penso que ainda há esperança. Ela se manifesta claramente nos ensinamentos do Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’, de 2015 (leiam-na!). E é demonstrada pela experiência de mais de 40 anos da filosofia da felicidade do Butão, país da Ásia, que observei in loco em 2013.


Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 31.8.2016
Agravamento da crise ambiental
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE); cloviscavalcanti.tao@gmail.com

            Como pesquisador da interface entre natureza e sociedade e proprietário rural, praticante da agricultura orgânica há 40 anos, sou obrigado a conviver com detalhes – cada vez mais assustadores – da crise ambiental contemporânea. Quem mora em cidade, habitando apartamento nas alturas dos grandes edifícios, não consegue enxergar com agudeza os problemas de que o planeta está sofrendo, com repercussões dolorosas sobre as pessoas que têm sua sobrevivência ligada ao que a natureza lhes propicia. Por exemplo, a questão da água. Desde que ela esteja disponível nas torneiras com mínima regularidade, ninguém reclama. O que não é o caso, aliás, da população da cidade de Gravatá, por exemplo, cujo abastecimento hídrico constitui motivo de grande sofrimento. Na minha propriedade, em brejo de altitude, a abundância de água é inquestionável. No entanto, depois de quatro décadas, percebo hoje como os mananciais (tenho várias nascentes nas minhas terras) estão perdendo potência. Água não falta, graças a Deus – e da melhor qualidade. Porém, sua oferta tem decrescido. No mês de agosto de agora, foram raras as chuvas. Chuva boa, nem pensar. Enquanto isso, o sol torra a cabeça das pessoas, e o solo, as plantas, os bichos. Ao mesmo tempo, ocorrem dilúvios em alguns lugares, como em Baton Rouge, nos EUA, onde, em 39 horas, desabou uma torrente que nunca tinha sido vista lá, conforme relato da Scientific American, importante publicação de divulgação científica americana.
            Recentemente, na 5ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, foi exibido em São Paulo o filme Para onde foram as andorinhas, produzido pelo Instituto Sócio-Ambiental (ISA) e o Instituto Catitu. O filme mostra como os povos que habitam o Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, estão percebendo e sentindo em seu dia-a-dia os impactos das mudanças do clima na região. Seja em sua base alimentar, em seus sistemas de orientação no tempo, em sua cultura material e em seus rituais, os índios revelam-se extremamente preocupados – coisa que a película trata com enorme beleza e sensibilidade. Além da perda visível de serviços e bens com que sempre contaram em seus ecossistemas, os indígenas têm medo do mundo que vão legar para os filhos. São 16 povos diferentes – 6.500 pessoas –, que, com seu tradicional sistema de manejo do território, garantem a preservação das florestas. No entorno do Parque do Xingu, porém, a realidade é outra. Uma fração de 86% das matas foi convertida em soja, milho e pasto nos últimos 30 anos: devastação ambiental com consequências no clima, nos animais, na agricultura, no bem-estar humano dos povos locais. As cigarras não cantam mais anunciando que a chuva está por vir. Também desapareceram as andorinhas que voavam em bandos para anunciar o início das chuvas. As borboletas, que visitavam as aldeias avisando que o rio ia começar a secar, sumiram. O aumento do calor, a falta de chuvas, o desmatamento no entorno do Parque, a construção de barragens são apontados como causas das mudanças. O fogo, antes restrito à roça, hoje, se alastra com muita facilidade, atingindo grandes áreas do Parque, exigindo que os índios se mobilizem e adotem novas técnicas e equipamentos para controlar o fogo. O calor intenso também está matando as frutas e alimentos que fazem parte da culinária dos índios, caso de algumas espécies de mandioca e batata. Até os pés de pequi, fonte de alimento e fundamental no ritual da furação de orelhas dos Waurá, estão sendo atacados por pragas antes desconhecidas. Isso é só um cisco na montanha de problemas socioambientais que vão nos afligindo, e que se agravam cada vez mais. Quem está consciente da tragédia?

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 18.8.2016
Giuseppe Baccaro, um humanista passional
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE), cloviscavalcanti.tao@gmail.com

Convivi com Giuseppe Baccaro desde 1972. Conheci-o por intermédio do monge beneditino, meu compadre Irineu Marinho Falcão, que me cedia, com a anuência do abade, D. Basílio Penido, meu amigo também, a casa do mosteiro de Olinda em Pau Amarelo para fins de semana. Num domingo, de pick-up, chegou Baccaro. Com sua mulher, Fiorella (grávida de Matheus), e um grupo de crianças do bairro popular de Olinda onde os dois faziam trabalhos com a comunidade. Acamparam no terreno da simples e ampla casa. Batemos papo enquanto a meninada se divertia na praia e no maceió do terreno, e Baccaro preparava churrasco. Nessa época, ele ainda comia carne, hábito de que abdicou ao se tornar vegetariano e dedicar-se à preparação de deliciosas e incomparáveis macarronadas. Nossos laços se estreitaram depois que liderei, em 1975, um movimento contra o projeto do porto de Suape. Baccaro me deu todo apoio, o que fazia sempre em tom de pouca diplomacia com relação aos destruidores da natureza. Essa, de fato, era uma característica sua: não se dobrar diante do que considerava crime contra os valores da vida. Explica-se, daí, a ojeriza que muita gente criou ao humanista passional da região de Abruzzo, na Itália, que ele era. Quando falo humanista é, na verdade, para ressaltar a importância que Baccaro concedia ao ser humano, sem considerar, porém, que ele seja o ápice da criação como imaginam os antropocentristas.
Como consequência de novo round da briga contra Suape, em 1979, surge a Aspan (Associação Pernambucana de Proteção da Natureza), de cuja criação participamos. Baccaro, desejando que eu fosse seu presidente (eu não estava convencido disso), apresentou minha candidatura em época posterior. Perdi para Ricardo Braga, meu amigo e um ambientalista consciente. Foi por aí que ele comprou uma casa na vila de Nazaré, no cabo de Santo Agostinho, aonde eu ia com frequência para conversas e o macarrão ao molho de tomate. Tomávamos vinho e, às vezes, cachaça. Em muitas ocasiões, com o grande Gilvan Samico, em Olinda, os encontros eram com uma cachacinha. Na década de 1980, passei a fazer parte do Conselho de Curadores da Fundação Casa das Crianças de Olinda, instituída com recursos de Baccaro, originados em sua atividade de grande marchand. Cheguei a presidir a organização, que realizava belo trabalho com a comunidade da área do Monte, em Olinda, onde se situa o terreno de 4 ha da Fundação. Nessa condição, recebi a visita, durante uma manhã, do arcebispo de Canterbury, chefe espiritual da Igreja Anglicana, cujo bispo no Recife, meu primo Robinson Cavalcanti, discutia uma possível gestão da Fundação pela igreja. Baccaro não era gestor e não queria perder o controle da Casa das Crianças, uma obra verdadeiramente sua. Não vingou a relação com os anglicanos. A prefeitura de Olinda nunca dedicou a ela o cuidado que buscamos junto a prefeitos como Germano Coelho e Jacilda Urquiza. Aliás, dono da segunda melhor biblioteca privada do Brasil, Baccaro doou-a certa vez à prefeitura, que não teve condições financeiras de assumi-la. Ela continuou nas mãos de meu amigo, com seus tesouros, de que eu, aliás, me servi para pesquisas. Numa dessas, estudando a destruição da Mata Atlântica, descobri coisas fabulosas no acervo de Baccaro, como o livro do missionário calvinista Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, de 1578. É assim que posso classificar Baccaro de humanista. Mas ele não visava nada para si. Tinha total desapego do rico patrimônio que construiu (inclusive 99 quadros de Anita Malfati, adquiridos quando ela estava morrendo, em 1964). E se orientava basicamente pela defesa dos valores ecológicos – valores da vida. Sempre de forma intransigente. Nisso, nós nos entendíamos.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 4.8.2016
Garanhuns e qualidade de vida
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Desde minha infância, Garanhuns sempre exerceu fascínio em minha vida. Nasci no município de Maraial, a 80 km de lá, onde minha bisavó Maria Luísa Cavalcanti era senhora do engenho Taquarinha. Meu avô João Florêncio Cavalcanti, que também possuía terras e era comerciante, mudou-se para Alagoas, onde comprou engenho não longe de Garanhuns. Meu pai, seu primogênito, foi cursar o secundário em Garanhuns. Morava em casa adquirida por meu avô perto do Colégio Santa Sofia. Garanhuns dispunha de bons educandários e outros bons serviços. Tinha um jornal, O Monitor, no qual meu pai fez trabalhos de jornalista. Com a falência de meu avô durante a depressão dos anos 1930, meu pai conseguiu o emprego de contador na Usina Frei Caneca, município de Maraial. Aí nasceram seus primeiros oito filhos (sou o mais velho). Os três últimos, na Maternidade do Derby, Recife. O fascínio de Garanhuns era porque as coisas boas de que precisávamos – cenoura e couve-flor, por exemplo, além de bens industrializados – vinham de lá. A viagem de trem, o meio de transporte par excellence da época, de Frei Caneca a Garanhuns, constituía experiência simpática. Minha irmã mais velha foi interna no Colégio Santa Sofia. Em suma, como o Recife ficava no dobro da distância de Garanhuns, era desta de que dependíamos mais.
Lá, fiz turismo adolescente com um colega de internato em Nova Friburgo, o carioca Sérgio Trindade, grande amigo até hoje, que veio me visitar nas férias de 1958. Lá, passei dias, algumas vezes, com a família toda, no Sanatório Tavares Correia, maravilha de hotel cujo charme de outrora, infelizmente, não se vê mais. Eu não visitava a cidade há muitos anos, até participar do VII Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em 1997. Daí por diante, casado com Vera, de família local, as visitas se tornaram frequentes, permitindo-me concluir que Garanhuns é a melhor cidade de Pernambuco e uma das melhores do Brasil. Melhor, claro, em termos de qualidade de vida. Impressionam as condições eficientes dos serviços disponíveis na cidade, de mecânico de automóvel a plantões em hospitais do bom polo médico dali; de lojas diversificadas, como a Ferreira Costa, a estabelecimentos mais simples. Garanhuns possui excelente papelaria. Tem laboratórios fotográficos de boa qualidade, o que inclui técnico de máquinas fotográficas de apreciável competência. As ruas são bonitas, arborizadas. Na av. Rui Barbosa, eixo de acesso ao centro para quem vem de Caruaru, os cuidados urbanísticos fazem inveja ao Recife e Olinda. As calçadas de Garanhuns oferecem gritante contraste para os vergonhosos passeios públicos da destruída Marim dos Caetés. E a condição de seus imóveis, igualmente, humilha quem se lembra da feiura do Recife na Conde da Boa Vista, no bairro de São José e outras áreas.
Infelizmente, porém, Garanhuns se vê ameaçada pela construção de espigões descomunais (como os que proliferam em Caruaru), totalmente desnecessários, e que enfeiam terrivelmente sua paisagem harmoniosa. A cidade sofre ainda com a desfiguração de belos legados arquitetônicos, a exemplo do prédio do antigo cinema Jardim, modificado impiedosamente por uma cadeia de supermercados. É preciso impedir que essa destruição prossiga. E que se promova cada vez mais o extraordinário FIG, uma criação inspirada do prefeito e meu contraparente Ivo Amaral.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 18.7.2016
Crescer para quê?
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            Conheci Washington, a capital dos EUA, em setembro de 1964. Em junho de 1965, voltei lá para trabalho de três meses no Comitê dos Nove, espécie de conselho, dentro da União Panamericana, que supervisionava a aplicação do programa Aliança para o Progresso, do governo americano. Foi um período muito agradável. A cidade era vibrante, tinha boa qualidade de vida, comia-se bem. Desgraçadamente, a má distribuição de renda, junto com o racismo, deixava a população de cor negra confinada em certas áreas, que eram consideradas perigosas. Ignorando alertas, eu costumava andar em algumas delas, até porque ficavam contíguas ao centro e as pessoas eram simpáticas. Não me assustava, apesar do desconforto de verificar uma realidade que negava as promessas do chamado Sonho Americano. Depois do São João deste ano, passei uma semana em Washington. Tirei uma tarde para visitar lugares da cidade que me eram familiares. Fiquei chocado com a perda de qualidade de vida que observei, relativamente a 1964-1965. Locais de comer bem, onde eu almoçava, não existem mais. Só restaurantes caros, mas nesses só se vai para jantar (estive em um, convidado pelo diretor brasileiro do Banco Mundial, Otaviano Canuto, e sua mulher, Gadu). As pessoas se servem em food trucks, alimentando-se da porcaria que é a fast food (também chamada de junk food, ou seja, comida-lixo). Gente engravatada, das instituições que por ali se multiplicam, são clientes dos caminhões. Numa palestra que fiz no Banco Mundial, dia 30 de junho, programada para a hora do almoço, havia sanduíches e outras comidas empacotadas para se ingerir durante a sessão. Percorrendo depois áreas pobres do centro de Washington, fiquei ainda mais chocado com o quadro de miséria que pude testemunhar. Gente maltrapilha fazendo da rua moradia ou pedindo esmola aparecia em quantidade que me assustou. Prédios de residência com aspecto de ruína eram comuns. Fiquei pensando como é que 50 anos de crescimento econômico não tinham acabado com aquilo. Que lição tal realidade nos oferece?
            Acredito que uma primeira e importante lição é a de que o crescimento econômico constitui uma falácia em termos da eliminação da miséria e da exclusão. Como será o quadro real, de fato, daqui a mais cinco décadas – nos EUA, no Brasil? Terá havido grande melhora? Só muita ingenuidade para crer nisso. O retrato da economia no mundo hoje mostra um setor financeiro governado pelo incentivo geral de expansão da atividade econômica. Como o endividamento é grande, a economia precisa crescer para gerar os fluxos de renda que impeçam a inadimplência. Reside aí a fonte do lucro do capital parasitário que comanda o mundo. Os líderes das nações terminam se tornando agentes da expansão econômica dentro de um paradigma que, por outro lado, nega a existência de limites tanto para a extração de recursos quanto para o lançamento de dejetos no mundo natural, atividades que acompanham inexoravelmente o processo econômico. Assim, finda-se com o discurso circular ou mantra de que é preciso voltar a crescer. No entanto, crescer para quê? Mais uma vez, acredito que as idéias do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’ deveriam servir para a necessária reflexão que é preciso fazer com toda seriedade e responsabilidade nesse contexto.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 6.7.2016
Brasil: 70 anos de atraso
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            Conversando com o professor Martin Rees, de Cambridge (Inglaterra), também astrônomo real do Reino Unido, lá, há três semanas, surgiu por alguma razão o assunto dos outdoors na beira de rodovias. Aliás, embora se empregue no Brasil o termo inglês outdoor para painéis grandes de propaganda, nem sequer essa palavra é um substantivo no idioma de Lord Keynes. Constitui adjetivo ou advérbio. O termo certo em inglês para outdoor é billboard. Feita essa observação, que serve para mostrar mais um traço de falsa cultura dos que permeiam a vida nacional, ao dizer a Rees que achava lamentável como no Brasil se deixa que a paisagem seja roubada pelos inglórios outdoors, ele me informou que isso não se permite nas estradas britânicas desde 1947. Ora, são quase sete décadas de progresso em cima de nós brasileiros!
            Não sou dos que, hipnotizados pela sinalização enganosa do PIB, fazem cálculos e comparações à base desse indicador quantitativo, estreito e muito imperfeito. Celso Furtado, a propósito, no seu livro O Mito do Desenvolvimento (de 1974), classifica o PIB como “a vaca sagrada dos economistas” – vaca que, certamente, é também, dos políticos, dos meios de comunicação e dos economistas, como se diz em inglês, “hard-nosed”. Daí que, sendo economista ecológico, procuro me guiar não pelo PIB, e sim por indicadores capazes de captar mais nuanças da vida de um povo do que ele. No Reino do Butão, país do Himalaia do tamanho da Suíça (visitei-o com Vera em 2013), trabalha-se com o índice da Felicidade Nacional Bruta (FNB) em lugar do PIB. Lá não se promove o consumo como meta de progresso. O bem-estar humano e de todas as formas de vida vem antes. Nesse marco, simplesmente não existe outdoor (vá lá essa palavra imprópria) de qualquer espécie no país, nem mesmo de propaganda do governo. Em Cuba, não existia outdoor comercial algum – apenas cartazes patrióticos – quando lá estive a última vez (2003). Em 1990, na Suécia, chamou minha atenção como nas estradas inexistia esse símbolo do atraso. Enquanto isso, a publicidade emporcalha a vista de quem, por exemplo, sobe a Serra das Russas, passando por lugares que antes não possuíam essa ameaça à própria segurança dos motoristas.
            Ao me referir a outoors (palavra infame), faço-o pensando no simbolismo que indicadores qualitativos do bem-estar possuem. Desfrutar de uma vista bonita, como a da janela de minha casa em Olinda, é um direito humano que gostaria de compartilhar com todas as pessoas. Certamente, me incomoda quando vou a uma janela e vejo paredes de edifícios, antenas de telecomunicação, telhados medíocres – e edifícios de arquitetura vulgar como a das gigantescas torres do Cais de Santa Rita e a das que querem impor com o Projeto Novo Recife (cria das Torres Gêmeas, permitidas pela Prefeitura da capital pernambucana). Na verdade, letreiros feios, monumentais, existem por toda parte no país (em São Paulo, foram eliminados e submetidos a disciplina quando José Serra era prefeito da cidade). Nos países civilizados, conseguiu-se bani-los (com educação de boa qualidade na retaguarda do que se faz). Isso é progresso genuíno. Algo a ser seguido no Brasil.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 21.6.2016
Boa escolha para a Fundação Joaquim Nabuco
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            Fator que muito contribuiu para que a Fundação Joaquim Nabuco (FJN) seguisse caminho vitorioso desde sua criação em 1949 foi sua continuidade administrativa. Não houve mudanças em sua direção, até 2003, com efeito, que pudessem fazê-la alterar sua rota, compromissos, missão. E isso não foi só porque Fernando de Mello Freyre tivesse permanecido à frente dela de 1971 a 2003, haja vista que, de 1949 a 1971, sob três outros diretores, a instituição, que se chamava Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS) até 1980, só fez se firmar e adquirir respeito. Essa feição foi fortalecida sob Fernando Freyre, que soube atravessar com muita habilidade, gestor consumado que era, momentos de extrema penúria financeira, e até de ameaça de extinção do órgão.
            Em 2003, com o governo do presidente Lula da Silva, seu ministro da Educação, meu amigo e ex-aluno Cristovam Buarque, que muito admiro, cometeu um erro indesculpável. Nomeou presidente da FJN um político de peso, Fernando Lyra, que não tinha, contudo, nenhuma relação com o trabalho da instituição. Antes de sua posse, Lyra me chamou para uma conversa. Disse-me que não queria ser presidente da Fundação, que “não era sua praia”, que nem gostava de ler! Isso mesmo ele repetiu no dia 18.2.03, seguinte a sua investidura, em reunião que eu ainda, de saída de meu cargo de chefia do Instituto de Pesquisas Sociais (Inpso) da FJN, presidi. Fez o depoimento perante o corpo de pesquisadores do Inpso. Realmente, chocou. A mudança por ele trazida levou a instituição criada por Gilberto Freyre para rumos que não serviram para reforçar o prestígio que conquistara, por mérito de sua produção científica, nas décadas anteriores.
Depois de 8 anos de declínio sob Lyra, a FJN passou para as mãos de Fernando José Freire, um doutor de bagagem sólida, porém sem a perspectiva da pesquisa social. O Freire 2, de fato, construiu sua reputação na área de pesquisa sobre solos na Rural de Pernambuco. Não era de esperar que o forte da Fundação, a pesquisa social, se fortalecesse. Ainda mais porque o Ministério da Educação, instância superior de comando da FJN, resolveu ditar regras e acabar com a autonomia que esta sempre possuíra. Veio o segundo governo de Dilma Rousseff. Indicou-se novo presidente em 2015, um político honrado, Paulo Rubem Santiago, porém, outra vez, sem qualquer histórico de relacionamento com a Fundação Joaquim Nabuco.
Assim, parece alvissareiro que essa organização, de histórico tão apreciável, e que nunca foi um ônus financeiro para o governo federal, esteja agora entregue ao presidente recém-empossado Luiz Otávio de Melo Cavalcanti (de quem não sou parente próximo). Luiz Otávio era secretário de Planejamento de Pernambuco em 1975, quando liderei movimento contra o complexo industrial-portuário de Suape. O governador, Moura Cavalcanti, ficou brabo. Eu nunca imaginei que causaria tanta fúria. Pois bem, Luiz Otávio entendeu o recado do movimento contra Suape – baseado em razões socioambientais. Criou um grupo para ver como poderiam ser mitigados danos do projeto. Incumbiu o saudoso arquiteto Armando de Holanda Cavalcanti de fazer propostas. Daí surgiu o Parque do Cabo de Santo Agostinho. Não era o que eu pensava, mas a prova de sensibilidade de um homem culto e preocupado com nossa realidade. Por essa e muitas outras razões, julgo digna de aplausos a elevação de Luiz Otávio, pelo ministro Mendonça Filho, a presidente da Fundação Joaquim Nabuco.


Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 4.6.2016
A encíclica Laudato Si’ completa um ano
Clóvis Cavalcanti
Presidente-Eleito da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

O lançamento da carta encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, “sobre o cuidado da casa comum”, fez um ano no último dia 24 de maio. Para mim, esse é um documento profundo, de grande significado. Um chamamento à responsabilidade humana perante um planeta conspurcado pela prevalência do interesse econômico e, sobretudo, do dinheiro, com relação aos valores humanos, sociais e ecológicos que deveriam ter primazia. Infelizmente, muito pouco lido – menos ainda com a atenção aguçada de que é merecedor. No documento, diz o Papa, referindo-se à Terra, “nossa casa comum”: “Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la”. Acrescenta: “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos Terra”. Em virtude disso, chegou-se à situação de possibilidade de uma “catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial”, o que implica a “necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade”. Para fazer isso, no ver do Sumo Pontífice, “Toda a pretensão de cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas nos estilos de vida, nos modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades”.
Considerando, corretamente, que o “clima é um bem comum, um bem de todos e para todos”, a encíclica refere-se a sua natureza de sistema complexo, que tem a ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Observa que há consenso científico, muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento da atmosfera. “Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular”. Pode-se relacionar tal reflexão à forma como hoje as chuvas e a seca no Nordeste se manifestam de forma inusitada, com dimensões desconhecidas. É inegável o aquecimento global, associado a estilos de vida que produzem alta concentração de gases do efeito estufa (gás carbônico, metano, óxido de enxofre, e outros) emitidos sobretudo por causa da atividade humana. Isto é particularmente agravado, conforme salienta a Laudato Si’, pelo modelo de desenvolvimento baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema energético mundial, juntamente com a prática crescente de mudar a utilização do solo com o desmatamento para fins agrícolas.
Convém mencionar que a encíclica resultou de oficina promovida em maio de 2014, em Roma, pelas Pontifícias Academias de Ciências e das Ciências Sociais, reunindo grandes nomes da ciência mundial, sob a coordenação dos professores Partha Dasgupta (de economia de Cambridge) e Veerabhadran Ramanathan (de ciência do clima da Universidade da Califórnia em San Diego), ambos não-cristãos. Quis o Papa, além de sua motivação profética, basear-se no melhor conhecimento sobre a matéria. Daí, a força da Laudato Si’, que contém fundamentada crítica do paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, levando a uma, como salienta, “confiança irracional no progresso”. Essa é exatamente a posição de grande parte dos integrantes da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE), para a qual fui eleito presidente em janeiro. Nesse sentido, penso mobilizar o potencial que tem a ISEE para auxiliar o Papa Francisco nos seu esforço de se procurar outras maneiras de entender a economia e a prosperidade, na busca de outro tipo de progresso, mais ecologicamente são, mais humano, mais social, mais integral.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 26.5.2016
Os encantos ameaçados de Olinda
Clóvis Cavalcanti
Presidente-Eleito da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            É conhecido o belo poema de Carlos Pena Filho (1929-1960), um olindense, que contém a estrofe: “Olinda é só para os olhos, / não se apalpa, é só desejo. / Ninguém diz: é lá que eu moro. / Diz somente: é lá que eu vejo”. A bela feição da cidade em que resido se expressava com toda desenvoltura na manhã de céu azul intenso do último domingo. De nossa casa, ao lado do convento franciscano, minha mulher Vera e eu fomos à missa das 7h30 na igreja de Santa Gertrudes – em si própria, de magnífica e sóbria beleza. A cerimônia, conduzida com elegância e charme por cuidadosas freiras beneditinas, de hábitos limpamente alvos, e presidida por Irmão José (como ele gosta de ser chamado), monge da Ordem de São Bento, veio acrescentar mais encanto ao cenário que íamos encontrando. Voltando da missa, nossos olhos pareciam confirmar o sentido da metáfora de Carlos Pena.
No entanto, prestando atenção em detalhes, íamos percebendo como é forte o contraste entre o que Olinda oferece de beleza e a destruição causada pelos que a ocupam nos tempos atuais. No Alto da Sé, defronte de prédios com admirável arquitetura (excluo deles o monstrengo moderno da caixa d’água), espalha-se no vazio da praça um como quê acampamento que parece de refugiados de alguma catástrofe. São bancos de vendedores de comida. Aí, nossa feição de atraso, de sociedade que ainda não decolou firmemente de sua situação de miséria nas camadas sociais marginalizadas, se projeta com toda pujança. Esse é o país que somos de fato. Incapaz de se livrar de desequilíbrios sociais que se agravam. E incapaz de avanços no plano da formação de cidadãos – a começar dos que ocupam posições de mando – que cumpram as leis como se deve. Construções irregulares aparecem em todo lado. São novos pavimentos acrescentados a casas antigas. São fachadas refeitas sob o manto da pior arquitetura (uma, dir-se-ia, “não-arquitetura”) que existe. São revestimentos de lamentável breguice colocados em muros e paredes. Quando se olha um conjunto de casas das que permitiram que Olinda virasse Patrimônio Cultural da Humanidade, comparando-as com as novas concepções, chega-se ao espanto. Como é possível tanta mediocridade?!
E isso não é atributo somente da iniciativa privada. O desastre artístico do adro do convento franciscano, a deformação que ali se plantou há 10 anos, por exemplo, representa contribuição dos poderes públicos. Ensaia-se atualmente uma recuperação do local, que era muito gracioso até o começo das desastradas administrações municipais do PCdoB (a primeira delas, em 2001-2005, na verdade, foi alvissareira). O temor é de que a emenda saia pior do que o soneto. Nesse particular, o que a prefeitura fez de bom nos últimos 15 anos – como embutir fios em meia dúzia de logradouros – perde de modo enfático para o que trouxe de ruim. Os postes das av. Sigismundo Gonçalves são exemplo disso. Postes de estradas periféricas de cidade feia. A situação de abandono de monumentos, como as igrejas do Bonfim e de São Pedro Mártir, são outro exemplo. E a situação de áreas coladas ao sítio histórico, como os bairros de Amaro Branco e Guadalupe; as calçadas arrebentadas em toda parte; o calçamento irregular – tudo isso mostra como parece que existe um esforço para negar o conteúdo do poema de Carlos Pena Filho. Poema que é um hino de exaltação aos encantos ameaçados de Olinda. 

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 11.5.2016
Perigo do pensamento único do crescimento econômico
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            É ampla a crença de que o Brasil vá melhorar com mudança de presidente. Só que isso é imaginado mais com respeito à economia do que a qualquer outra coisa. E, mais ainda, na expectativa de uma sempre referida “retomada do crescimento”. Tudo se dá porque, no mundo de hoje, quase todas as tendências políticas (as exceções estão ligadas a perspectivas socioambientais) acreditam firmemente que a única via de bem-estar de um país é com a expansão da atividade econômica: aumento do produto interno bruto (PIB) contínuo e sem fim. Ninguém questiona se isso promove a felicidade das pessoas, o progresso nas relações sociais, a prosperidade saudável da população. Pensa-se antes em usar todas as fórmulas possíveis para fazer com que a produção física se expanda, o que implica aumentar a extração de recursos da natureza e uma inevitável emissão de maiores volumes de lixo que acompanham essa extração e a transformação dos recursos (o petróleo queima e vira poluentes como o gás carbônico).
            O pensamento econômico dominante – neoliberal, de esquerda, o que for – só percebe a receita do crescimento, omitindo qualquer referência a custos sociais e ambientais do processo. Obras como a usina de Belo Monte, uma tragédia humana e ecológica, ilustram bem isso. Diz-se que o projeto é necessário, sem considerar que assim ocorre porque o objetivo fundamental da economia é crescer sempre mais. No mundo atual, uma razão para isso é o fato de que, com um sistema bancário poderoso, empresta-se dinheiro de modo voraz, o que leva à necessidade de crescimento econômico para que as dívidas possam ser pagas. Se não houver crescimento, o sistema bancário fica ameaçado. E o que os banqueiros querem é que os empréstimos que concedem gerem “riqueza” financeira, deixando que a humanidade pague o preço de sua empreitada.

Cria-se uma situação em que tudo é forçado a se converter em dinheiro. As riquezas naturais – essas, as riquezas de verdade – são entregues ao mercado para que ele lhes dê preços e leve a uma acumulação cada vez mais concentrada de ativos. Como diz um amigo meu nos EUA, o dinheiro é um “ente viral” que coopta a civilização para que ela realize o trabalho de sua reprodução. Não é à toa que a dívida nacional cresce em toda parte. Ela era 15% do PIB americano em 1931; chega agora a 75%. Por outro lado, o giro financeiro mundial valia menos do que o PIB global em 1930; hoje, representa 60 vezes tal valor! Essa mutação parasitária do capitalismo o converte em um sistema de destruição de forças produtivas, do meio ambiente, de estruturas institucionais. A alternativa é uma mudança profunda de paradigma. Disso fala o Papa Francisco, na sua bela – mas pouco lida (leiam, por favor, o documento) – encíclica Laudato Si’, de junho de 2015. Sua Santidade, com base em discussão científica realizada na Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano em maio de 2014, alerta para a “necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade” na “preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral”. Não de crescimento a todo custo, como querem PT, PSDB, etc.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 14.4.2016
Um país sem rumo
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Domingo, dia 10 deste abril, eu voltava de Gravatá. Pouco antes das 14h30, ao pegar a av. Agamenon Magalhães, no Parque Amorim, em direção a Olinda, o trânsito parecia caótico. Vi logo a razão do tumulto. Cercados por policiais da Tropa de Choque em motos, torcedores do Sport eram tangidos como boiada na direção do Arruda, lugar da partida que rubro-negros e o Santa Cruz iriam logo disputar. Assustei-me. Rapazes com aparência não das mais simpáticas marchavam dentro de um quadrilátero desordenado e feio. Vou a futebol desde a adolescência; nunca presenciara cena como aquela – nem antes, nem depois de uma partida importante. Ao contrário, indo a campo, sempre gostei do clima relacionado com a partida do momento. O pior que poderia acontecer era alguém dizer um palavrão, se provocado.
Esse clima de guerra de galeras de futebol está tomando conta hoje do país. A situação do Brasil, deveras, assusta. Uma disputa política se transformou em briga de facções semelhante às brigas entre as famigeradas torcidas organizadas. Brigas sem bases racionais. Quem é contra o impeachment da presidente da República, taxa os adversários de golpistas, assemelhando-os aos que tratavam da deposição de João Goulart, em 1964. Ninguém pode argumentar que a decisão de se é legal ou não o pedido de afastamento de Dilma Rousseff cabe ao STF. Todas as pessoas se consideram juristas e com poderes para dizer se os adversários devem ser taxados de golpistas, ignorando a palavra final do STF. Quem admite que o caso seja apreciado pelas instâncias competentes é chamado de direitista, como se a briga fosse entre valores da esquerda e da direita. Ora, o próprio ex-presidente Lula da Silva, em 2003, afirmou – para minha consternação – que nunca fora de esquerda. Que Paulo Maluf nunca se aliara com a esquerda, dava para saber. Mas Lula?

É certo que a presidente Dilma não pode ser afastada do cargo pelo governo muito ruim que vem fazendo. Nem pela propaganda terrivelmente enganosa de sua campanha eleitoral de 2014. Nem ainda pela desconstrução impiedosa da também candidata a presidente Marina Silva naquela disputa. Todavia, se há sinais de crime de responsabilidade identificados em comportamentos do governo da presidente, é admissível que o processo de afastamento seja aberto. Isso não significa, contudo, que a iniciativa terá sucesso. Caso fique provada sua ilegalidade, cabe à Justiça pronunciar-se com base na Constituição e nas leis. Achar que o chamado golpe vingará é admissão implícita de fragilidade em relação aos argumentos da acusação à presidente. Se esta última tem razão, não deveria nunca enveredar em seus pronunciamentos pelo caminho do ódio, da virulência, da agressividade. Estadista tem que ser sereno, estoico, equilibrado, seguro de seus valores elevados (se o forem, claro). Contribuir para que a nação se afunde, por motivos políticos, em clima de briga de galeras de futebol, é não saber fazer jus à herança de estadistas como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 4.4.2016
Werner Baer, pessoa ímpar
Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            Conforme notícia do Diario, o economista e grande brasilianista Werner Baer, professor da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (EUA), faleceu ali no dia 31 de março último. Pessoa discreta, Werner, que se tornou meu amigo em dezembro de 1962, exerceu papel fundamental na preparação de centenas de economistas brasileiros nos últimos 50 anos. Só quem com ele conviveu – meu caso e o do presidente do Diario, seu aluno nos States, Alexandre Rands, como também meu filho Tiago e nora Juliana – é capaz de testemunhar essa sua condição. Não fosse ele, de fato, uma leva importante de graduados de economia do Brasil não teria tido a chance de fazer boa pós-graduação fora do país. Em 1963, quando me formei, a única pós-graduação brasileira de economia era um curso de aperfeiçoamento no Rio, na Fundação Getúlio Vargas (FGV), do qual fui aluno.
Werner começara a estudar o Brasil desde que se doutorou em Harvard (1958). Ligou-se então à FGV e especialmente aos economistas Annibal Villela (1926-2000) e Mário Simonsen (1935-1997), este último o cérebro da pós-graduação de economia na FGV. Fui seu aluno em 1964. Por ele indicado, fui da FGV para a Universidade de Yale, onde o prof. Baer ensinava. No meu período lá, tive o privilégio de conviver com Celso Furtado, que fora deposto da Sudene pelos militares e atraído com uma oferta de professor visitante em Yale, graças a Werner. Na verdade, essa foi uma constante do meu grande amigo: ajudar perseguidos políticos. Ele, por exemplo, conseguiu que Luciano Coutinho, atual presidente do BNDES, ameaçado pelo AI-5 em 1969, fosse fazer doutorado na Universidade de Vanderbilt (EUA), para onde se mudara de Yale em 1967. Fez o mesmo com José Almino de Alencar, filho mais velho de Miguel Arraes.

Em janeiro de 1966, como professor da UFPE, convidei Werner para dar aula numa incipiente pós-graduação de economia que Roberto Cavalcanti de Albuquerque e eu iniciáramos. Começou duradoura parceria dele com a UFPE. Em 1967, Roberto e eu, com colegas de sociologia, iniciamos o Pimes (Programa Integrado de Mestrado em Economia e Sociologia) na UFPE. Werner era assessor da Fundação Ford para economia. Deu-nos todo o apoio. Fundou-se uma pós-graduação firme que se fortaleceu com o tempo. O Pimes virou centro de excelência de economia no Brasil. Por ele cruzaram pessoas como Carlos Osório, Cristovam Buarque, Adriano Dias, Yony Sampaio, Maurício Romão, André Magalhães, Gustavo Maia Gomes, Jorge Jatobá. A Universidade de Vanderbilt foi trocada, em 1974, pela de Illinois, para onde Werner foi atraído por boa oferta de emprego. Nela prosseguiu seu trabalho magnífico de preparação de gente qualificada. A mim, Werner, com sua generosidade admirável, fez diversos convites para visitar Urbana-Champaign. Para isso, dispunha de recursos que lhe foram concedidos por seu amigo de Harvard, o brasileiro Jorge Paulo Lemann. Recursos esses a fundo perdido, em valor considerável, que Werner administrava com zelo e decência, colocando-os em aplicações de cujos rendimentos fazia seu trabalho intelectual profícuo e generoso. Uma pessoa ímpar. Amigo extraordinário.

Werner Baer, a unique person
Clóvis Cavalcanti
President, the International Society for Ecological Economics (ISEE)

As the Diario de Pernambuco newspaper informed, the economist and great Brazilianist Werner Baer, a professor at the University of Illinois at Urbana-Champaign (USA), died there on 31 March. A discreet person, Werner, who became my friend in December 1962, played a key role in the preparation of hundreds of Brazilian economists in the last 50 years. Only those who worked alongside him – my own case, and that of the president of the Diario newspaper, his student in the States, Alexandre Rands, as well as my son Tiago’s and daughter-in-law Juliana’s – can testify to this special quality of Werner's. Were it not for him, in fact, an important contingent of Brazil’s students of economics would not have had the chance to do good graduate studies abroad. In 1963, when I got my B.A., the only Brazilian graduate program in economics was a specialization course in Rio, at the Getúlio Vargas Foundation (FGV), of which I was a student.
Werner started studying Brazil upon finishing his doctorate at Harvard (1958). He then became connected with FGV, and especially with the economists Annibal Villela (1926-2000) and Mário Simonsen (1935-1997), the latter being the brain of the economics course at FGV. As one of  FGV's students in 1964, in August of the same year, I was indicated by Simonsen to go from FGV to Yale University, where Prof. Baer taught. In my time there, I had the privilege of studying under Celso Furtado, who had been deposed by the military from SUDENE and who had been taken on as a visiting professor to Yale thanks to an offer arranged by Werner. In fact, this was a constant of my great friend: to help victims of political persecution in Brazil. He managed, for example, to get Luciano Coutinho, the current president of BNDES, threatened by AI-5 in 1969, into Vanderbilt University (USA) – where he had moved from Yale in 1967 – as a Ph.D. student. He did the same for José Almino of Alencar, eldest son of Miguel Arraes.
In January 1966, already as a professor at UFPE, I invited Werner to teach a course at an incipient graduate program in economics that Roberto Cavalcanti de Albuquerque and I had started. This way, he began his lasting partnership with UFPE. In 1967, Roberto and I, with fellow sociology people, established Pimes (the Integrated Master’s Program in Economics and Sociology) at the university. Werner was then an economics advisor to Ford Foundation. He gave us all the support we needed. A solid graduate program that has strengthened over time was created.  Pimes became a center of excellence in economics in Brazil. People like Carlos Osório, Cristovam Buarque, Adriano Dias, Yony Sampaio, Maurício Romão, André Magalhães, Gustavo Maia Gomes, Jorge Jatobá were attracted to it. In 1974, Werner, having received an excellent job offer, moved from Vanderbilt University to the University of Illinois at Urbana-Campaign. In his new work, he continued his previous magnificent activity of allowing promising students from all over Brazil to proceed toward more qualified training in the US. To me, Werner, with his admirable generosity, made several invitations to visit Urbana-Champaign. For this and other initiatives as well, he counted on the support of funds given to him by Jorge Paulo Lemann, his Brazilian friend from Harvard. These sums were donations of considerable value, which Werner invested with care and decency in order to cover his admirable and fruitful work. A unique person. An extraordinary friend.


Published by Diario de Pernambuco on April 4, 2016.


Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 29.3.2016
Desvios de Conduta
Clóvis Cavalcanti
Presidente-Eleito da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)


No dia 14/12/2003, o respeitado sociólogo pernambucano Francisco (Chico) de Oliveira, meu amigo desde 1960, professor da USP, escreveu artigo na Folha de São Paulo comunicando seu desligamento do PT. Chico e eu tínhamos passado uma semana em Havana pouco antes (outubro), em reunião de cientistas sociais da América Latina, à qual o próprio Fidel Castro compareceu. No primeiro dia, Chico falou na cerimônia de abertura. Criticou ali o presidente Lula da Silva e seu governo. Fidel, depois, até brincou: “Chico, vou contar a Lula...” Na verdade, Chico de Oliveira amadurecia uma avaliação crítica da experiência de governo (menos de um ano) do partido de que foi entusiástico fundador. Em seu artigo para a Folha, na volta de Cuba, ele avisava: “Aqui não me dirijo a qualquer instância formal do partido, nem aos seus dirigentes no próprio partido e no governo, mas aos petistas e aos cidadãos em geral. Aos primeiros por ter compartilhado com eles a militância durante todos os anos de existência do partido, e aos segundos por serem os únicos detentores formais, pela Constituição, do poder republicano e democrático, aos quais o Partido dos Trabalhadores e seu governo devem Chico acrescentava: “muito além do que imagina e pensa a direção partidária, o PT tem que dar satisfações à cidadania, que lhe deu as condições para disputar democraticamente e chegar ao governo. Falta a essa liderança consciência democrática e republicana, enquanto lhe sobram arrogância, prepotência e maneirismos caboclos de péssima fatura”. Segundo Chico, havia “transformações estruturais na posição de classe de um vasto setor que domina o PT”, uma “real mudança do caráter do partido”. Daí, “como posições de classe não se mudam com simples mudanças de nomes ou de conjuntura ou de melhoria de alguns indicadores econômicos, considero que o governo Lula está aprofundando a chamada ‘herança maldita’ de FHC e tornando-a irreversível”. 

Não vou comentar sobre o que Chico pensa hoje, nem entrar na discussão acerca da “herança maldita”. Para mim, os comentários do grande sociólogo em 2003 registram desagrado em face de desvios de conduta, de mudança de caráter que ele percebia em seu partido. Ora, muita gente também experimentou igual sensação. Nunca fui petista, mas admirava a proposta do PT, que introduzia novidades boas no cenário político brasileiro. A incorporação de gente que lutava em defesa do meio ambiente, caso de Chico Mendes e sua grei de seringueiros no Acre (Marina Silva, inclusive), era uma dessas coisas. Na campanha de 2002 – afora a tolice do discurso do “Espetáculo do Crescimento” –, se podia imaginar um governo do PT que iria alforriar as camadas humildes da população, e não contribuir, pela via do assistencialismo, para sua perpetuação. Eu sonhava em ver as crianças de rua sumirem, como sumiram em Cuba – onde, aliás, a educação é a melhor da América Latina. Por que não aproveitar esse modelo e, ao invés de importar médicos, seguir linhas de ação como as de Cuba? Infelizmente, humildade, simplicidade, moderação faltam àqueles que poderiam ter feito do PT uma alavanca de grandes transformações no país.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 15.3.2016

1964 e 2016: Grandes Diferenças
Clóvis Cavalcanti
Presidente-Eleito da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

            No dia 31.3.1964, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, no alto da primeira página citava a Constituição: “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Logo depois, acrescentava: o Presidente João Goulart desrespeitara tal dispositivo; não podia mais governar. No Rio desde janeiro fazendo pós-graduação de economia na Fundação Getúlio Vargas (tinha me formado em dezembro de 1963 na UR, depois UFPE, tendo Manoel Correia como paraninfo e patrono, Caio Prado Jr., dois nomes fortes do pensamento de esquerda), gelei. O golpe militar em processo, com apoio civil, ameaçava a luta estudantil em que eu participara como membro do Conselho da UNE, até setembro de 1963. No dia do golpe, perdi meu primo Ivan Aguiar, morto pelo Exército no Recife, protestando contra a deposição de Miguel Arraes. No Rio, na Praia de Botafogo, carros de combate punham a correr estudantes (eu no meio). Próximo dali, o prédio da UNE era incendiado. Momento aterrador e triste. Testemunhei verdadeiro golpe (nada de impeachment por meios legais). Em 1960, eu votara em Lott para presidente, e em Goulart (Jango) para vice.
            Nessa ocasião, o Brasil se dividia ideologicamente. Ninguém acusava Jango de roubar, de enriquecer, de receber presentes de amigos, velhos ou novos. Nem ele, nem seus ministros, nem os dois governadores depostos em 1964 – Arraes, em Pernambuco, e Seixas Dória, em Sergipe (ladrão só o direitista governador Adhemar, de São Paulo). O governo federal era considerado ponta de lança da ameaça comunista, pondo em risco a propriedade privada, o latifúndio, privilégios das elites, a religião. Semanas antes do golpe, uma cruzada religiosa, nascida da ação de um padre católico nos EUA, buscava despertar o fervor dos fiéis contra o comunismo ateu. Grupos católicos organizavam “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”. Elas assustavam: pessoas com rosário na mão invocavam intervenção contra supostos perigos da esquerda. Como católico praticante, eu achava isso um desrespeito ao verdadeiro cristianismo. No Vaticano, aliás, o notável Papa João XXIII (1881-1963) dava exemplos de tolerância e aproximações com a esquerda. Em 1964, uma inflação violenta (100% em 1963!) assolava. Isso piorava o quadro político. No entanto, o conflito era mesmo ideológico.
            Em 2016, embate similar não acontece. Nunca votei em FHC, mas várias vezes, sim, em Lula (a última, em 2003). Muita gente que conheço encontra-se nessa situação. O que causa dor é ver a dimensão dos casos de corrupção e desrespeito à ética que se espalham nas esferas federais. Bem diferente de 1964. Embora menos sério, o problema da inflação ameaça a sociedade. Para neutralizá-lo, as medidas têm que apelar para o bom senso econômico – e, nesse ponto, só há uma ortodoxia, que vale tanto para a esquerda como a direita: tem-se que controlar o gasto público e o endividamento. Querer fazer pajelança ou magia para acabar com a inflação é bobagem perigosa.
Estranhamente, para mim, em Caracas, em 2003, ao lado de Hugo Chávez, o presidente Lula disse que não gostava do rótulo de esquerdista. Repetiu que não era de esquerda no Planalto, em 14 de julho de 2006. Francamente, querer fazer comparações entre 1964 e 2016 é não enxergar bem esses dois momentos da história brasileira.

Artigo Publicado Diario de Pernambuco, 3.3.2016

Seriedade da Crise da Economia Mundial e o Papa Francisco
Clóvis Cavalcanti
Presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco) e Presidente Eleito da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)


            É penosa a constatação da crise que açoita a economia brasileira. Mas o problema não é só do Brasil. Na verdade, há uma situação que alcança todo o planeta, e não porque se viva num mundo globalizado. A situação resiste às iniciativas de solução com base em ferramentas conhecidas dos economistas e dos que seguem sua orientação. Agora mesmo, as taxas de juros do Brasil, por exemplo, são altíssimas. No Japão, porém, o banco central colocou-as com sinal negativo. Em outros países, elas são nulas ou quase isso. Mas os efeitos desse rol de providências não parecem alentadores. Uma questão é que a realidade de hoje não corresponde à de quando grande parte dos modelos econômicos consagrados foi concebida. Isso pesa. Em 1900, para lembrar, a população mundial era de 1,5 bilhão de pessoas. Hoje, 115 anos depois apenas, ela é de 7,4 bilhões: aumento de quase cinco vezes. E a produção de bens e serviços finais da economia planetária (o PIB global), passou, a preços de hoje, de 2 trilhões de dólares em 1900 para 80 trilhões de dólares atualmente. Essa enorme expansão, de 40 vezes, significa duas coisas de que os economistas e seus assessorados geralmente fazem vista grossa. Uma é a extração de recursos (inevitável), cada vez maior. E a outra é algo que lhe corresponde, em termos de massa (pelas leis da Física, particularmente a 1ª Lei da Termodinâmica): igual deposição de dejetos na natureza – poluição de todo tipo, inclusive energia calorífica, sucatas, produtos usados e jogados fora (nada tem vida útil eterna), restos de insumos.
            O crescimento econômico não constitui um detalhe nesse panorama. Ele é a essência do que acontece. De fato, tudo o que se faz hoje em matéria de política pública em quase todos os lugares da Terra consiste em se buscar aumentos seguidos da atividade econômica. Não é à toa que, no Brasil, desde 2003, a prioridade tem sido o que, no começo, se chamava infantilmente de “Espetáculo do Crescimento” e, mais tarde, de Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Crescimento econômico, como está definido nos livros-texto das faculdades de economia do mundo, significa elevação na produção e consumo de bens e serviços. Do ponto de vista das transformações que ocorrem, ignoradas solenemente nas teorias econômicas dominantes – sejam elas neoclássicas, marxistas, etc. –, o sistema requer insumos físicos (faz-se uma mesa, um computador de quê?) e expele lixo no final (tudo vira lixo, inclusive nós). Isso quer dizer que, com base em princípios da Física e da Ecologia, existem limites para o crescimento econômico. Por mais avançada que seja a tecnologia, ainda não se descobriu como fazer um automóvel imaterial, ou uma casa angélica.
Por outro lado, expandir a economia, além de custos como esses, gera benefícios. O problema é comparar custos e benefícios – uma tarefa para que os economistas são especialmente treinados. Ao se aumentar a produção de uma unidade, a parcela de benefícios gerados vai contar a favor – e é isso o que a contabilidade do PIB tenta mostrar. Ela oculta, porém, o lado dos custos. A produção de mais uma unidade implica adição de custos. É concebível que, durante muito tempo, os custos adicionais tenham ficado abaixo dos benefícios adicionais da produção. Mas essa não é uma regra eterna. Usando as concepções da própria teoria econômica dominante, podem-se admitir benefícios adicionais (B) que declinam e custos adicionais (C) que sobem. Enquanto B for maior que C, tudo vai bem. Mas pode acontecer que B se iguale a C, e passe a ficar abaixo de C. Neste caso, o crescimento deixa de ser econômico e assume a condição de não-econômico ou antieconômico: penaliza mais do que premia. Quem garante que isso não esteja acontecendo agora? Segundo o WWF, respeitada ONG suíça, efetivamente, a realidade do planeta é de se estar com uma pegada ecológica global que é 50% maior do que a biocapacidade disponível. Ou seja, usa-se, por ano, 50% mais serviços da natureza do que são proporcionados no planeta. Trata-se de uma situação insustentável.
A sensação de dificuldade que se tem de todo lado pode ser sinal de valores de C maiores do que os de B. Como enfrentar isso? Se a recente (junho de 2015) e admirável carta encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, for lida com atenção, será possível vislumbrar uma perspectiva do problema e o apelo feito para um mundo de consumo sóbrio. Infelizmente, quase ninguém leu o recado do Pontífice. Seu raciocínio possui enorme correspondência com o que um grupo de cientistas, de todas as áreas do conhecimento, tem desenvolvido há quase três décadas no marco da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE: www.ecoeco.org). Dela, aliás, o que muito me honra, acabo de ser eleito presidente.



Artigo Publicado DP, 16.2.2016

“Much Nicer than Salvador”
Clóvis Cavalcanti
Presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco) e Presidente Eleito da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Pus o título acima, em inglês, para contar o que ouvi de turista austríaco no domingo de carnaval deste ano. “Much nicer than Salvador” pode se traduzir por “muito mais gostoso do que Salvador”. O turista, com a esposa, saía do (agradável) Hotel 7 Colinas, defronte de minha casa em Olinda. Vi que o casal procurava informação. Eram 9h30. Quis saber o que buscavam. Eles iam atrás do “Birô de Turismo”. Queriam guia para andar pelo sítio histórico. Não era o momento mais propício para um tour convencional – falei-lhes. Mencionei a concentração do bloco Enquanto Isso na Sala de Justiça, que estava se iniciando no Alto da Sé. Contei que Vera, minha mulher, e eu íamos para lá. Sugeri que fossem conosco. Os austríacos nos acompanharam. Falavam inglês. Expliquei ao casal algumas coisas do carnaval olindense. Eles devem ter se admirado de verem a mim e a Vera fantasiados de Sacis Pererês (sendo o bloco para onde íamos de super-heróis, nossa escolha evitava Capitães América, Mulheres Maravilha, e assemelhados). No Alto da Sé ficamos juntos um pouco e terminamos nos separando. Uma hora depois, encontramos o casal, que chegara da Bahia no sábado. Foi aí que o marido comentou: “much nicer than Salvador”.
            Disse isso porque teve ali uma idéia da diferença notável entre o carnaval espontâneo de Olinda e a produção mercantilizada do baiano. Em Olinda, prevalece um baile de rua livre, gratuito, com a animação que produzem troças, blocos, clubes maiores (Vassourinhas, Homem da Meia-Noite, Pitombeiras, Elefante), maracatus, cabocolinhos (expressão popular da denominação culta caboclinhos), afoxés, la ursas, grupos de samba. Graças à vibração, à garra dessas manifestações culturais autênticas é que agrada tanto o carnaval olindense. As orquestras de chão arrastam com seus acordes mágicos grandes multidões de admiradores do frevo, o ritmo que prevalece. E não é um ritmo qualquer, mas “uma dança que nenhuma terra tem”. Vou atrás. É tanta coisa agradável – mas na maior parte durante o dia. À noite, o carnaval fica tumultuado, muita gente bêbada, parada no meio da rua. Um dado que só traz bem-estar e prazer a quem admira a folia no seu perfil tradicional é ver que sobrevive em Olinda o carnaval que um frevo diz “foi os anjos que inventou [sic]”.

Interesses comerciais, contudo, tentam impor modelos distintos: casas-camarote (expulsas do Sítio Histórico, para alegria dos moradores, desde 2015), shows para gente que fica parada defronte de um palco repetindo coreografias estereotipadas, decorações à base de símbolos medíocres de marcas de bebidas, etc. Há ainda o caso de músicas-lixo, como, este ano, uma tal de “Metralhadora”, que alguém jamais colocaria para o filho bebê ou mãe enferma escutar. Músicas que ofendem a sensibilidade. Ao contrário de obras-primas, como “Último Regresso”, de Getúlio Cavalcanti, ou “Madeira que Cupim Não Rói”, de Capiba. O carnaval de Olinda é prejudicado também pela invasão de automóveis que estacionam até em locais normalmente proibidos. Essas máquinas deveriam ser banidas das ruas onde se brinca, com tolerância zero para carros de não moradores, sem exceção de quem quer que seja. Do mesmo modo, as calçadas têm que ser liberadas só para o movimento das pessoas. Vendedores de comida e bebida não poderiam ficar nunca atravancando esse espaço como acontece hoje. Sua localização tem que ser em locais específicos, à margem da folia. E a sujeira monumental que emporcalha a cidade? Bom, a questão é de educação ruim e baixo nível cultural da população. Tudo isso se combina para ameaçar o carnaval de Olinda. Mesmo assim, porém, ele ainda é much nicer do que o de Salvador. Não se pode esquecer isso.

Artigo Publicado DP, 27.1.2016

Carnaval Olindense
Clóvis Cavalcanti
Presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco)

            O carnaval é um dos traços da identidade de Olinda. Traço forte, a festa segue modelo admirável de convivência democrática e alegre. Não admite guetos, nem cercas, nem camarotes, nem abadás que restrinjam a presença de quem quer que seja nos desfiles de blocos, troças e todo tipo de agremiação. Os moradores do Sítio Histórico de Olinda, que é o palco da folia, têm consciência disso. Daí por que não podem tolerar mudanças que acabem com o modelo adotado na cidade há bem mais de um século. No interessante livro Olinda, Carnaval e Povo (de 1982), o jornalista, publicitário, compositor e pesquisador, nascido e criado na Ilha do Maruim (bairro periférico de Olinda), José Ataíde, explica bem a magia do carnaval de sua cidade. E, cobrindo o período de 1900-1981, revela a genética dessa tradição, que persiste, apesar das ameaças que contra ela pairam permanentemente. Aliás, um requisito para o candidato que deseje ser prefeito de Olinda deveria ser que, além de amá-la, seja um carnavalesco de fazer o passo no meio da multidão, sem medo de empurra-empurra, de suor ou da espontaneidade de pessoas que se abraçam e trocam amizade em plena rua. Infelizmente, o prefeito atual de Olinda, Renildo Calheiros, além de não ter vivido nunca um carnaval como o olindense, jamais se entregou ao frevo de forma anônima e descontraída. De qualquer forma, teve a sensatez de vetar a lamentável proposta de isolamento pretendido por pessoas que buscam casas-camarotes para brincar o carnaval. Esse tipo de comodidade é algo que não está registrado no livro de José Ataíde como parte da brincadeira de Momo.
            Para garantir que a tradição não morra – tradição que poderia ser uma fonte de renda para quem vive de um turismo consistente (como o Santo Antônio em Lisboa) –, os olindenses têm se empenhado em proteger de toda forma o carnaval da cidade. Em 1980, houve o banimento dos carros, uma iniciativa dos moradores, que funcionou com permissão da prefeitura, a qual a oficializou em 1981. Essa proibição a carros de não moradores de não entrar no Sítio Histórico deveria prevalecer nos fins de semana, sobretudo no período que vai de dezembro a março. No domingo 24 do corrente, a invasão de carros na cidade dificultava a saída de blocos nos seus ensaios de rua – como o Eu Acho É Pouco. Outra coisa que degrada o carnaval de Olinda é a indisciplina com que se permite a venda de comida e bebida para os foliões (com suas montanhas de lixo, um problema dos foliões que chega a ser moral). Barracas que dão aspecto de acampamento de país miserável à cidade (no Recife Antigo, se adota um modelo mais agradável de ver) se somam a cozinhas improvisadas com fogões acesos e vendedores ambulantes transportando mercadorias em carros de mão rodeados de foliões. De um lado, música, animação, dança, gente bonita de ver e, do outro, a infraestrutura de um submundo de miséria extrema expondo um esqueleto deformado. O carnaval não deveria ser assim tão comprometido.

             
-------

Jornal do Brasil, 7.9.1981

Jornal do Brasil, 2.2.1981























-------------

Artigo meu, publicado hoje, 13.1.2016, no Diario de Pernambuco (abaixo). Eu escrevi nesse jornal desde 1998, regularmente. Em junho de 2014, um artigo meu foi censurado. Decidi não mais escrever para ele. Agora, com novos proprietários -- os irmãos Alexandre e Maurício Rands, empresários competentes --, volto a escrever.


Ameaças à excepcionalidade de Olinda
Clóvis Cavalcanti
Presidente de Honra da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (EcoEco)
“Para quem visita Olinda e não se perde em detalhes, a cidade aparece na observação a partir de um alto como o da Sé, através da forma harmoniosa das casas, da silhueta altiva das igrejas, das copas ondulantes dos coqueiros, mangueiras, cajueiros, abacateiros, do brilhante azul do mar tropical. A visão justifica a origem lendária do nome: ‘Ó linda situação para se fundar uma vila!’ Entretanto, um contato mais íntimo, demorado, com a realidade da antiga Marim dos Caetés ou Vila Mirim evidencia a condição de cidade ameaçada com que Olinda se apresenta hoje”. Essa narrativa é o começo de artigo meu publicado pelo extinto Jornal do Brasil – grande diário do Rio de Janeiro – no dia 2 de fevereiro de 1981. Cabe perfeitamente, porém, para retratar uma situação bem atual. Pior: Olinda só se integrou à lista do patrimônio cultural da Humanidade, por ato da Unesco – a agência da ONU encarregadas dos assuntos educacionais, científicos e culturais do mundo – em 17 de dezembro de 1982. Ou seja, tinha – e tem – a obrigação de não negar as características de “valor excepcional e universal” de um sítio que “requer proteção para benefício de toda a humanidade”, motivo de sua escolha para ser cidade-patrimônio (World Heritage), como diz o diploma da Unesco. “Monumentos abandonados, rachões que se multiplicam ... calçadas que se desfazem” eram situações que, entre outras, eu assinalava em meu artigo de 1981. Queria dar um grito de olindense para chamar a atenção quanto ao descaso, ao abandono, à forma perigosa com que se estava tratando lugar tão excepcional e único, característica perfeitamente percebida pela Unesco.
Assim, além de bradar contra a irresponsabilidade relativa aos cuidados com minha linda Olinda, eu acrescentava: “a despeito disso tudo, a primeira capital de Pernambuco continua exercendo um fascínio sobre seus moradores, sobre os visitantes que a ela acorrem, sobre os apreciadores da documentação viva de nossa história, que é o mesmo que maravilhava Joaquim Nabuco, que fez Darwin preferir Olinda ao Recife. Essa atração não se apaga facilmente; afinal, ela é produto da luz, do brilho, da luminosidade que conferem aos verdes tropicais olindenses ... uma cor doce e ao ar cálido, uma leveza ... responsáveis por agradáveis sensações táteis”. Adicionava a singularidade das manifestações culturais de Olinda, a exemplo do carnaval, “o gostoso carnaval de rua, livre, descontraído, sem exageros”, democrático, aberto, barato, de acesso fácil para quem tem baixa renda. Minha preocupação, então e agora, era, e é, de que se esteja fazendo tudo para insidiosamente acabar com os atrativos olindenses. Um périplo pela cidade, a partir de minha casa na privilegiada localização junto do convento franciscano mais antigo do Brasil – com belas vistas para todos os lados, a da direção sul infelizmente aviltada, se bem que ao longe, pelas miseráveis torres do Cais de Santa Rita –, permite verificar como a cidade vai se desfazendo. O adro do convento meu vizinho foi completamente desfigurado por uma obra de dez anos atrás, inconclusa e que se destinava, supostamente, a “revitalização” do local. Ficou dela um canteiro de obras, um desnível absurdo entre a via pública da frente do convento e a pracinha com o cruzeiro abaixo, desnível protegido por gradil mambembe de metal, verdadeira gambiarra. Sobressai a pouca, rala inteligência de quem iniciou a obra e a abandonou posteriormente.
Entristece ver a situação a que chegaram os templos do Bonfim e São Pedro Mártir, ameaçados de ruir. Fiações caóticas, com postes que parecem de galpões de depósito de periferia urbana constituem a rede de distribuição de energia da cidade. Como é possível que isso ainda exista quando, há mais de dez anos, se iniciou um processo de embelezamento de postes e ocultação de fios que ficou limitado, no entanto, a 3 ou 4 vias públicas? Na área do Fortim do Queijo, implantou-se um calçadão há menos de 8 anos, com lajes de pedra muito frágeis que se desmancham e pedem reposição a ritmo escandalosamente curto. Sujeira, mau cheiro, pichações – não há limite para a criatividade do que é negativo em Olinda. A isso se soma o barulho de bares e shows ao ar livre, com música lixo (que ninguém, nem mesmo seus autores, poria no quarto de um recém-nascido ou de um doente da família). Dentro de minha casa, sou obrigado a ouvir escolhas musicais que jamais faria (sinto-me muito bem, todavia, quando ouço os cânticos gregorianos no Mosteiro de São Bento de Olinda). E olhe que nem moro ao lado de quem produz a miséria auditiva de música bate-estaca, o que me faz imaginar o suplício de quem está junto dessa fonte.
Recentemente, se inventou a porcaria das casas-camarote – guetos para ricos e apaniguados – no carnaval de Olinda. Dentro desses espaços de folia pasteurizada, alguns dos quais chegaram a funcionar até 2013, faziam-se shows para os que deles se serviam pagando fortunas ou, de graça, fazendo parte de panelinhas de privilegiados, que ofendiam o carnaval de rua e agrediam os moradores próximos. Graças a Deus, a prefeitura não aprovou essas casas-camarote em 2014 e 2015. Isso, depois que a população que sabe o que é o carnaval de Olinda se mobilizou, fez protestos e impôs o perfil tradicional da cultura olindense. Aliás, foi uma inciativa dos moradores do Sítio Histórico, em 1980, que tirou o trânsito de veículos das ruas do carnaval olindense. Naquele ano, a prefeitura não assumiu oficialmente o fechamento da cidade, mas concedeu permissão para que os moradores o fizessem. Funcionou tão bem que, em 1981, e daí em diante até hoje, a prefeitura proíbe a circulação de carros nas ruas reservadas para a folia. Melhorou muito a animação e curtição do carnaval depois disso. Contudo, é assustadora a quantidade de veículos de não-olindenses que consegue entrar nas ruas fechadas do Sítio Histórico de Olinda e nelas estacionar durante o carnaval. Minha rua, por exemplo, à noite, normalmente, só registra a presença de 4 ou 5 carros estacionados – dois deles o de Vera, minha mulher, e o meu. Nas horas diurnas do carnaval, porém, estacionam até 50 carros. Um absurdo, pois é invasão de veículos sem nada a ver com a vida quotidiana da cidade. Não é possível que a excepcionalidade de valor cultural e universal de Olinda seja jogada no lixo e se termine levando a Unesco a retirar o título que conferiu à cidade, com toda justiça, em 1982.






Artigo NÃO publicado no DP, Dom 8 de Junho de 2014 


escrevi o artigo abaixo para o "Diario de Pernambuco" de hoje (8/6/2014). Não publicaram. Compreendo que o jornal tenha sua linha editorial. Respeito a posição alheia. Mas foi a primeira vez em que escrevo para essa coluna (desde 1999) e o texto não sai.

ADMIRÁVEL MOVIMENTO DE PROTESTO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Uma reação da sociedade civil contra o chamado Projeto Novo Recife transformou-se aos poucos em belíssimo movimento social: o #OcupeEstelita. Infelizmente, na sua evolução, essa iniciativa não contou com cobertura forte dos meios de comunicação recifenses, valendo-se apenas das redes sociais que, como se sabe, não alcançam certas camadas da população. Mesmo assim, o OcupeEstelita – inspirado nas sugestivas mobilizações aparecidas em 2011, em Nova York, com o Occupy Wall Street – ganhou a adesão de número expressivo de pernambucanos.
O que quer esse movimento? Discutir uma visão de cidade que signifique bem-estar genuíno para todos, que não sucumba à ganância insaciável da especulação imobiliária, que não deforme o que resta da linda herança urbana do Recife. O oposto do propósito do Projeto em questionamento, aprovado, sim, formalmente, nos níveis de decisão (fechados, opacos) do governo municipal, mas não submetidos a debates (abertos, transparentes) com todas as partes interessadas, com todos os atores sociais (stakeholders) relevantes. É só comparar as imagens disponíveis do Recife nas décadas de 1940 e 1950 – quando, como criança e adolescente, eu me familiarizei com elas – com as do Projeto Novo Recife e seus espigões descomunais. Que seguem o exemplo das lamentáveis Torres Gêmeas do Cais de Santa Rita. E do mote de devastação dado pelo esdrúxulo prefeito Augusto Lucena, imposto pelos militares em 1964. Isso não pode vingar, diz o Estelita, apoiado já agora por enormes segmentos da sociedade.

Assim, soa como ofensa gratuita, como classificação aberrante, o que escreveu jornal do Recife a propósito das pessoas idealistas que integram o movimento: “protestadores profissionais”. Todos os pernambucanos deveriam era agradecer a Deus por nos dar uma forma de protesto civilizada, educada, dentro da lei como a do #OcupeEstelita. Um exemplo de Primeiro Mundo, de como deve ser a reação da sociedade diante de coisas absurdas que incomodam. Foi o Novo Recife objeto de elucubrações técnicas perfeitas? Passou por todas as instâncias deliberativas previstas? Fez-se isso de forma nítida, criteriosa e irreprimível? Quem garante? O fato é que a sociedade despertou. Com uma vanguarda decente, digna, admirável.


Artigo publicado no DP, Dom 25 de maio de 2014 


SAQUES ESCANCARADOS E À SURDINA

Clóvis Cavalcanti

Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br



Em artigo recente, Leonardo Boff comenta o linchamento de uma inocente, Fabiane Maria de Jesus, em Guarujá (SP). Apontada como responsável pelo seqüestro de crianças para sacrifícios em práticas de magia negra, ela nada tinha feito quanto a isso (e se tivesse, não era para a população justiçá-la com as próprias mãos). Diz Boff: esse “fato constitui um desafio para a compreensão, pois vivemos em sociedades ditas civilizadas e, dentro delas, ocorrem práticas que nos remetem aos tempos de barbárie, quando ainda não havia contrato social nem regras coletivas para garantir uma convivência minimamente humana”. Tem razão.

Tal raciocínio se adéqua também aos episódios abomináveis que ocorreram nos dias 14 e 15 do corrente quando a Polícia Militar de Pernambuco, em greve, deixou de cumprir suas funções. Hordas de potenciais delinqüentes, assumindo de forma desinibida sua condição, invadiram as ruas desprotegidas de cidades do estado, cometendo saques e destruição de patrimônio. As cenas a que, no conforto de nossas casas, pudemos assistir no noticiário de TV, eram deprimentes, revoltantes, amedrontadoras, lastimáveis. Muitas pessoas, gente simples do povo, entrevistadas nas áreas de registro dos fatos, revelavam seu horror, sua desaprovação, sua vergonha diante do que viam. Do outro lado da realidade, os vândalos corriam como bestas feras, muitos rindo, divertindo-se com o saque que faziam. De quê? De eletrodomésticos, de eletrônicos – mas também de sapatos, colchões, alimentos e até papel higiênico.

Uma análise profunda do fenômeno certamente penetrará na síndrome dessa desgraça. É tarefa para sociólogos, cientistas políticos, psicólogos sociais. Entretanto, como espectador do caos, eu só via pessoas de aparência humilde, de baixíssimo nível de educação. Excluídos, prováveis clientes de programas sociais como o Bolsa Família (que não convence como projeto permanente). Essa camada vive sob a influência da televisão, que incentiva o consumo, mostrando sempre a beleza de produtos inalcançáveis para a maioria da população. Humilhados, com sentimentos reprimidos, os miseráveis só são contidos no quotidiano pelo medo da resposta dura da autoridade policial. Sem esta, não respeitam nada: não têm o que temer.

Ao mesmo tempo, o cidadão atento percebe que um saque disfarçado se faz no país com o enriquecimento ilícito, com a apropriação do dinheiro público, com a destruição do patrimônio histórico e da natureza. O processo que leva a ele é oculto, disfarçado; possui roupagem que engana. Só se desnuda quando algo vaza da máquina que o alimenta. Mas é saque. Não tem corre-corre, não causa estupor, não envergonha a quem o assiste nem quem o pratica. Os que o cometem, por certo não se tocam pela desonra do ato indecoroso. Agem como vestais acima de qualquer suspeita. E ainda se julgam injustiçados quando apanhados pela Justiça. O verdadeiro saque de quem se apropria da paisagem e bens da natureza é crime também. Que direito tem quem quer que seja de seqüestrar a vista que o cenário nos oferece, nele erguendo espigões, torres de concreto, obras feias? Para mim, é saque. Não como o dos excluídos, que tanto opróbrio causa. As elites cometem saques à surdina, de modo solerte.
 

Artigo publicado no DP, Dom 11 de maio de 2014

A DESGRAÇA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Incomoda ver discursos triunfalistas das autoridades e verificar que a realidade da vida no país destoa muito do cenário dourado oferecido. Veja-se o caso da privatização da telefonia. No tempo da Telpe estatal, nunca, em 30 anos, meus telefones penaram tanto. Qualquer defeito era sanado sem demora – e a empresa provia tudo que fosse necessário para a solução do problema. Cabia só ao usuário pagar, como de direito numa sociedade civilizada sob o império da lei. Hoje, sou, como muita gente, uma vítima dos maus serviços da telefonia fixa. Na minha casa, havia até recentemente duas linhas da Oi. Uma delas estava sempre a dar problemas. No fim do ano passado, ficou mais de um mês muda. Pedíamos conserto, a empresa prometia “em 48 horas”. Nada. Até que fizeram o reparo. Este ano, em janeiro, novamente a linha emudeceu. Pedidos de solução foram dirigidos à Oi, que prometia atendê-los nas tais enganosas “48 horas”. Depois de 2 meses sem o telefone e contas cobradas, e pagas em dia, de valor acima de 60 reais, decidimos cancelar a linha. Foram muitas ligações para conseguir essa providência. Na derradeira, minha mulher, Vera, que é quem assume a penosa tarefa de ficar ao telefone para tratar de nossas desditas, passou 40 minutos pendurada. Uma perda de tempo miserável. Do outro lado, a pessoa que atendia tentava convencer a não se fazer o cancelamento. Era uma tortura sem piedade. Prevaleceu afinal nossa vontade. Recentemente, a segunda linha ficou muda. Foram dadas as 48 horas da promessa de praxe, vã, da empresa, para solução do problema. Depois de 96, instante em que escrevo, nada foi feito. Isso jamais aconteceu com a antiga Telpe, cujos telefones de socorro eram de acesso imediato. Muito diferente de agora. Essa privatização constitui uma lástima.

No entanto, o sofrimento da população não se resume a empresas privatizadas. No Recife, os serviços de metrô, estatais, por exemplo, abusam de causar mal-estar à população. Não sou usuário deles. Só os utilizei uma única vez, até hoje. Foi há mais de 20 anos, para tomar ônibus no TIP. O trem era lentíssimo, sem brilho – nada parecido com os de São Paulo e Rio, sem falar naqueles que têm tradição de qualidade em muitas partes do mundo, como os de Santiago do Chile, por exemplo. Minha empregada, Taciana Martins, porém, usa metrô diariamente. Mora em Camaragibe. Cada dia de viagem é uma epopeia. Sai de casa às 5h30 para chegar às 7h30 no máximo ao trabalho em Olinda. Contudo, nunca o sistema funciona com a regularidade imaginada para o século XXI. Há dias em que o metrô pára no meio caminho. Noutros, quebra na estação – como na semana que passou em que, depois de 25 minutos dentro do trem, na estação de São Lourenço, avisaram que havia pane no comboio. Em outras ocasiões, o serviço é cancelado, caso de quarta-feira passada, em que os portões da estação de São Lourenço estavam fechados pela manhã. Como esperar que os trabalhadores sejam produtivos, eficientes; que os alunos tenham disposição plena para assistir às aulas; que as pessoas levem uma vida que as faça felizes? Certamente, essa expectativa não é atendida por serviços públicos lastimáveis como os que estão aí para atender às necessidades da população.  

Artigo publicado no DP, Dom 27 de abril de 2014 

2014 – COPA SEM EMOÇÃO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Desde 1950, acompanho a Copa do Mundo de futebol. Eu tinha 9 anos, não entendia muito do evento (estava em sua quarta edição), mas era despertado pela atenção que lhe dava minha avó (paterna) Iaiá. Lembro as emoções do momento, escutando as transmissões pelo rádio, nem sempre claras devido a interferências sonoras. Morávamos na Usina Frei Caneca (então município de Maraial) de que meu pai era contador. Minha avó estava lá de visita. O nome de Ademir Menezes ressoava em todo canto. Foi uma decepção perder do Uruguai na final. Tristeza generalizada, que ainda encontrei no Rio, em 1952, quando fui para lá estudar, interno, no Colégio Nova Friburgo. Nesse lugar, com meus colegas, vivi as angústias e vibrações das copas de 1954 e 1958, cujas finais acompanhei no Rio de Janeiro, sempre pelo rádio. Desde então, cada ano de mundial de futebol foi motivo para que eu me integrasse no clima de copa que o brasileiro vive intensamente. Em 2002, no mesmo domingo da conquista no Japão, eu tinha uma viagem a Lisboa. Tomei o avião de paletó verde, camisa azul e gravata amarela; a calça era bege. No embarque, alguém comentou, com razão, que eu deveria estar de calça branca! Desembarquei primeiro em Madri. Agradou-me ver os jornais com manchetes de primeira página exaltando o Brasil. Na copa de 2006, eu estava em Pretoria (África do Sul), onde testemunhei o massacre que Zidane e a França nos impuseram.
Quando o Brasil foi escolhido para sede da copa de 2014, achei excelente. Para que melhor vitrine, sobretudo se nosso futebol mostrasse de novo o esplendor de 1950, 1958, 1970, 1982, 2002? Às vésperas do próximo campeonato – o evento esportivo mais badalado do mundo –, meu sentimento é de frustração. Não temos nada a mostrar de esplendoroso, seja no futebol, seja em coisas que os visitantes admirem. Nisso, penso, estamos pior do que a África do Sul em 2010. Quando visitei o país no final da copa de 2006, imaginava que não havia como fazer ali um encontro do naipe do da Fifa. Em muitos aspectos, o Brasil me parecia à frente. No entanto, os sul africanos realizaram ótimo torneio. E lá existem atrações diversas para entreter os turistas. Nossa obrigação era a de oferecer algo melhor, mais organizado, superior em todos os aspectos.

Falando com franqueza, apesar dos 7 anos de preparação para a copa de 2014, estamos longe disso. Um estádio como a Arena Pernambuco espanta qualquer um. Não pretendo ir lá para que tipo de jogo seja. Sempre gostei de frequentar a Ilha, os Aflitos, o Arruda. Nutro pavor pelas instalações de São Lourenço. Eu ia ao Maracanã, no Rio, de bonde, quando estudante. Era fácil e rápido. Descia a 500 metros da entrada. Foi assim que vi Ademir, o Queixada, em 1954, num Vasco x Fluminense. Morando depois no Espinheiro, eu ia a pé para a Ilha e os Aflitos. Sai muito caro, em termos de tempo, comparecer à Arena Pernambuco. Por outro lado, há tanta coisa desconfortável no Brasil, hoje – como a saúde, a educação, o transporte público, o respeito à cidadania –, que é impossível criar um clima de euforia pelas proximidades do Mundial da Fifa. Gostaria que não fosse assim. Mas a atmosfera está mais para protestos como os de junho passado do que para a alegria e emoções que as copas sempre geraram. 

Artigo publicado no DP, Dom 13 de abril de 2014 

PERNAMBUCO, GOVERNO E MEIO AMBIENTE
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Pouco depois da memorável eleição de Miguel Arraes para governador do Estado em novembro de 1986, reuni-me com ele em seu escritório da ponte da Torre (conheci-o em 1959 quando seu filho, meu amigo José Almino, internou-se no mesmo colégio que eu em Nova Friburgo, RJ). Tivemos uma boa conversa. A seu pedido – e incentivado por Maximiano Campos, seu genro e amigo meu –, levei-lhe sugestões para o plano de governo. Propus: (1) reconsiderar o projeto do porto de Suape; (2) não construir lá uma refinaria de petróleo; (3) converter a casa de veraneio do governador de Porto de Galinhas em parque de convivência dos frequentadores da praia. Fiz mais outras sugestões, todas com foco numa gestão voltada para o tratamento de questões socioambientais esquecidas dos governantes em Pernambuco. Eu sabia que minha proposta não tinha chance de ser acolhida. Não foi. Mas Arraes se mostrou sensível aos argumentos que apresentei. O problema é que nossa sociedade – como bem o mostra Paulo Prado em Retrato do Brasil (um livro de 1926) e Gilberto Freyre em Nordeste (1937) – tem caráter antiecológico. Tanto é verdade que, hoje, em Pernambuco, restando apenas menos de 4% do conjunto de Mata Atlântica, belo e exuberante, que havia aqui em 1500, ainda se quer construir uma rodovia (o “Arco Viário”) com corte de parte desse patrimônio insubstituível. Só mesmo mentes insanas, criminosas e miseráveis podem admitir tal agressão.
É com esse pano de fundo que considero altamente positivo o desempenho de Sérgio Xavier à frente da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) de Pernambuco na segunda gestão de Eduardo Campos. Discordo, assim, da opinião de um amigo e professor da UFPE que muito respeito, Heitor Scalambrini, que classifica de “inócua” a “passagem, tipo trampolim, do jornalista Sérgio Xavier como Secretário de Meio Ambiente de Pernambuco e agora pré-candidato a deputado estadual”. Acompanho Sérgio na sua vida pública desde que ele e Carlos Augusto Costa, em 1991, conseguiram me convencer a filiar-me ao PV. Nunca percebi nele qualquer sinal de carreirismo. Pelo contrário, trata-se de um cidadão que luta pelo bem-estar da sociedade, escolhendo um caminho que não é de êxito fácil. Foi assim que muito contribuiu para a candidatura de Marina Silva a presidente do Brasil em 2010.

Quando Sergio, apanhado de surpresa em Nova York, onde passeava com a família no fim de 2010, no anúncio aqui do secretariado de Eduardo, teve seu nome indicado para a Semas, então criada, tratou de consultar pessoas no PV (fui uma delas) e elaborar uma relação de condições para aceitar sua nomeação. Falou com o governador 2 semanas depois da posse. Este, demonstrando auspiciosa mudança do posicionamento antiecologista de antes, acolheu todas as pré-condições de Sérgio.  Bem diferente de quando conversei com Arraes em 1986. Naquela época, o clima era ainda o da insustentabilidade do desenvolvimento. Eduardo percebeu que os tempos agora são outros. Se não desfez impactos ambientais maléficos de seu primeiro mandato, tarefa inviável a esta altura, aceitou que fossem mitigados ou suavizados. Fortalecendo o mesmo perfil, Pernambuco tem a oportunidade agora de uma virada histórica. 

Artigo publicado no DP, Dom 16 março de 2014 

A BELEZA INIGUALÁVEL DO FREVO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Em novembro de 1987, coordenei grande evento na Fundação Joaquim Nabuco. Foi um encontro do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), do qual cerca de 800 pessoas participaram. Nas noites da reunião, sempre promovíamos a cultura nordestina. Pedimos à prefeitura de Olinda, que era comandada então por Jacilda Urquiza, que patrocinasse uma das ocasiões. Ela concordou. E o que fez – sabiamente? Trouxe blocos de frevo para a frente de seu prédio na Cidade Alta, e nós fomos para lá. Foi um sucesso estrondoso. Gente de todos os países do continente e também da Europa, EUA, Canadá e África se admirou do que viu. Porque, com blocos na rua, era o povo, de modo natural, que se juntava à folia da hora. Uma dança espontânea, com a alegria do carnaval. Em diversas ocasiões posteriores, quando eu encontrava pessoas que aqui tinham estado, comentários de admiração se repetiam.
Se o governo do Estado ou as prefeituras da Região Metropolitana do Recife querem promover nosso carnaval, tratam logo de mostrar passistas frevando (maracatus também são mostrados). É natural. Ninguém vai fazer propaganda de nossa terra heroica exibindo baboseiras forjadas por interesses comerciais – como o axé, as duplas sertanejas, etc. Imagine-se um comercial de Pernambuco relativo ao reinado de Momo com cantores paulistas ou goianos de erres puxados e chapéus texanos – a desgraça que isso seria. Do mesmo modo, os promotores de carnaval nos currais das casas-camarote de Olinda atraem seus frequentadores falando dos desfiles de blocos, da irreverência que irão presenciar. Só que, de forma asséptica, eles em recintos separados por grossas paredes da movimentação alegre dos foliões na rua. Dentro desses espaços que parecem cercados de bovinos (sem querer ofender bois e vacas), os pagantes das casas camarotes vestem todos, de modo monótono, a camisa do dono do pedaço e assistem a shows destituídos de significado pernambucano. Poderiam fazer isso se o tom da música que escolhessem fosse o do canto gregoriano dos monges beneditinos. Não é o caso. Produzem barulho que maltrata os ouvidos de quem está de fora – e até bem longe.

É a negação completa do que Pernambuco tem de melhor – seu frevo. Para mim, inclusive, é perda de tempo ficar falando que o frevo precisa se “renovar”. Renovar? Fazer música de apelo comercial, de mau gosto e letras ofensivas? Ninguém pede que o tango se renove. Que a valsa vienense se modernize. Que o som dos Beatles seja reinterpretado (e olhe que o conjunto se desfez há mais de 45 anos!). Que o fado se torne elétrico. O frevo é como é. “Vassourinhas”, de Matias da Rocha e Joana Batista, “Cabelo de Fogo”, do Maestro Nunes, “Bela” e “Madeira que Cupim Não Rói”, de Capiba, “Voltei, Recife”, de Luiz Bandeira, “Último Regresso”, de Getúlio Cavalcanti, “Bloco da Vitória”, de Nelson Ferreira, “Carnaval da Vitória”, de Nelson também e Sebastião Leme, “Frevo nº 1 do Recife”, de Antônio Maria, para citar só umas poucas composições, não são apenas imortais. Em encontros pernambucanos de som, serão sempre desejados. E a razão para isso é simples: sua beleza inigualável.

Artigo publicado no DP, Dom 16 março de 2014 

OLINDA, SEU CARNAVAL VERDADEIRO. E O DE VÂNDALOS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

É geral a condenação ao vandalismo que tem surgido em meio a manifestações pacíficas da população brasileira desde junho passado, e em jogos de futebol no estado e outras partes do Brasil. As cenas a ele relacionadas, divulgadas pela televisão, jornais e a Internet, causam estupor e sensação de caos. Agressões, destruição de patrimônio, atos violentos, de fato, criam um rastro de assustadora deterioração social. Em parte, pode-se até entender o que acontece, sobretudo pela péssima qualidade da educação e formação cívica no país. Mas entristece perceber como uma situação de caos vai tomando corpo. Pois bem, isso se dá com destruição física escancarada. Vidraças quebradas, carros queimados, pessoas feridas e até assassinadas ficam como registro desse vandalismo, documentado na hora. Sua expressão é palpável.
Sensação parecida experimentaram os olindenses que têm raízes na cidade, cujo carnaval sempre foi motivo de enorme alegria, em face de comportamentos lamentáveis de invasores que trouxeram destruição à festa deste ano. Ora, Olinda se caracteriza – tal como o Recife antes que o desastrado prefeito Augusto Lucena (imposto em 1964) destruísse o bairro de São José – por uma folia democrática, popular, de mescla humana na rua (que é do povo). Os invasores de 2014, que já vêm tomando fôlego há algum tempo, inventaram um carnaval de casas-camarote totalmente alheio à tradição, aos valores, à identidade olindense. Especialmente, porque seu motivo é o lucro monetário, uma coisa que não está presente na história das agremiações que dão a Olinda sua beleza de dança, música e alegria na rua. Para ganhar dinheiro, os promotores de casas-camarote criam guetos, cercados, currais. A eles pessoas são levadas em vans exclusivas. Ou em carros com passes de livre trânsito, conseguidos sabe Deus como. Privilégio abominável. Nos guetos veem shows que destoam completamente dos ritmos da cidade. E a música medíocre (lixo) que produzem se espalha para além das fronteiras dos espaços em questão. Uma agressão a quem gostaria de estar curtindo frevo, o som da cidade.

Ora, o que se pratica desse modo é puro vandalismo. O frevo, como se sabe, é, por ato da Unesco de 2012, “Patrimônio Imaterial da Humanidade”. No instante em que, no carnaval, que é a hora mais apropriada do frevo, se faz algo que contribui para matá-lo, o que ocorre é vandalismo do naipe do de hooligans e black blocs. Não estou exagerando. Durante o carnaval que passou, todas – insisto: todas – as pessoas de Olinda com quem conversei (e eu passo o carnaval na rua dançando, cantando e confraternizando; não em guetos) estavam revoltadas com as casas-camarote e os gestores municipais que as aprovam. A mesma sensação foi a de um grupo qualificado de 14 pessoas de Minas Gerais, hospedadas na Casa de Olinda, de que sou vizinho. Elas estavam enojadas com a folia invasora de empresários malditos que querem ganhar dinheiro acabando com aquilo que lhes permite vender o carnaval de Olinda: seu frevo, sua autenticidade, diversidade de cores, singularidade. Que mercadores insensíveis vandalizem o frevo até se pode entender. Mas que os gestores municipais acobertem e aceitem isso é razão para que não se fique perplexo quando black blocs pró-Olinda tradicional despertarem.

Artigo publicado no DP, Dom 16 fevereiro de 2014 


OLINDA AGONIZANTE
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

A expectativa do carnaval em Olinda a faz agonizar. Seria bom que não fosse assim. Até porque o carnaval é ainda uma festa ímpar da cidade. E que consegue sobreviver, apesar dos descasos e crueldades dos que têm responsabilidade municipal sobre ela. Acontece que o carnaval vem se somar a males que afligem Olinda todos os dias do ano. Sujeira, barulho, urina nas calçadas, vendedores com equipamentos feios de ver (cadê o “progresso” de que se alardeia?), pessoas deseducadas que querem deixar os carros, se possível, dentro dos recintos que vão freqüentar, etc. Isso tem feito moradores debandarem dos endereços que tinham ali. A rua do Amparo, muito agradável como testemunho histórico e cultural, exibe 19 casas para alugar. E está ocupada por um excesso de bares ruidosos (clandestinos?), cujos frequentadores atravancam as ruas. A conhecida, e simpática, Bodega de Véio atrai um número absurdo de clientes. Que, sem ter onde ficar, aboletam-se no calçamento, nos passeios. Fazem-no com a emissão de decibéis acima de qualquer nível civilizado. (Um parêntesis, só para contrastar: na Suíça, é proibido dar descarga no banheiro, em edifícios de apartamentos, depois de 22h). Para não fazer barulho. No caso da Amparo, sem infra-estrutura adequada para as necessidades fisiológicas, urina-se na rua mesmo. Triste. Na minha rua, que não é de concentração de gente (há poucos imóveis, todos com áreas grandes), de um total de 14 casas, 7 estão desocupadas. Quem tem dinheiro não compra uma aqui; quem gostaria de comprar, por amor ao que Olinda significa, dispõe de recursos insuficientes.
Tem-se a sensação de que estão matando a cidade. Chega a ser surpreendente que a Unesco ainda mantenha o título que Olinda conquistou em 1983, de Patrimônio Mundial. Nessa época, a cidade vinha de um período de administrações mais cuidadosas. Germano Coelho, eleito em 1976, melhorou muito o carnaval em 1977. Em 1978, os moradores se uniram e, mesmo sem o respaldo oficial da prefeitura, expulsaram os carros da Cidade Alta durante o carnaval. Fizeram mais: assumiram todo o ônus de limitar o acesso a veículos de residentes devidamente cadastrados. Esse foi um esforço heróico, pois os moradores tiveram que fazer o trabalho de fiscais e de polícia de trânsito. Saíram-se tão bem que a prefeitura, em 1979, assumiu – até hoje – tal responsabilidade. Luciana Santos, em 2001, também contribuiu para um carnaval mais olindense. Conquistas suas se mantêm; o zelo, porém, é outro.

Este ano, a cidade está sendo invadida por empresas e gente de show que não têm qualquer compromisso com o perfil tradicional dela. Vêm aqui só para raspar o pote de lucros. Instalam-se. Conseguem, sabe-se lá como, “passe livre” para um número exorbitante de carros. E fazem barulho. Acham pouco. Impõem sons alheios à cultura olindense. Tudo isso não faz qualquer sentido no longo prazo, pois vai ser o fim da galinha dos ovos de ouro. O charme de Olinda se desfará. Ela virará uma cidade qualquer, de perfil vulgar, medíocre – como tantas que se desfiguram no país, seguindo um modelo que produziu resultados diabólicos na China e vai causando estragos na Ásia. Olinda não pode agonizar. Moradores, à luta!

Artigo publicado no DP, Dom 2 fevereiro de 2014 


DESIGUALDADES, ROLEZINHO, CORRUPÇÃO, VANDALISMO

Clóvis Cavalcanti

Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br



Uma sociedade conformista como a brasileira se assusta quando a população resolve protestar de verdade. Penso que seja por isso que os chamados “rolezinhos” causem tanto pavor. Na verdade, eles vieram associados a tumultos, furtos, agressões, delitos cometidos por alguns participantes. Mas a enorme maioria dos que integram essa onda é de pessoas pacatas, inconformadas, de justa forma, com as desigualdades aberrantes existentes no país. Julgo mesmo que, dada a dimensão das disparidades de condições de vida de que somos testemunhas, os protestos que ocorrem são até comedidos. Quando se fala de black blocs violentos, causadores de vandalismo, seria bom que os cidadãos que se julgam bem comportados pensassem no vandalismo da corrupção. Ela resulta de práticas nojentas toleradas como parte da relação dos políticos com o bem público. Práticas de vândalos do colarinho branco.

E não é só isso. Há práticas, entre os que detêm poder e os que os bajulam, que, se não configuram corrupção declarada, representam uma contribuição para a apropriação do que pertence à coletividade. Veja-se o caso dos camarotes no carnaval. Que necessidade existe para justificá-los? É por que alguns integrantes de nossa sociedade foram escolhidos para desfrutar do máximo conforto, a fim de não passar por aperto, calor excessivo, súbita fome ou ânsia incontrolável de bebericar um uísque de 12 anos? Claro que não é por isso. É porque o povão tem que ficar torrando no asfalto e servir de divertimento para aqueles que sorriem o tempo todo por saber que seus privilégios os colocam em ambientes de conforto abusivo.

O dia em que a sociedade desperta, faz cobranças e reage com fúria, logo os que se beneficiam da disparidade social gritam, chamam a polícia e até as forças armadas. Isso não faz sentido. Quando reivindica educação – Educação de qualidade, é óbvio –, o que a população dos que protestam querem dizer é que, se a sociedade for educada de verdade, nem os ricos aceitarão ser tão escandalosamente ricos, nem os pobres a condição de mendigos de programas tipo Bolsa Família. Quando se reivindica saúde, é o acesso de todas as pessoas que se pede a um direito coletivo, concedido de graça em países como o Japão, a Alemanha, a Espanha, o Butão (um país pobre). Não é o quadro de consultas de 5 minutos depois de horas ou dias numa fila, como acontece hoje com muita gente. Saúde digna é TODOS poderem recorrer ao Hospital Sírio-Libanês. No Butão, quando não há tratamento para problemas no serviço médico nacional, o paciente é enviado a outro país, com todas as despesas custeadas pelo governo, a fim de receber o tratamento que seu caso requer. Isso é no Butão; não na Suécia.

Antes que os rolezinhos virem rolezões, está na hora de um empenho sério, em todas as esferas da sociedade, no sentido de se ter no Brasil um mínimo de decência na administração pública. E um padrão mínimo – à la Fifa – de se proporcionar saúde, educação, transportes públicos, moradias dignas, empregos decentes, cultura autêntica a toda pessoa que, a qualquer momento, por não receber o que lhe é devido, possa engrossar a onda de “vândalos”, de multidões inconformadas com o indecente e intolerável padrão de desigualdade do Brasil.



Artigo publicado no DP, Dom 19 janeiro de 2014


 
OLINDA ATORMENTADA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Entristece constatar como os encantos de Olinda, seu charme de cidade histórica e bem dotada de cenário natural, não conseguem sensibilizar aqueles que dela deveriam cuidar. Todo ano, depois do réveillon, os domingos da cidade são motivo de tormento para os que vivem no sítio histórico. O espaço é invadido por pessoas que não têm a mínima noção do valor do patrimônio que nele se contém. Não chegam para apreciar as belezas arquitetônicas que ainda restam, nem para caminhar nas ruas estreitas e cheias de surpresas dali. Vêm com o intuito de fazer barulho, de sujar as vias públicas de todo tipo de lixo, inclusive os resultantes do metabolismo humano; de beber e consumir droga. A prefeitura da cidade, que a isso deveria se opor de forma categórica, faz alarde nas redes sociais do que considera uma atração do turismo olindense – as “prévias” do carnaval. Faz alarde e convoca a todos para vir desfrutar da cidade.
No último fim de semana, mais uma vez, a situação extrapolou o que já era intolerável. Galeras se prevaleceram das facilidades existentes para penetrar no sítio histórico e realizaram todo tipo de barbaridade. Uma amiga, Rejane Ferreira, que mora perto de mim, chegando por volta de 18h ao Carmo, foi aconselhada por um guarda municipal a mudar de rumo. Ninguém conseguia controlar a violência que no local se instalara. Pessoas corriam na rua. Um ônibus, ocupado por uma gangue, parou nas proximidades. Motorista e cobrador desceram. Não seguiriam viagem com a turma violenta que nele entrara e arrebentava porta, bancos, vidros.
Tem sido assim há anos. No sábado, o centro histórico já amanhece com barracas miseráveis armadas para a venda de bebida e comida. É um cenário desolador de mediocridade: a completa negação da formosura que turistas buscam no mundo inteiro. Quem, de fato, é atraído pela feiura de Lagos (na Nigéria), onde já estive (e fui roubado), preferindo-a aos atrativos de Praga ou Veneza? O ano de 2014, com a Copa do Mundo, trará muita gente de fora para o Recife. Que terão essas pessoas para fazer entre um jogo e outro? Que atrações procurarão ver? O que temos para oferecer-lhes? Olinda possui tudo para seduzir quem a visita. No entanto, malbarata o que Gilberto Freyre tão bem ressalta em seu guia de 1939 sobre a cidade: sua originalidade. Vulgariza-se. Vira um trapo urbano qualquer.

Recentemente, minha filha, Claudinha (que mora em São Paulo há 20 anos), e eu vínhamos com seu marido, Eduardo, no carro. Ele quis saber, observando a sujeira que se acumula por ruas arrebentadas, de calçadas precárias, como comparávamos isso com a cena de 30 anos atrás. Nossa opinião: era melhor antes. De fato, Olinda era visitada por pessoas que vinham admirar suas belezas. Na época, havia uma orquestra sinfônica juvenil, regida pelo grande maestro Geraldo Menucci, que causou a melhor impressão, por exemplo, a um amigo meu, David Goodman, britânico, que representava a Fundação Ford no Brasil. Cadê a orquestra? Cadê o adro do convento franciscano, que se transformou numa ruína? Cadê o respeito ao silêncio? O admirável artista Gilvan Samico, meu saudoso amigo, falecido há quase 2 meses, se sentia torturado pelo barulho dos “maracatus” repetitivos e monótonos que batucavam perto de sua casa. Esse tormento é de todos os olindenses. Agravado por hordas incivis que ocupam a cidade aos domingos, sob a vista complacente e estulta dos poderes municipais.

Artigo publicado no DP, Dom 5 janeiro de 2014 

DEIXANDO A FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Começo o ano em situação inusitada. Sem atividade fixa. No dia 31 de dezembro último, terminou meu mandato de chefe da Coordenação-Geral de Estudos Ambientais e da Amazônia (CGEA), parte integrante da Diretoria de Pesquisas Sociais (Dipes) da Fundação Joaquim Nabuco (FJN). É bem verdade que continuo dando aula (de Meio Ambiente e Sociedade) no Centro de Ciências Biológicas da UFPE. Porém, como professor voluntário, aposentado pela compulsória em 2010. Assim, vejo-me excluído do rol de quem labuta diariamente como membro da força de trabalho. Ainda que possa exercer diversas atividades por conta própria, o fato é que não tenho mais compromisso profissional com uma instituição. E isso é novo para mim, desde que, depois da pós-graduação, comecei a trabalhar em 1965.
Minha ligação com a FJN começou em 1966. Fui levado a seu predecessor, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), por Mauro Mota que, por indicação de Roberto Cavalcanti de Albuquerque, grande economista pernambucano, me procurou para elaborar relatório de pesquisa para a Sudene (sobre o mercado de pescado do Grande Recife). Produzi esse trabalho. Logo em seguida, Mauro, por quem passei a ter grande admiração, convidou-me para escrever novo relatório de pesquisa. Era, para o DNOCS, um diagnóstico socioeconômico do Vale do Moxotó, trabalho que chamei outro grande economista pernambucano, Dirceu Pessoa (1937-1987), para dividir comigo. Tanto este quanto o relatório anterior transformaram-se em livros. Ao longo de quase 47 anos – com intervalo de 2 (1970-1972), quando fiquei em dedicação exclusiva na UFPE –, pude acompanhar a evolução e consolidação do IJNPS-FJN (não gosto da sigla Fundaj, imposta pelo governo militar em 1980 contra a que nós propúnhamos). Foi um progresso firme que se deve tanto a Mauro Mota – poeta grande e pesquisador consistente – quanto a Fernando Freyre, que conheci em 1959 no Rio, um gestor de enormes qualidades.
Fernando, ademais, sendo filho de Gilberto Freyre, criador da FJN, sabia em que terreno deveria pisar. Ele levou adiante a visão paterna, a mesma que assimilei em conversas e na convivência quase diária de duas décadas com o genial sociólogo pernambucano. Gilberto Freyre sublinhava a necessidade de se ter no Nordeste uma instituição dedicada à pesquisa social. Expôs isso inumeráveis vezes. Justificou seu projeto de lei de criação do IJNPS em 1949 à base de tal exigência. E os argumentos que usava continuam completamente válidos hoje – talvez até com mais vigor. Por isso, ao deixar a instituição com que tanto me envolvi, preocupa-me que não corresponda mais ao que imaginava seu criador. Eu próprio, tendo dirigido de 1980 a 2003 o Instituto de Pesquisas Sociais (Inpso) da FJN, como seu primeiro superintendente, fui levado a mergulhar nas idéias freyrianas e a procurar ser fiel a elas. Fernando incumbiu-me de, dentro da nova estrutura da Fundação, que sucedia a de repartição tradicional do IJNPS, não perder de vista a razão de ser do projeto de 1949. Nunca discordei dele. Pelo contrário. Como pesquisador social, hostil que era a Gilberto Freyre em 1966, pude entender o caráter visionário de sua proposta. Ele sempre me ouviu (chamava-me para conversarmos) e me fez seu aliado pelo argumento inteligente. Essa é a força histórica da FJN. Não pode ser ignorada

Artigo publicado no DP, Dom 22 dezembro de 2013 

“É BOM DORMIR EM COLCHÃO”
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Vivi experiência incomum no domingo passado (15.12.13). A 4,5 km de minha propriedade, no brejo de Gravatá, conheci uma família na miséria mais extrema que se possa imaginar. Fui levado lá, com Vera, por uma vizinha, pequena produtora de flores, nascida e criada por perto. Ela me havia falado da situação dessas pessoas há duas semanas. Uma mulher, abandonada pelo marido, passava enormes necessidades ao lado de uma prole de oito crianças. A mais velha, com idade de 13 anos; a caçula, nascida há um mês. Vilma já tinha se mobilizado para socorrer a mulher e os filhos. Comprara comida. Levara. A mulher e ela choraram quando o socorro foi entregue. As crianças quiseram logo comer o que veio preparado. Momento de tristeza, espanto e perplexidade. Chegando eu ali, agradou-me o ambiente da moradia. Muitas árvores, mata, água e, de longe, a casinha não assustava. Fomos recebidos pelo irmão da mulher, que a visita aos sábados para levar comida. Fica até as segundas, quando retorna a seu trabalho “na cana”, em plantação da Zona da Mata. Admirou-me, ao ver seu porte franzino, saber ser ele canavieiro. Ele nos conduziu à casa, carregando uma cesta que levamos com ingredientes básicos. Levamos também roupa e um colchão de casal.
Na casa, conhecemos a mãe e a bebezinha, que dormia em berço supreendentemente limpo. Aparência agradável, saudável, dessa menina, que só mama. A mãe se apresentou e aos filhos. O interior do domicílio choca pela evidência da miséria extrema que oferece. Em um quarto, uma cama de casal com colchão e o berço. No outro, nova cama de casal, sem colchão, com panos dobrados e pedaços de esteira sobre o estrado. Troços pelo chão, roupas penduradas. A casa, de paredes e chão de barro, coberta de telhas, possui cozinha, onde num rústico fogão de barro e pernas de madeira, duas panelas de alumínio cozinhavam o almoço. Há ainda uma sala com cadeiras de plástico, um depósito e um corredor. Ausência de eletricidade, embora um contador de luz acuse que ela já possuiu o recurso. Saneamento, água corrente? Esqueçam.

De que vive um domicílio assim? Bolsa Família: 300 reais por mês, referentes a cinco meninos na escola (aliás, as crianças são simpáticas, esguias e de aparência linda). Isso corresponde a 0,51 dólares por pessoa, por dia (excluindo o irmão canavieiro). O mínimo dos mínimos para demarcar a miséria no mundo é uma renda em dinheiro de 1,25 dólar por pessoa, por dia. D. Selma e seus filhos encantadores dispõem de 41% desse mínimo. Dá para acreditar no triunfalismo medíocre do governo federal, aplaudido pelo neoliberalismo da The Economist (que considera o BF um sucesso; em todo o mundo os neoliberais aplaudem programas de transferência de renda), que proclama levianamente estar tirando o povo da miséria? Do mesmo modo que a família que conheci, certamente, há milhões no Brasil. No caso, apesar dos sinais de extrema exclusão, sobressaiu para mim um traço de dignidade do grupo. Que não imagina o desperdício, a opulência, o desvario consumista do supérfluo, o hedonismo exorbitante dos ricos e poderosos do Brasil. Uma situação que se exacerba nesta época de Natal. Minha amiga do lugar visitou a família na segunda passada, 16.12.13. As crianças pulavam sobre o novo colchão. Alegres, felizes. Uma exclamou: “É bom dormir em colchão”. Para mim, miseráveis são os opulentos!

Artigo publicado no DP, Dom 8 dezembro de 2013 


MANIA DE MACAQUEAR
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Nos EUA, o tradicional feriado, de origem religiosa, do Dia de Ação de Graças (Thanksgiving Day), sempre a quarta quinta-feira de novembro, para muita gente é o mais importante do ano. Nas universidades, escolas, órgãos governamentais e muitos negócios, suspende-se o trabalho da sexta seguinte. Um feriadão que vem de longe e totalmente previsível por começar numa quinta. Aproveitando uma suposta ociosidade da população na folga, há mais de 50 anos, os varejistas descobriram um jeito de aumentar suas vendas. Na verdade, como o Natal fica perto, era comum, depois do Thanksgiving, muita gente ir às compras aproveitando a parada. Daí, o batismo de “Sexta-Feira Negra” para a ocasião. O termo negro viria das disputas da multidão pelas pechinchas. Ou devido ao fato de que as lojas saíam do vermelho (prejuízo) passando para o preto do lucro. De qualquer forma, os EUA são normalmente um país de consumo frenético. Abrem-se as lojas em todos os dias do ano. Algumas nem fecham, exceto em datas básicas (Natal, por exemplo). Diferente da Europa, onde uma Sexta-Feira Negra tem poucas possibilidades de vingar.
Infelizmente, esse não é o caso do Brasil, como se pôde ver recentemente. Pior: a data aqui, criada praticamente por uma ação de marketing em 2013, não se chama de “Sexta-Feira Negra”. Prefere-se o original, “Black Friday”. Não haveria mal nisso se nossa população usasse frequentemente o inglês. Acontece que mesmo muitos brasileiros cultos não conseguem se exprimir nesse idioma tão importante da vida moderna. Aliás, muitas pessoas até falam um português que fere os tímpanos. E aqui não estou me referindo aos quase dialetos dos “e apoi”, “prumode” e “nós vai”, da “língua errada, língua certa do povo”, de Manuel Bandeira, que a mim muito agrada. Trata-se de comunicação em ambientes refinados, revelando um nível infeliz de educação que permeia o ensino da língua nacional. Pois bem, nas alturas do dia 28 de novembro último, o que se viu no Brasil foi um delírio de propaganda chamando a atenção para promoções ocas e tentando criar uma artificial febre de compras no varejo no país. Fez-se isso com chamadas insistentes para uma misteriosa “Black Friday”. As pessoas até aprenderam a pronunciar o nome inglês do dia, de tanto ouvi-lo repetido nos meios de comunicação.

Não há necessidade dessa macaqueação idiota. Aliás, sem sentido, porque aqui o Thanksgiving Day (sic) não é feriado, muito menos a sexta que o segue. A população brasileira, antes de consumir, tem que saber por que consumir. É para ter coisas, empanturrar-se de bugigangas? Ou é para levar uma vida feliz, com mais convivência fraterna, mais ações de graças efetivas, mais tempo para a boa música e a dança, para práticas esportivas, para se ficar junto das pessoas amadas? Inventa-se um motivo copiado às pressas de outro país para induzir os consumidores não a exercitar sua cidadania, sua escolha pensada, consciente, mas para aumentar a submissão asinina da população à orientação para um consumo desvairado, sem conteúdo crítico. Não caiamos em mais uma sinistra armadilha da mania nacional de macaquear (com pedido de perdão aos símios).



Artigo publicado no DP, Dom 24 novembro de 2013 

ATRASO DESOLADOR
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Foi em 2008 que o primeiro trem bala (trem de grande velocidade, ou TGV, na França, onde surgiu em 1976) foi inaugurado na China. Une Beijing ao porto de Tianjin, perto. Apesar desse enorme atraso histórico, os TGV chineses (lá chamados de gaotie) se estendem hoje por 10.000 km, que é mais do que toda a malha de TGV da Europa. Enganando os céticos da empreitada, quando esta foi proposta, transportam atualmente 2 milhões de pessoas por dia – mais de 700 milhões por ano! Em dezembro de 2012, foi inaugurada a maior linha de TGV do mundo (2.400 km) ligando Beijing a Shenzhen – uma distância quase igual à Recife-S. Paulo. Outra linha que chama a atenção pela audácia do projeto que a sustenta, de 1.776 km, liga a cidade de Lanzhou, na zona central do país, a Urumqi, capital da província de Xinjiang, nos limites com a Ásia Central. A singularidade do projeto reside em se fazer a ferrovia subir os contrafortes do plateau tibetano, cruzando áreas de paisagem marciana – a velocidades superiores a 200 km por hora (em outras linhas, a velocidade chega a 350 km/h!). Na verdade, como sublinha a revista The Economist em seu número de 9 deste mês, o empreendimento dos gaotie chineses são de fazer parar a respiração: estão sempre batendo todos os recordes.

Um dos motivos que levou aos TGV, primeiro na França e, depois, noutros lugares, foi a economia energética neles contida. Diminui-se a pegada ecológica das pessoas, reduzem-se as emissões de CO2, etc. A China possui um crescimento avassalador que não impressiona bem pelo lado ambiental. Seus custos ecológicos são altíssimos. Entretanto, o país tem tentado diminuí-los. A opção pelo trem é um indicador positivo a esse respeito. A situação serve de contraste para o que acontece no Brasil. Veja-se a miserável Transnordestina. Existe, no papel, há mais tempo do que os gaotie. E não conseguiu completar ainda a metade da distância de Salgueiro a Suape! É um recorde de lentidão. Esse quadro se generaliza para toda a infraestrutura do país, completamente carente de investimentos que aliviem o sofrimento de quem não tem saída a não ser usar nossas rodovias sucateadas. No recente feriadão de 15 de novembro, assustava ver o inferno aceso em que se transformou o programa das pessoas que saíam para as praias paulistas. Em Pernambuco, o cenário de estresse também se verificou – ainda que em proporções menos dantescas. E não vale a desculpa de que faltam iniciativas no plano do governo federal. Estados e municípios podem fazer alguma coisa, inclusive no tocante ao transporte público. O automóvel tem que ser retirado das cidades. Deveriam ser proibidos de circular no centro do Recife, por exemplo. Simultaneamente, seria reconfortante ver que um sistema de trens leves (bondes) se espraiasse na capital pernambucana, em Olinda e outras cidades, como já aconteceu entre nós. E como se pode com satisfação encontrar em Lisboa, em Roma, em Madri, em Amsterdam, em Estocolmo, em Zurique. Nesse ponto, nosso atraso é desolador. E fica pior porque não se vê um esforço heroico para romper com a pasmaceira geral. A China chegou 30 anos atrás da Europa para criar sua rede de trens bala. Em cinco, deixou a europeia atrás. Quiseram fazer, fizeram. Quem quer fazer aqui?

Artigo publicado no DP, Dom 10 novembro de 2013  

RECEITA PARA A INFELICIDADE
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Depois de entrar em contato mais próximo, nos últimos 2 anos, com a filosofia butanesa de desenvolvimento (o Butão é um reino budista dos Himalaias), assusta-me ver como coisas acontecem aqui sem qualquer compromisso com a promoção do bem-estar humano. Falo dos lugares que mais frequento, como Olinda e Gravatá. Mas não acho que seja muito diferente do diapasão reinante. Só para lembrar: desde 1972, no Butão, por escolha consciente de seu iluminado Quarto Rei (Jigme Singye Wanhchuck), adota-se como orientação das ações públicas a busca da felicidade das pessoas e do bem-estar de todos os seres vivos, com uso prudente da natureza. E isso, na experiência desse país incrível, funciona. É o que tenho podido constatar depois de visitar o Butão, trocar idéias com gente de lá e fazer parte de um grupo internacional que examina para a ONU o paradigma (revolucionário e único) butanês.
No caso de Olinda, sucedem-se fatos que dão a impressão de que, nela, se segue uma receita de promoção da infelicidade. Sexta-feira, dia 1º de novembro, uma festa no Clube Atlântico, no Carmo, estendeu-se até 5h do dia 2, com um som da mais lamentável qualidade e em tom altíssimo. Ora, o local do pagode é da prefeitura, que o aluga – e vizinho de cidadãos que moram por ali. As autoridades municipais, assim, não fazem o menor esforço para que normas civilizadas se observem na cidade que ainda ostenta o galardão de Patrimônio da Humanidade. Sobre isso, vale a pena registrar o comentário de um entregador de água que é morador do sítio histórico, no amanhecer do dia 2, em casa de uma amiga minha da rua da Palha: “Em Olinda não mora gente?!” Descendo de minha casa para a praça no Carmo, na mesma manhã, para a feirinha orgânica que ali se realiza aos sábados, pude observar a montanha de lixo deixada pela festa do Atlântico. É lixo de música, é lixo de som altíssimo, é lixo físico jogado no chão. Em termos de sujeira nos espaços públicos – o que, é claro, reflete também a deseducação dos habitantes e visitantes da cidade –, Olinda dá o pior exemplo possível.

E agora, para completar, instalou-se o absurdo de um pavilhão de uns 200 m2, recoberto de plástico resistente, no meio da praça do Carmo, onde, ao lado de outro pavilhão no Sítio de Seu Reis, próximo, junto com estruturas menores na área, funcionará a malfadada Fliporto. Malfadada como evento para espaço que tem outras finalidades, não para servir a festivais literários que se desenrolam em ambientes fechados que, além do mais, ficam implantados ali por semanas. A Fliporto acaba no dia 17 de novembro. Sua base física, no entanto está pronta e começou a ser montada há 4 semanas. Isso é um absurdo. Pior: financiado com dinheiro público, com o beneplácito da prefeitura (comandada por um prefeito absenteísta). Chega-se, desse modo, ao inacreditável feito de se destruir o bem público com dinheiro público – para benefícios privados. Interessante é a Fliporto ter como atração artista que aparece nos meios de comunicação por proezas não exatamente no campo da literatura. Enfim, a festa literária não cabe no local que escolheu arbitrariamente, no melhor estilo dos que invadem propriedade, para ocupar. Olinda dá, assim, contribuição significativa para a receita da infelicidade.

Artigo publicado no DP, Dom 27 outubro de 2013 
MAIS, ACERCA DE NOSSO ATRASO
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

A respeitável revista britânica semanal The Economist publicou substancioso artigo, de 14 páginas, há um mês, com chamada de capa, intitulado mais ou menos “O Brasil teria implodido?” Espécie de contraponto a artigo semelhante, seu, de 4 anos atrás, “O Brasil decola”. Nele o Cristo Redentor ilustrava a capa da revista como um foguete espacial aceso subindo de seu pedestal. No de agora, a mesma estátua símbolo do país surge como foguete desgovernado rodopiando para baixo. Há quem não tenha gostado da matéria recente. Cuidadosa leitura dela, no entanto, revela que os problemas brasileiros foram bem captados por essa publicação que tem 170 anos de notável regularidade. E o que basicamente a revista ressalta é o potencial brasileiro desperdiçado por iniciativas que não primam pela excelência em quase tudo que interessa à nação. Na educação, por exemplo, que corresponde a 5% do PIB nacional em termos de gasto (contra uma média internacional de apenas 3%), os resultados são desestimulantes. Metade dos estudantes do ensino médio, entre nós, não consegue entender o que se encontra em texto submetido a sua leitura. Nas universidades brasileiras, o gasto por aluno é 5 vezes mais do que nos outros níveis de ensino (nos países ricos a média não passa de 1,3). Pode-se dizer que a universidade brasileira é boa? Ora, nenhuma delas figura sequer no rol das 500 melhores do mundo.
Os dados que a revista levanta salientam coisas assim. Mostram a precariedade de nossa infra-estrutura, de nossos equipamentos urbanos, do transporte público. Ao retornar de viagens ao exterior, constato – como devem fazê-lo milhares de cidadãos do país que costumam visitar outras nações – como é triste nosso atraso. Chegando na última quarta-feira de viagem de 8 dias a Cambridge, na Inglaterra, com passagem em Lisboa e Londres, logo na entrada de casa, às 22h, ouço o som de baixo nível que vem das proximidades. Som alto, acima de qualquer nível civilizado; também, vulgar, pobre de valores estéticos. Nos dias de Cambridge, pelo contrário, além de completo silêncio às 22h, havia cedo da noite, perto de meu apartamento no belíssimo Trinity College, sons de sua capela dignos de serem ouvidos – de corais ou órgãos ali se apresentando. Um contraste assustador – retrato, sem dúvida, da cultura indigente que é resultado natural de educação com lacunas enormes como a nossa.

Essa mesma influência lamentável do atraso de que somos vítima afeta inclusive o comportamento de agentes culturais que tiveram melhores oportunidades na vida, freqüentando boas escolas, visitando o exterior com regularidade, lendo muito, assistindo a concertos, indo a exposições de artistas ilustres, etc. Pois, de outra forma, não entendo como um evento dito cultural como a Fliporto, que virá para Olinda, mais uma vez, em novembro, sem consulta à população de lá, ocupe espaços públicos, tirando-os dos moradores durante semanas. É o caso da praça do Carmo e adjacências, tomadas há mais de 10 dias por instalações do evento que só termina em meados de novembro. Por que o encontro cultural não se muda para o Parque (parque?!) D. Lindu, para o Centro de Convenções, para o destruído (pelo Cirque du Soleil, há 4 anos) Memorial Arcoverde? Uma invasão assim não aconteceria em Cambridge, terra da inteligência e de respeito ao bem público.

Artigo publicado no DP, Dom 13 outubro de 2013 
QUANDO A INTERNET SOME
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Há duas semanas, na Fundação Joaquim Nabuco, se experimenta uma vida bastante diferente. Estamos sem o site (ou página na web) e sem o servidor de correio eletrônico da instituição, algo que não se consegue imaginar como parte da rotina da vida moderna. Ainda mais, numa instituição de pesquisa, com projetos que se comunicam em tempo real com o mundo inteiro. É meu caso, como membro que sou de um grupo de trabalho de peritos internacionais que prepara, a pedido da ONU, um estudo acerca do modelo singular de desenvolvimento humano do Reino do Butão. Fiquei perdido com a grave pane que atinge o sistema de comunicação eletrônica da Fundação desde o dia 28 de setembro último. Uso endereços alternativos de que disponho para enviar mensagens, e não obtenho retorno (as pessoas devem preferir meu endereço institucional). Isso acontece igualmente com pessoas diversas que se comunicam comigo através do meu e-mail de trabalho e não percebem sinal de vida meu. Foi o que se verificou com Fátima Quintas, presidente da Academia Pernambucana de Letras. Uma mensagem dela para mim retornou, mas só uma semana depois de enviada. Dessa forma, a comunicação assume ares do século XIX.
A experiência vivida agora está sendo triste e assustadora. Entristece porque nos sentimos marginalizados dos processos que ocorrem em nosso campo de trabalho – o da ciência social (ainda que a FJN só tenha a pesquisa, hoje, como um compartimento a mais de seu amplo rol de atribuições). Assusta porque se evidencia, pelo menos no tocante à gestão dos recursos de informática na instituição, uma fragilidade que põe em risco atividades que requerem perícia e um uso confiável das novas tecnologias. Por sua vez, isso ocorre apenas alguns meses depois que se passaram semanas com o site da Fundação fora do ar, submetido a completa reformulação que o tornaria mais ágil. O episódio causou muito mal-estar. Digamos que o site haja melhorado. No entanto, o que ocorre agora – sem explicações convincentes dos responsáveis – constitui evidência de descuido de gestão. Fico imaginando se algo semelhante se passaria sem traumas no Ipea, no IBGE, no Banco Mundial, na Universidade Federal de Viçosa, na Receita Federal, no CBPF, na Universidade de Coimbra, neste Diario. Eu, pessoalmente, não conheço caso análogo. Pesquisei sobre isso na Internet. Falei com pessoas de vários locais sobre o assunto. Descobri que, em agosto último, houve enorme pane no Sudão – mas foi ato terrorista e se solucionou em menos de 24 horas!

Na Fundação Joaquim Nabuco, notícia alguma é veiculada sobre o desastre que sua pane significa – uma calamidade, deveras. Pedido de desculpa dos responsáveis?  Nenhum. É como se tanto servisse trabalhar com Internet quanto não. Até 2003, contava-se ali com equipes eficientes, à frente um grande conhecedor da tecnologia, Delano de Valença Lins, profissional de grande valor humano, prematuramente falecido em março do mesmo ano. Se Delano ao menos pudesse interceder por nós...

Artigo publicado no DP, Dom 29 setembro de 2013 
PROKOFIEV
Clóvis Cavalcanti -
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

            Meu neto Mateus, de 8 anos, que mora em Cambridge (Inglaterra), estuda violino. Maria, sua irmã, também, há 5 anos. Mateus começou há 3. Passou 2, porém, sem frequentar as aulas. Acaba de voltar a elas. Na presença da mãe, minha nora Juliana, foi entrevistado pela professora há poucos dias. Entre outras coisas, ela perguntou se ele tem um compositor preferido. Tem. Qual? Prokofiev – sim, o ucraniano Serguei Prokofiev (1891-1953). Apesar de ser um dos compositores mais famosos do século XX, certamente não é um nome popular como Mozart, Beethoven ou J.S. Bach. Surpreende, pois, que uma criança tão nova já o considere merecedor de sua preferência. Isso, com certeza, se deve à boa educação que se oferece na Grã Bretanha, a qual valoriza a inteligência e o gosto apurado. A ideia me vem à baila diante da tirania de compositores e músicas medíocres, vulgares e ofensivas ao intelecto a que somos submetidos na área do Fortim do Queijo, em Olinda, onde moro (e em muitos outros lugares). São audições berrantes, de bares na orla, que passam a noite inteira martirizando a população sob o beneplácito dos poderes municipais – ausentes aí como em muitas outras coisas de Olinda. Meu irmão Cláudio, que mora em São Paulo e se hospeda atualmente em minha casa, contou que não conseguiu dormir na noite de 21 para 22 deste mês. Até 5h, teve que aturar o som miserável emitido por pessoas que nunca ouviram falar em Prokofiev – nem querem.

            Isso se dá numa cidade rica em cultura e que sedia eventos como o Movimento (ex-Mostra) Internacional de Música em Olinda (Mimo). No qual, concertos de ótima qualidade, inclusive de música popular, são executados de forma sóbria – como deve ser em ambientes educados. Audições de música se sucedem durante o Mimo no convento de São Francisco, junto de minha casa. Nesta, contudo, não escutamos nada do que se passa dentro da igreja. O silêncio, na verdade, é predicado de uma sociedade civilizada, culta, desenvolvida. Barulho de qualquer espécie, musical também, constitui evidência de atraso. Uma perturbação na vida das pessoas obrigadas a contragosto a escutá-lo. A propósito, em seu número de 7.9.13, a respeitável revista The Economist lembra que os gregos da colônia de Sibáris já tinham decretado que, assim como os galos, ferreiros e oleiros tinham que morar fora da cidade por causa da zoada que faziam – uma zoada que não virava a noite, diga-se. Segundo membros da Sociedade para Abatimento do Barulho, fundada nos EUA em 1959, um ambiente silencioso é necessário para conduzir as pessoas à plena realização de seu potencial intelectual e criativo. Isso tem respaldo em relatórios da Organização Mundial de Saúde, como o de 2011, que mostram o mal de sons emitidos sem respeito ao direito humano ao silêncio. E há empresas no mundo, inclusive, segundo a The Economist, que buscam desenvolver produtos ou processos que minimizem sons altos. Diz ela: “Pouco ruído faz sentido econômico porque barulho elevado é comumente sinal de desperdício e ineficiência”. Bom, isso é para gente e lugares que compreendem que música é para se apreciar em tom decente. O mesmo tom decente que leva meu neto Mateus a indicar Prokofiev como seu compositor preferido. O avô se rejubila.
Artigo publicado no DP, Dom 15 setembro de 2013
Olinda não merece seus gestores
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social

Sempre que visito outros lugares, olho-os com o intuito de tirar lições que possam servir para as cidades onde passo o maior tempo de minha vida – Olinda e o Recife. No mês de agosto, estive em Irkutsk (Sibéria) e falei aqui no Diario do que encontrei por lá. Perto do 7 de Setembro, viajei ao Rio e a Nova Friburgo, duas cidades com que estabeleci fortes laços na década de 1950, internado que fui em colégio na última delas. Aproveito também minhas caminhadas matinais (até janeiro de 2012, eram corridas) para observar os ambientes. Pois bem, fico deprimido quando volto para a minha cidade de escolha. É incrível como Olinda se deteriora em vários sentidos – apesar de abrigar eventos como a Mimo, há pouco ali realizada. Nova Friburgo foi arrasada em janeiro de 2011, devido a uma tromba d’água monumental que lá despencou durante horas seguidas. Cerca de mil pessoas morreram. Casas e até prédios, infra-estrutura, obras de urbanização sofreram danos gigantescos.

Pois bem, apesar do roubo escandaloso de dinheiro público de socorro, que houve por lá – como denunciam os friburguenses –, é possível ver agora, no lugar dos escombros, uma cidade totalmente reconstruída. E uma cidade limpa, de calçadas cuidadas, praças bonitas, calçamento sem buracos. A igrejinha de Santo Antônio, na praça do Suspiro, de que só escapara a fachada, foi reposta de forma esplendorosa. Faz gosto ver.

A diferença para Olinda é gritante. O pior é que obras recentes, caras, se deterioram rapidamente, sem que tivesse havido qualquer arremedo de inclemência da natureza na cidade. Por exemplo, o calçadão da área do Fortim, que data de 2010, expõe um piso de placas de pedra que tendem a se desmanchar. Na praça do Carmo, um calçamento que havia lá há décadas foi removido e substituído por outro mais irregular, com trechos de passagem para pedestres, mais elevados, cujas pedras se soltam periodicamente, ficando buracos que, quando a coisa se agrava, são preenchidos, alguns não mais com pedras semelhantes às de antes. É tudo amadorista – para dizer o mínimo. Parece que os gestores da cidade não possuem qualquer orientação técnica para o que fazem. A desgraça que causaram há uns 8 anos no adro do convento franciscano mais antigo do Brasil, deformando-o e deixando no lugar do antigo pátio uma deformação, perigosa até quando chove para ali se caminhar na rampa ruim que inventaram, é algo inconcebível.

A limpeza que se vê em Nova Friburgo – e no Rio, pelo menos no Flamengo, na Glória, no Catete – contrasta horrivelmente com a imundice de Olinda (uma cidade que fede). Nas proximidades do hospital Tricentenário, há sempre montanhas de sujeira, uma coisa feia, triste, lamentável – e perigosa para a saúde. O bairro do Amaro Branco exibe uma visão do descaso público de um sítio que é Patrimônio da Humanidade (instituído pela Unesco em 1983). A beleza de Olinda, o charme de seus monumentos arquitetônicos que resistem à desídia, a energia da população que quer bem à cidade – e fazem coisas como o Hotel 7 Colinas, o restaurante Maison do Bonfim, a Casa de Olinda, uma galeria-hospedaria-ponto de encontro colada a minha casa – mostram que essa cidade ímpar não merece os gestores que dela se apoderaram.

Artigo publicado no DP, Dom 1 setembro de 2013

POR UM BRASIL BONITO, GENTIL E AMOROSO
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br


Há 95 anos, o Clube Lenhadores, da Mustardinha, realiza uma festa anual denominada Matinê Branca. A 96ª versão do evento aconteceu no dia 25 de agosto último. Compareci a ela com Vera, meu filho Cacá e nora Sílvia. Foi a segunda vez que tive o enorme prazer de participar do tradicional baile – que é nisso em que consiste a ocasião. Que baile, diga-se! Começa pela exigência, totalmente legítima, do traje. Para homens: terno branco, camisa social de mangas compridas e meias brancas, gravata borboleta, sapatos e cinturão pretos. Das mulheres exige-se: vestido branco, de comprimento abaixo do joelho, sapatos e bolsa pretos. Todas as pessoas que lá se encontravam, vestiam-se assim. Não adianta querer quebrar algum item do regulamento. O infrator não é aceito. Um casal de membros do clube, na entrada, olha a indumentária dos convidados e, aprovando-a, permite seu ingresso. O resultado é que a festa fica bonita, civilizada, decente. Segue normas que só a fazem enriquecer-se.

Ela principia às 13h, com música mecânica. Às 14h, começa a tocar (foi assim igualmente em 2012) a orquestra do Maestro Memeu. De saída, frevo rasgado, que sacode a multidão (umas 300 pessoas, domingo passado, na minha avaliação. Número adequado). Dez minutos depois, ritmos românticos, com “New York, New York” de partida. Boleros, rumbas, sambas se sucedem. Apesar da hora e do ambiente fechado, calor não é um problema de que se possa reclamar. Ventiladores discretos amenizam o clima, dispensando ar-condicionado. Dança-se muito e não se fica suado O assoalho, de madeira polida, do salão, facilita os movimentos. Não há como não aproveitar tanta combinação precisa de elementos favoráveis a um baile de categoria. E dá gosto ver todo aquele público elegante, sem exageros, sem afetação, sem presunção, sem ninguém metido a besta. A atmosfera que transparece é de pura felicidade, sem bêbados, sem pessoas inconvenientes, sem excesso de som, as conversas fluindo tranquilamente em tom normal de voz – muito ao contrário do que acontece em tantos lugares supostamente elegantes, de elite, em que é impossível escutar o que alguém diz a você e vice-versa durante encontros com fundo musical (na verdade, fundo de zoada).

Olhando toda a beleza da Matinê Branca, cujo público – dado interessante – é majoritariamente de pessoas negras, meu deslumbre teve um desfecho. Estava ali o que poderia chamar de “Brasil bonito, gentil e amoroso”. Ou seja, exatamente aquilo que nós queremos de uma pátria: a existência de possibilidades para se viver bem, em alegria, em clima de afeto e de respeito às normas civilizadas. Uma lição – dada por um clube sem a fama de tantas agremiações de privilegiados. Lição de cultivo de valores que só trazem alegria, bem-estar, satisfação pela convivência gentil entre estranhos. No meio de boa música – de música de verdade, não de sons irritantes, executados em níveis insuportáveis, com letras de extremo mau-gosto. Para completar, a Matinê Branca ainda tem uma valsa, bailada com entusiasmo pelos presentes. Ela se encerra com a inconfundível beleza do frevo pernambucano. Que maravilhoso exemplo de exaltação dos melhores e mais autênticos valores da sociedade brasileira!
Artigo publicado no DP, Dom 19 agosto de 2013
LIÇÕES DE IRKUTSK
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br
            Na semana de 4-8 de agosto, estive em Irkutsk, na Sibéria. Fui ao congresso de 2013 da Sociedade Russa de Economia Ecológica, de cujo comitê científico fiz parte. A viagem me proporcionou experiência extraordinária. Basta dizer que o fuso horário de lá se acha 12 horas à frente do nosso. De Moscou a Irkutsk, a distância é quase a mesma do Recife a Lisboa. Trata-se de um mundo distinto, sem nada que lembre o Nordeste, Pernambuco, o Recife, Olinda. Na região se encontra o belo lago Baikal, que possui um volume de água doce mais de 50 por cento maior do que o de toda a Amazônia. Nele, nasce o rio Angará, enorme, robusto, que banha Irkutsk. Embora haja poluição por ali, nada se vê no rio que sugira imundice. Pelo contrário, suas águas são agradáveis de contemplar, sem papéis, plásticos, pneus, latas e outros destroços boiando. Coisa digna de nota é que as margens do grande rio são protegidas, com jardins, calçadões, parques, áreas de lazer, grades graciosas. Só a uns 300m da água é que se estendem vias de circulação, depois das quais vão surgir construções (de baixo gabarito). Nada semelhante aos absurdos recifenses, como o da incrível privatização da beira do Capibaribe em parte da cidade e hoje, especialmente, junto do açude de Apipucos. Ali, a prefeitura do Recife construiu um parque que não valoriza nosso poético rio (dá-lhe as costas) e permitiu que se erga conjunto de vários arranha-céus entre a avenida e o curso d’água. Triste, cruel, lamentável. Aberração de tal jaez não se testemunha em Irkutsk.
            Essa cidade russa, de 650 mil habitantes (por onde passa a famosa e lendária Ferrovia Transiberiana), aliás, mostra muitas outras coisas que servem de enorme contraste com relação à realidade pernambucana (lembro que a Rússia e o Brasil possuem o mesmo nível de renda por habitante). Por exemplo, Irkutsk tem muitos parques verdadeiros: nada que se assemelhe à estranha concepção de parque do D. Lindu ou do já referido de Apipucos. As calçadas de lá são todas bem cuidadas, sem buracos, amplas, de boa confecção. Vi meios-fios feitos com pedras de alta qualidade. Tudo também muito limpo. Ah, que diferença de Olinda, uma cidade emporcalhada, de pavimento em frangalhos, de calçadas inimigas do bem-estar humano! E o transporte público do burgo siberiano inclui bondes, ônibus elétricos, ônibus diesel, trens e barcos – todos em abundância. Sem contar o automóvel. Resultado: trânsito que flui, eficiente, bom. Depois de alguns dias na Suíça, Holanda ou Alemanha, é natural que um recifense ou olindense perceba como aqui se possui pior qualidade de vida urbana. Mas verificar tão fortes diferenças com respeito a uma cidade perdida na Sibéria, próxima da Mongólia, causa choque. Fui para lá com uma expectativa desfavorável – que, em parte, se confirmou quando, no aeroporto, precisei resolver um problema de extravio de bagagem e ninguém que importasse, no caso, falava inglês. Mas uma russa jovem que esperava alguém e que falava inglês me ajudou de bom grado. Até me levou ao táxi e indicou ao motorista para que hotel eu ia. Disse-me quanto eu deveria pagar, que foi o que paguei de fato. Bom, isso tem a ver com o nível da educação, ciência e tecnologia do país, algo realmente admirável. Estamos longe disso.

Artigo publicado no DP, Dom 4 agosto de 2013
O país não está longe de um colapso
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social - Clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

No início deste ano, dois distinguidos biólogos da Universidade de Stanford, EUA, Paul e Anne Ehrlich, publicaram artigo preocupante na revista da Real Sociedade da Grã-Bretanha (a SBPC de lá), disponível em http://dx.doi.org/10.1098/rspb.2012.2845, sob o título: “Um colapso da civilização global pode ser evitado?”. Segundo eles, depois de mostrarem o destino infausto de civilizações localizadas como a da Ilha de Páscoa e a Maia Clássica, pela primeira vez, é toda a civilização planetária (interconectada, altamente tecnológica) em que estamos inseridos que se vê ameaçada de colapso. Sobretudo, por um elenco de problemas ambientais, que eles desfiam. Segundo os autores, a humanidade se acha afundada naquilo que o príncipe Charles descreveu como “um ato de suicídio em grande escala”, e que o principal conselheiro de ciência do governo do Reino Unido, John Beddington, chamou de “perfeita tempestade” de problemas ecológicos. Mas não são apenas problemas relativos à mãe Natureza que avultam. Na verdade, eles nem são exclusivamente ambientais: são socioambientais, pois só existem onde há presença humana. Nenhuma outra espécie causa traumas em larga escala que o sistema ecológico não solucione com facilidade. A Homo sapiens se destaca por cavar buracos, alguns irreversíveis, no ecossistema e não parar de nele depositar montanhas de lixo, uma parte da qual não há como ser reciclada. O acúmulo de tais perturbações ameaça a vida na Terra, afirmam os dois cientistas.

Pois bem, o Brasil não foge à regra. Mas aqui, a questão cresce de relevo porque a sociedade se vê infelicitada pela incapacidade de conquistar uma qualidade de vida digna de alegria e que não se veja ameaçada de desfazimento. Por toda parte, é visível que a infraestrutura nacional se desmonta. Não há mais transporte confiável no país. Além de os trens – que existem como alternativa em toda parte – terem desaparecido tragicamente, o mesmo aconteceu com o transporte marítimo de pessoas e, fora da Amazônia, fluvial. Quem pode andar ainda de gaiola no rio São Francisco, ou ir de barco em linha regular do Recife a Itamaracá, a Cabedelo, a Natal? Além de ter viajado muito de trem e tomado bonde em todo o Brasil, fui de navio, quando adolescente, duas vezes, do Recife ao Rio de Janeiro. De trem, fui de São Paulo a Corumbá, do Rio a Belo Horizonte, de Nova Friburgo a Campos, do Recife a Gravatá. De bonde, ia ao Maracanã em dias de jogos (era uma tranquilidade). Hoje, nada disso é possível. A alternativa do carro, por sua vez, virou uma angústia. Na sexta-feira, dia 26, de Olinda à Cidade Universitária (19 km), levei 1h10. Precisava chegar antes das 10h; só o fiz às 10h15, seguindo por Dois Irmãos e Várzea. Na BR-101, o trânsito, como acontece muito, era uma desgraça. Todos nós vimos o inferno em que virou o Rio de Janeiro nos dias da bela Jornada Mundial da Juventude, com uma presença simpática do papa Francisco. E no país se testemunha a reação insana, muitas vezes, nas ruas, de pessoas bastante inconformadas com a realidade. Como será nos próximos meses? Há solução clara que se esteja contemplando para mudar tudo isso, já? Tristemente, cresce o temor de que nós estamos entrando em um beco que se afunila. Esse é o prenúncio de colapso iminente. Grande, monumental esforço é necessário para evitá-lo. Tomara que o jeito humano, caloroso e cheio de afeto do papa Francisco contribua para ele.

Artigo publicado no DP, Dom 21 julho de 2013

UMA ANTÍTESE DO BRASIL
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br
            Já relatei aqui em outros instantes, meu envolvimento numa atividade assaz gratificante: figurar em grupo de trabalho constituído de alguns nomes muito ilustres da pesquisa social no mundo que elabora para o governo do Butão relatório a ser apresentado à ONU para se tentar difundir globalmente a proposta butanesa de novo paradigma de desenvolvimento. O Butão, desde 1972, por escolha de seu Quarto Rei, então com 17 anos, adotou um caminho para a prosperidade que visa não o crescimento da economia (ou do PIB), mas a promoção da felicidade do povo e o bem-estar de todas as formas de vida. A opção feita, que nunca foi retórica, mas efetiva, levou esse país a uma situação, hoje, que é motivo de admiração para todos que se debruçam sobre ela. De fato, visando alcançar a felicidade com uso prudente da natureza e respeito às tradições e cultura nacionais, o Reino do Butão (budista) atingiu um quadro que oferece enorme contraste com os dois gigantes – China e Índia – com que faz fronteira. E com nações como o Brasil, a Rússia, a África do Sul, o México, os EUA, o Egito.

            Nele, saúde e educação, além de gratuitas, possuem apreciável qualidade. Quase todas as crianças em idade escolar (99%) estão na escola. A esperança de vida da população dobrou nas últimas duas décadas. Não há índices elevados de violência no país e a pobreza extrema foi quase zerada. O status da mulher sobressai de forma eloquente diante da situação que se vê, por exemplo, na Índia, Paquistão e mesmo China. É proibida a propaganda de refrigerantes e de comida que não seja saudável, além da de bebidas alcoólicas. De cigarro, não é permitida a venda (o consumo, sim). Não há outdoors ali nem barulho de alto-falantes nas ruas. Ninguém usa som em nível elevado. As pessoas falam baixo, são amáveis, mostram civilidade na forma de agir. Percebe-se isso no hotel, no aeroporto, nas lojas, nos táxis, na zona rural, no trânsito (não há um único semáforo no país inteiro). Espera-se que, até 2020, toda a agricultura butanesa seja cem por cento orgânica – para benefício tanto das pessoas quanto dos seres sencientes da natureza que sofrem com os venenos das práticas “modernas”.

            Em 1972, a monarquia desse Reino simpático – onde passei dez dias no começo de 2013, com Vera – era do tipo absoluto. Não agradava ao rei que propôs a felicidade (ao invés de PACs) como primeira prioridade nacional. Contra a vontade da população, que queria que continuasse do jeito que era, o monarca conseguiu promover a monarquia constitucional, adotada finalmente em 2008, com nova Constituição, que entrega o governo a um primeiro-ministro eleito. Pouco antes de conseguir esse avanço na direção da democracia, o Quarto Rei, em 2006, com 52 anos, renunciou. Passou a coroa ao filho de sua terceira esposa (poligamia e poliandria são permitidas no Butão. O ex-rei tem 4 mulheres). O novo rei tem 33 anos (tive a oportunidade de conhecê-lo, e à rainha, de 23 anos, com meus colegas de grupo de trabalho). O pai alegou que estava na hora de se aposentar. Hoje leva vida sóbria, cultiva a terra, anda incógnito de bicicleta. Nem ele nem o filho moram em palácios luxuosos. No país, não se veem favelas, mendigos, meninos de rua. Nem palacetes ou camarotes à la Galo da Madrugada, Festival de Inverno de Garanhuns, São João de Caruaru. O Reino do Butão, com sua paz, e espiritualidade notável, representa a antítese de um país tão cheio de aberrações como o nosso.
Artigo publicado no DP, Dom 7 julho de 2013
QUANDO O CRESCIMENTO SE TORNA ANTIECONÔMICO
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

O distinguido economista ecológico americano Herman Daly, meu amigo, que tem laços afetivos com o Brasil, há tempo fala sobre uma situação nada desejável de crescimento não econômico, ou antieconômico. Como se sabe, crescimento econômico se revela através do aumento contínuo da grandeza chamada de produto interno bruto (PIB). Daí, a enorme atenção que se dá nos meios de comunicação, nas falas dos políticos, nos programas eleitorais, no discurso dos dirigentes à taxa de expansão desse agregado. Acontece que o PIB só mostra um lado da moeda. É o dos benefícios do funcionamento da economia, a qual tem por finalidade produzir bens e serviços para satisfazer as necessidades da população. Mais PIB implicaria maior alcance da missão da economia. Só que, ao lado de benefícios, o PIB também gera custos de toda ordem (solenemente ignorados pelos que nele falam). Produzir gasolina significa extrair petróleo, que é um estoque finito guardado nas entranhas da Terra. Quando se eleva o consumo de combustível pelo uso maior de automóveis, diminui-se para sempre um recurso esgotável. No PIB só entra aquilo que é positivo da equação. Omitem-se totalmente valores da perda do estoque, além de outros custos envolvidos no uso do petróleo, como o da poluição, o das emissões de CO2, o dos estragos causados pela construção de refinarias, etc.
Na verdade, são amplos os custos de toda a atividade econômica. Por exemplo, o que Daly e seu colega John Cobb Jr. chamam de despesas defensivas, como as de limpeza de rios degradados ou de reconstrução após um desastre natural. Elas entram no cálculo do PIB com o mesmo significado da compra de alimentos ou de roupas. Outros tipos de custo: as doenças causadas por agrotóxicos ou chuva ácida, que levam a despesas desnecessárias; o tempo adicional que se perde para a mobilidade urbana com os congestionamentos, com efeitos negativos sobre o bem-estar humano e o uso mais produtivo das horas desperdiçadas; as despesas com acidentes de carro e de moto; os custos do barulho que desgraça horas de descanso de tanta gente; os custos das filas intermináveis; os custos da perda de solo fértil (que tem que ser enfrentada com fertilizantes: mais despesas). E por aí vai.
Como resultado, seguindo a lógica da microeconomia, que compara custos e receitas adicionais (ou marginais, como dizem os economistas), o crescimento só deveria ocorrer quando os novos benefícios gerados excedessem os novos custos correspondentes. Pelas próprias leis de funcionamento do sistema econômico, sabe-se que a tendência desses ganhos adicionais é de declinar e a dos custos extras, de subir. Chega um momento em que os dois se igualam. A partir daí, mais PIB vai significar menos benefícios que custos. Tem sentido continuar elevando-o? A população não faz contabilidade do fenômeno em questão (se nem os economistas o fazem!). Mas todo mundo percebe que não se pode viver com cada vez menos tempo para gozar a vida – e usando o pouco lazer para consumo frenético e endividamento correspondente. Um dia, a realidade fica evidente (o Brasil hoje). Não dá para viver em paz quando o crescimento se tornou antieconômico e quem tem responsabilidade (todos os partidos) só faz endeusar o PIB


Artigo publicado no DP, Dom 23 junho de 2013

A SOCIEDADE TEM QUE PROTESTAR
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

            Há duas semanas, no Diario, escrevi sobre a ilusão do PIB. Não é uma descoberta minha. Celso Furtado (1920-2004), por exemplo, em 1974, no importante livro de que ninguém gosta de falar, O Mito do Desenvolvimento Econômico (isso mesmo: o desenvolvimento como mito), chama o PIB de “vaca sagrada dos economistas”. Furtado, economista respeitado e admirado, um dos maiores que o Brasil já conheceu, sabia do que estava falando. Todavia, o assunto PIB se converteu numa espécie de evangelho dos políticos, dos meios de comunicação, dos empresários, dos adoradores enfim dessa “vaca sagrada”. O que o PIB esconde, no caso brasileiro, porém, é uma realidade de ineficiência, injustiças e procedimentos inumanos.

            Todo mundo sabe que perder tempo no trânsito, a um ritmo cada vez maior, é uma via crucis que vai tornando nossa vida um inferno. O que significa perder tempo? É perder vida, pois tempo não é dinheiro, como pensam os adoradores do PIB, mas o recurso mais básico de nossa existência. Ficar preso no trânsito ou em filas absurdas – como a dos bares da abominável Arena de Pernambuco – significa não estar lendo, não estar participando de uma boa conversa, não estar curtindo a família, não estar vivendo. Muitos alunos meus residentes em Olinda, por exemplo, levam, pelo menos, duas horas para chegar à Cidade Universitária. Minha auxiliar administrativa na Fundação Joaquim Nabuco, gasta 2 horas e 40 minutos do Janga a Apipucos. São mais de 5 horas por dia numa atividade que nada acrescenta à vida dela. Todos nessa situação deixam de contribuir para a vida social. Ficam engessados, digamos 4-5 horas por dia, 20-25 horas por semana, 80-100 horas por mês, 960-1.200 horas por ano. Quanto desperdício de recursos! É uma adição óbvia à ineficiência. O tempo de 1.200 horas, equivalente a 50 dias, não usado para fins úteis (como mais tempo de leitura), corresponde a uma perda de capacidade produtiva. Essa é uma medida do custo de oportunidade (conceito dos economistas) da vida que não foi bem aproveitada. Pura ineficiência, que se soma a muitas outras no país: infra-estrutura horrorosa; ausência de transporte ferroviário; telefonia precária; urbanização incômoda.

            Ao mesmo tempo, tudo isso acontece de forma enviesada. Os poderosos, os privilegiados, os abonados de sempre conseguem criar espaços que lhes aumentam o conforto de que já desfrutam. No Recife, hoje, dois fatos ilustram bem isso, a meu ver. Um é a captura feita do Cais José Estelita pelo projeto que ali se implanta de um condomínio de ricaços. O outro é algo semelhante nas margens do Capibaribe, em Apipucos, onde se constroem prédios de luxo cuja concepção ofende a percepção de que beira de rio é para uso de todos: um bem comum. Com isso, os excluídos vêem aumentar sua exclusão. Eles são lançados nas periferias imundas, desurbanizadas, sem serviços dignos de nossas cidades. O caráter desumano que se percebe aí é mais um elemento para que se compreenda o mal-estar que a população consciente de sua cidadania não quer mais admitir. Ela se levanta e tem razão em adotar o slogan “Acorda, Brasil”. Que equivale à rejeição de propostas vazias como a do “Espetáculo do Crescimento”. 

Artigo publicado no DP, Dom 9 junho de 2013
ILUSÕES DO PIB
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

            O PIB brasileiro tem sido objeto de muitos comentários recentes. Na verdade, ele é sempre motivo de considerações quando se fala da economia de qualquer lugar, especialmente com relação ao tema do desenvolvimento. Mas o que é mesmo o PIB – ou produto interno bruto, seu nome real? Na televisão, os apresentadores de noticiários costumam defini-lo como “a soma de todas as riquezas produzidas no país”. A mesma coisa transparece nos jornais, no discurso dos políticos, nas manifestações de autoridades. E a população acaba acreditando numa falácia. Sim. O PIB não soma riquezas obtidas no processo econômico. Ele contabiliza o valor dos bens e serviços de uso final (no consumo, no investimento, no setor público) que saem da máquina econômica e passam pelo mercado, virando lixo algum dia. Do PIB, omite-se completamente tudo aquilo que não é visto pelo mercado. Por exemplo, o trabalho doméstico das donas-de-casa. O das empregadas, ao contrário, se considera. Mas o pior é que custos para a sociedade do processo econômico nem de longe entram nos cálculos. A extração de petróleo, que representa perda de um ativo (a jazida que vai se esgotar), é vista apenas pelo acréscimo que proporciona através do consumo de derivados. Pior ainda, um acidente rodoviário, de trágicas consequências, eleva o valor do PIB. Ou seja, na versão dominante, constitui riqueza!
E todo mundo espera, e quer, que o PIB se eleve sempre, de um ano para outro, no ritmo mais acelerado possível. Só que aumentar de 10% o PIB, quando ele é de 500 bilhões de reais significa um acréscimo absoluto de 50 bilhões; quando é de 4 trilhões de reais, a elevação passa para 400 bilhões. Ora, 50 bilhões correspondem a uma combinação física de bens e serviços finais muito menor do que uma no valor de 400 bilhões. São menos artefatos de todo tipo que se produzem. Ao se elevar o nível do PIB, mais recursos têm que ser extraídos, mais infraestrutura deve ser usada – e se ela for insuficiente? –, mais dejetos são lançados de volta à natureza, de onde, inexoravelmente, procedem todos os recursos de que a economia depende. Da água, ao nitrogênio do solo; do peixe do mar ao minério do subsolo. Quando se usam recursos não renováveis, fica um buraco no chão, que não cessa nunca de crescer, eterno. Do mesmo modo, coisas que não se reciclam – poeira, fumaça, energia dissipada, sucata de baterias, etc. –, empilham-se, formando bolo eterno, o qual, à medida que segue a produção, não para de inchar. Essas parcelas negativas que saem do processo econômico – entropia, para usar uma aproximação do problema, da Física – nem de longe passam na cabeça de quem imagina o PIB como “soma das riquezas”.

Além desses graves equívocos conceituais, o problema é que se criou a expectativa de que o PIB deve crescer sempre em ritmo elevado. Se não for assim, não se tem progresso. Ora, a visão que a isso corresponde é de uma estreiteza lamentável. Se progresso se entende como elevação efetiva do bem-estar humano, muita coisa pode ser tentada – como a redistribuição da renda e da riqueza, entre outras – para que, com PIB menos exuberante, se alcancem níveis de felicidade que, de fato, signifiquem a promoção da arte da vida para o máximo de pessoas. 


Artigo publicado no DP, Dom 27 de maio de 2013
A MODESTA “CORRIDA AOS BANCOS” DO BOLSA FAMÍLIA
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br
Uma das coisas mais temíveis da realidade econômica é quando a situação se deteriora de tal forma na economia que as pessoas, não confiando mais nas autoridades, partem para sacar, todas, simultaneamente, seus saldos bancários. Trata-se da chamada corrida aos bancos, de que houve ameaça no Brasil em janeiro de 1999, devido a um boato de que o real seria brutalmente desvalorizado. Minha cunhada Vilma Guimarães de Mendonça, respeitada ginecologista do Recife, me ligou apreensiva para que eu opinasse sobre o fato. Era um momento de férias meu. Estava meio desinformado. Mas de imediato, sem consultar nada, ninguém, afirmei que aquilo não ocorreria. Apesar da conjuntura insegura da ocasião, não se justificava que o Banco Central, em são julgamento, adotasse medida tão drástica. Era tudo boato mesmo. A corrida aos bancos significa um salve-se quem puder sem saída suave. O sistema bancário não possui reservas para honrar a entrega do dinheiro de todos os seus depositantes de uma vez. Na verdade, apenas 10% do que pertence ao público encontra-se nos cofres dos bancos em dado momento. Na Grã-Bretanha, um boato, com fundamento, da insolvência do banco de clientes de alta renda, Northern Rock, levou em setembro de 2007, a uma corrida a ele – prenúncio da crise financeira que se arrasta até hoje. A confusão culminou com o governo assumindo a dívida do estabelecimento e decretando sua falência. Coube aos contribuintes pagar o que o banco devia. É o preço que envolve o temido “risco sistêmico”.

 No fim de semana passado, algo parecido, em escala reduzidíssima, teve lugar com respeito aos beneficiários do Bolsa Família. Houve uma corrida para saque do benefício antes da data de pagamento, logo resolvida pela Caixa Econômica Federal. Que não teve problema algum para a entrega do numerário, tão insignificante ele era. Absolutamente nada da magnitude do episódio do Northern Rock britânico. Se isso é motivo de alívio, é também de apreensão. Pois como é que a situação socioeconômica de uma multidão de brasileiros ainda os faz vassalos de um sistema de caridade pública, que deveria ser apenas emergencial? A gente humilde que foi pegar seus trocados (um benefício mensal que varia de R$ 70 até R$ 306) vê neles sua salvação. Para mim, causa indignação que tantos brasileiros precisem dessas quantias para prover sua subsistência. Até quando durará tal programa? Eternamente? Tem data para terminar? Em face do clamor envolvido na “corrida à Caixa”, não se pode nem admitir que um fim para o esquema seja aventado. A presidente Dilma Rousseff esbravejou quanto aos autores do boato que provocou a revoada de miseráveis atrás de seu dinheirinho. Estava certa. Estaria mais ainda, porém, se estipulasse que, por exemplo, no mês de maio de 2014, véspera da Copa do Mundo, por desnecessidade, o Bolsa Família seria extinto. Ou que isso iria ocorrer no dia 31.12.2015. Sabemos que não há possibilidade alguma de que isso aconteça quando há, como informa o IBGE, 45% de domicílios no Brasil sem saneamento básico. Ditoso o dia em que nossa corrida a banco for do tipo da do Northern Rock.

Artigo publicado no DP, Sab. 10 de maio de 2013

A HORA DA BICICLETA NO RECIFE
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Das mais auspiciosas, sem dúvida, a iniciativa do prefeito Geraldo Júlio, do Recife, de criar condições para que as pessoas se desloquem de bicicleta na cidade. Além de merecer aplausos, serve para aferir, nesse particular, a mediocridade das gestões dos prefeitos anteriores, especialmente João da Costa. Nenhum deles fez qualquer esforço de vulto para aliviar o sofrimento dos que não dispõem de automóvel ou dos que, dispondo, prefeririam pedalar ou usar o serviço público de transporte. O pranteado vereador comunista Byron Sarinho (1942-2002), meu amigo, conseguiu aprovar lei municipal, em 1990, prevendo implantação de infraestrutura física através de ciclovias, sistema de sinalização, segurança, estacionamento exclusivo para bicicletas e conscientização da população para o uso dela como meio de transporte no Recife. A lei nunca saiu do papel. Quando assumiu a Secretaria de Meio Ambiente do estado, em 2011, Sérgio Xavier procurou João da Costa para propor parceria visando ao desenvolvimento do uso das bicicletas. Não houve eco na prefeitura.

Ganhei minha primeira bicicleta, uma Raleigh britânica, de sólida estrutura, ao completar 11 anos (em 1951). Usei-a durante toda minha adolescência, mas só nas férias, na usina Frei Caneca (município de Maraial), onde meus pais moravam. Com ela, fazia grandes percursos e andava até dentro de canavial. Eu estudava em Nova Friburgo (RJ), que era uma cidade conhecida exatamente pela popularidade, ali, da bicicleta. Vivendo em internato, não precisava de transporte. Mas, com colegas, alugava esse veículo para passeios nos domingos, sempre que possível. Andei de bicicleta em Olinda até maio de 2004, quando um ônibus me derrubou, machucando-me. Fora do Brasil, porém, valho-me dela com frequência em países como Inglaterra, Suécia, Holanda, Alemanha, Suíça, Itália. É uma delícia pedalar nessas terras civilizadas, onde há espaço seguro e macio para os ciclistas, onde não se correm ameaças, onde se ganha tempo.

Tremendo contraste com o que ocorre aqui, onde tudo conspira contra os afoitos usuários, exceto aqueles que desfrutam de ciclovias protegidas por policiamento especial – nos fins de semana e em áreas de classe média, geralmente. Isso, inclusive, compromete muito a promoção do ciclismo por Geraldo Júlio. Pois quem precisa da bicicleta, mesmo, no Recife não é a elite, mas o povão – no dia-a-dia. A bicicleta virou também oportunidade de exibição de poder aquisitivo. As pessoas se esmeram em vestir trajes de participantes da famosa Tour de France. Usam capacetes de marca, sapatos idem. Ora, eu já vi autoridades pedalando em Amsterdam e Gotemburgo de terno e gravata; vovós conduzindo netinhos com roupas domésticas em Oldenburg (Alemanha); professores renomados de Oxford e Cambridge com seus jalecos de pesquisadores. É preciso tanta parafernália para os recifenses se servir de algo tão ecológico – e que sempre foi motivo de propostas de adoção do Partido Verde? Adoção por toda a sociedade, entenda-se, nos dias úteis e de descanso, sem distinções de classe e privilégio. Mas isso já é pedir que nos civilizemos! Faço fé que dê.


Artigo publicado no DP, Dom. 28 de abril de 2013
O EXTERMÍNIO DE ÍNDIOS NO BRASIL
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Notícia recente, saída no Diario do domingo 21.4, me causou enorme comoção. Ela fala que foi encontrado documento, dado como perdido há 4,5 décadas, que relata massacres e torturas de indígenas no interior do país. Sou ligado a questões dos habitantes originários do Brasil. Leio bastante sobre eles, inclusive já tendo pesquisado elementos de sua vida material a fim de examinar em que medida podemos encontrar demonstrações de uma vida ecologicamente sustentável dos nossos nativos (há muita coisa, na verdade). Tais leituras me fazem ficar preocupado em face do nível de ignorância da sociedade acerca do universo dos índios – um universo que causou enorme admiração, por exemplo, a Pero Vaz de Caminha, revelada em sua famosa carta de 1500 ao rei de Portugal. Ora, se alguém que já leu tanto sobre índios se surpreende com um documento novo sobre essa população, que dizer das pessoas desinformadas que tanto a difamam?  A tendência delas pode ser não acreditar na história.

O material ora descoberto, conhecido como Relatório Figueiredo, diz a notícia, apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas no país – principalmente por latifundiários e funcionários do extinto SPI, cujo nome, Serviço de Proteção ao Índio, se revela de dolorosa ironia. O relatório teria desaparecido em incêndio no Ministério da Agricultura, em 1968. Milagrosamente, foi recuperado há pouco no Museu do Índio, no Rio. Tem mais de 7 mil páginas e 29 tomos (eram 30 no original). Uma das inúmeras passagens brutais do texto divulgado conta sobre um instrumento de tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à época. Chamava-se “tronco”. Consistia na trituração dos tornozelos das vítimas, através de duas estacas, cujas extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente.

A investigação que levou ao documento foi feita em 1967, na ditadura, a pedido do ministro do Interior, Albuquerque Lima, tendo como base comissões parlamentares de inquérito de 1962 e 1963 e denúncias posteriores de deputados. Consistiu em uma expedição, chefiada pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentes do SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Evidências de caçadas humanas com metralhadoras e dinamites, a partir de aviões, são contadas. Do mesmo modo, o relatório indica inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações aos índios de açúcar misturado a estricnina. Jader de Figueiredo e sua equipe constataram muitos crimes mais, e propuseram investigação. Nada aconteceu. Em dezembro de 1968, com o AI-5, as liberdades foram cerceadas. Sumiu o relatório. Salvou-se a pele de quem tinha culpa em cartório. Figueiredo, ameaçado de represálias, morreu num estranho acidente de ônibus em 1977. E o extermínio dos índios, que dura desde 1500, não pôde se tornar mais conhecido.

Artigo publicado no DP, Dom. 14 de abril de 2013
DESENVOLVIMENTO E SOFRIMENTO EM PERNAMBUCO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

A realidade do que se convencionou chamar de desenvolvimento econômico produz turbulências humanas e ecológicas que assustam. É como explica o cientista social suíço Gilbert Rist, professor em Genebra: “O ‘desenvolvimento’ consiste em uma série de práticas...que requerem – para reprodução da sociedade – transformação e destruição tanto do meio ambiente quanto de relações sociais. Seu propósito é aumentar a produção de mercadorias”. Tal ponto é reforçado pelo que proclamou um grupo de destacados pensadores, reunidos em Barcelona em março de 2010: “Uma elite internacional e uma ‘classe média global’ estão causando sofrimento ao meio ambiente através do consumo conspícuo e apropriação excessiva de recursos humanos e sociais”, com padrões de vida cuja imitação leva “a mais ruína ambiental e social...num círculo vicioso de busca de status através da acumulação de possessões materiais”.
O progresso material sem fim, como se busca, tende a ser excludente. Não extingue a miséria. E causa dor a pessoas marginalizadas e à ecologia. É óbvio que impactos ambientais de nossas ações sempre haverá. No entanto, o que clama é a forma desprovida de anteparos éticos com que se exploram os recursos insubstituíveis da mãe Terra. Pior: fazer isso e provocar ainda tormentos infindáveis a pessoas desprivilegiadas e indefesas da sociedade. Exatamente o que se vê hoje em Pernambuco, sobretudo em Suape e no novo pólo de Goiana. No dia 5 deste mês, a propósito, Nivete Azevedo, militante do Centro das Mulheres do Cabo, enviou desesperada mensagem de e-mail (que me chegou) sobre uma ação de despejo que se realizava naquele instante no sítio de um morador de Massangana, Sr. Cláudio Manoel. De maneira violenta e sem maior amparo legal, prepostos da Empresa Suape submetiam o sitiante e familiares a vexames e humilhações. Houve reação imediata de uma advogada da comunidade, que recorreu ao Tribunal de Justiça de Pernambuco, obtendo do desembargador Gabriel de Oliveira Cavalcanti, no dia 8, a intimação da Suape para que a ação fosse suspensa.
Situação parecida, que tem sido acompanhada de perto por pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco – pagos pela sociedade para ajudá-la a conceber como alcançar prosperidade genuína –, é observada no sítio de instalação da Fiat em Goiana. Realiza-se ali, neste momento, uma intervenção de vulto. Suas características levam a impactos sobre o regime hídrico e os ecossistemas da bacia fluvial local, em particular sobre estuários e manguezais. Consequentemente, sobre a atividade pesqueira e a vida dos pescadores dali. Tudo isso não foi previamente avaliado como ocorreria, antes da obra. Ora, o projeto se implanta em área de influência de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável (no caso, uma Resex, ou Reserva Extrativista), que, por lei, deveria ter sido consultada ainda no início do processo de licenciamento das obras. Tudo é feito às pressas, sem transparência, sem participação da sociedade. Ignora-se que ali há uma comunidade – como em Suape – que está sofrendo como se sua existência, invisível que é, não tivesse nenhum valor para seus componentes. Triste desenvolvimento.


Artigo publicado no DP, Dom. 31 de março de 2013
DESIGUALDADE INFINITA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Recentemente, foi lançado em Pernambuco, o Fórum Permanente de Discussões sobre o Complexo de Suape. À sua frente, a militante do movimento feminino do Cabo Nivete Azevedo e o professor da UFPE Hélio Scalambrini. Trata-se de iniciativa que ajuda a preencher o vazio na iniciativa do governo estadual, que já tem 4 décadas, de discussão com as partes interessadas (stakeholders) acerca da obra. Sobre isso, em abril de 1975, liderei um grupo de cientistas pernambucanos – Vasconcelos Sobrinho, Nelson Chaves, José Antonio Gonsalves de Mello, Renato Carneiro Campos (tio do governador Eduardo Campos), Renato Duarte e Roberto Martins – que contestava o projeto e pedia que ele fosse discutido. Expusemos isso em documento publicado num dia por semanário da época, o Jornal da Cidade e, no dia seguinte, pelos demais jornais recifenses. Nunca a sugestão foi ouvida. O resultado é visível.

Como diz, com razão, documento do novo fórum, a intervenção estatal em Suape “tem sido caracterizada pela violência na retirada das famílias moradoras sem que indenizações justas sejam pagas, e nem novas moradias disponibilizadas, levando estes moradores a se tornarem sem teto, e famílias a viverem precariamente nas cidades localizadas em torno do Complexo”. Essa é uma situação cuja dimensão de calamidade só se percebe conversando com pessoas que passam pelo calvário em que se transformou para elas a truculência do Estado em face de cidadãos ordeiros. Mais incrível é a facilidade com que se martiriza gente humilde, esmagando-a com artifícios jurídicos para que abandone suas casas, seus meios de vida, sua história, seu pertencimento a um território muitas vezes ancestral. É incisivo sobre o tema, o documento do Fórum Permanente de Suape: “Sem dúvida, para a manutenção de padrões sociais dominantes desde o período colonial, os poderes constituídos (executivo, legislativo e judiciário) fecham os olhos para a violação dos direitos destas populações invisíveis à sociedade”.

A mesma realidade foi constatada pela ONG Both ENDS, incumbida pelo governo dos Países Baixos, de onde procede, de averiguar a (ir)responsabilidade social de uma empresa holandesa, a Van Oord, que faz dragagem no porto desde 1995 e que recebe apoio do governo holandês para isso. Fui procurado pelo experiente antropólogo ambiental da Both ENDS Wiert Wiertsema em agosto de 2012 para falar sobre Suape. Disse-lhe que fosse ver com seus olhos o que estava acontecendo; que conversasse com gente de lá. Ele ficou alarmado com a situação (ver http://www.bothends.org/uploaded_files/document/130222_Report_Suape.pdf). Falou com pessoas demolidas na sua integridade, como o agricultor Luís Abílio, de Tiriri, um estóico trabalhador de 87 anos, expulso de casa por integrantes da aterradora Tropa de Choque. Infelizmente, essa dureza insana é jogada contra pessoas desprotegidas. Ao mesmo tempo, a elite se diverte construindo, como em Apipucos, um edifício na beira do Capibaribe, contra todo bom senso e a necessidade de proteção às margens de rios. É uma desigualdade infinita.

Artigo publicado no DP, Sab. 16 de março de 2013

SERVIÇOS PÚBLICOS PRIVATIZADOS QUE PIORAM
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social
            Em julho de 2001, escrevi aqui no DIARIO sobre problemas que estávamos tendo na Fundação Joaquim Nabuco com o suprimento de eletricidade. Eram freqüentes os apagões, e sua solução, demorada. Atribuí isso a descaso de uma empresa boa, privatizada algum tempo antes, com histórico de serviços melhores. Minhas críticas foram tratadas pela Celpe de modo gentil. De lá me telefonou o então diretor Reide Barros, solicitando uma conversa sobre a empresa e seus planos. Tivemos a conversa; diminuíram as panes do sistema elétrico. Na ocasião, eu estava de volta de uma viagem à Espanha, em cujos jornais lera sobre maus serviços da Iberdola (dona da Celpe) e da Endesa, a última das quais estava sendo obrigada pelo governo das Ilhas Baleares a pagar R$ 2 milhões, apreços de hoje, como multa por um apagão ocorrido em junho de 2000. Algo parecido sucede atualmente no serviço de suprimento de eletricidade em Pernambuco – sem multas.
            Na zona rural, o fenômeno se multiplica de forma que incomoda cada vez mais. Sinto isso como proprietário de terra em Gravatá. É comum ficarmos vários dias sem luz (como na semana passada). Experimentei o problema e diversos outros que não tínhamos com a Celpe em melhores tempos no dia 2 deste mês, um sábado. Ao meio-dia, foi embora a eletricidade. Na verdade, a luz ficou uma brasinha, mas som, TV, bombas pararam de funcionar. Em propriedades vizinhas, a energia sumiu por completo, como na da mãe de meu caseiro, junto. Sabendo que ia passar, como passei, pela chateação das mensagens gravadas – algumas, idiotas – (com a Celpe pública conversávamos pele telefone com pessoas amáveis), liguei para a Celpe às 13h. Deram um prazo até 16h para que tudo estivesse solucionado. Nada aconteceu. Voltei a ligar às 17h30, sempre sendo advertido de que a chamada seria gravada. Tudo bem, que fosse. Mas que houvesse acolhida e solução da reclamação. Para minha surpresa, o atendente notificou que o problema estava resolvido. Uma equipe viera até o local e constatara o restabelecimento da eletricidade. Pensei que era só em minha propriedade que faltava luz. Fui aos vizinhos, à minha ex-empregada, a 1,5 km de minha casa. Ninguém tinha energia. Nova chamada para a Celpe. Promessa de solução até 20h30. Escuro. Ligo às 21h30; uma voz feminina diz que o retorno da luz se daria às 21h31! Fui para a cama às 22h. Acordei algumas vezes para verificar se tínhamos energia. Negativo.
            Às 5h45 do dia 3, domingo, ligo para a Celpe. Não consigo falar; nem às 6h30. Nessa ocasião, perdi 20 preciosos minutos escutando as mesmas mensagens gravadas irritantes, algumas ridículas. Mais tarde, tentando o número 08000810196, informam de lá que esse serviço não está disponível nos fins de semana. Por si própria, assim como se fora, a luz voltou às 10h, 22 horas depois de se ir. Situação rara? Nada disso. Trata-se de um fenômeno usual, inaceitável, maligno, que nos coloca numa situação de ameaça de colapso. Para isso a Celpe foi privatizada?   

Artigo publicado no DP, Dom. 3 de março de 2013

RECIFE NOVO, SIM!
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br
            O jornalista-blogueiro e cineasta Cloves Geraldo, no portal paulista Vermelho, dia 15.2.13, escreveu interessante crítica do ótimo e premiado filme de Kleber Mendonça, O Som ao Redor. Nela, procura mostrar que as mazelas retratadas por Kleber, longe de evidenciar reflexos do desenvolvimento socioeconômico do Brasil, “na verdade, retratam a permanência de suas estruturas feudais”. Esse mesmo sentimento me ocorre em relação ao abominável projeto chamado de Novo Recife. Primeiro não se trata de um empreendimento da cidade, mas de imposição dos que querem tirar proveito monetário das coisas agradáveis que o Recife ainda oferece. Um espaço como o dos antigos armazéns do cais José Estelita, com os quais, quando criança, eu me encantava passando por ali da zona sul, onde morava minha avó Iaiá, para o centro, não pode ser desfigurado da noite para o dia sob o pretexto de que isso gera ganhos presumíveis para o município. E a desfiguração que se propõe não é coisa banal. Consiste em substituir o conjunto agradável formado pela enseada do Pina, as torres de igrejas vetustas do bairro de São José e os armazéns do cais por espigões sem graça, tão medíocres e pobres de imaginação como os que pululam por toda parte em Pernambuco (Garanhuns, até!).
            Nesse particular, o articulado e inteligente filme de Kleber Mendonça, a pretexto de expor a vida da classe média no bairro do Setúbal, em Boa Viagem, exibe uma realidade assustadora de construções “modernas”. Que prazer se pode desfrutar, de fato, quando se abre a janela nobre de um apartamento e o que se vê são construções feias, sem imaginação, vulgares, pavorosas de todo lado? Comparo isso com a vista fantástica de Olinda, do mar, da rua que contemplo de minha casa. Meu conceito de felicidade inclui a beleza do lugar onde se mora. E defende que todas as pessoas têm o direito de residir em lugares como o dos privilegiados que podem adquirir um imóvel na Reserva do Paiva, no Poço da Panela ou na Cidade Alta de Olinda.
            Ora, isso não é oferecido às classes subalternas de nossa sociedade. Junto do complexo para gente rica do projeto Novo Recife – que denominação espúria! – há comunidades que vivem miseravelmente em todo tido de habitação condenável. Por que não proporcionar a seus habitantes, moradia decente no cais José Estelita, em conjuntos bonitos (que não precisam das breguices dos novos ricos que só fazem encarecer certos tipos de construção)? O sítio tem que ser para os privilegiados de sempre, aqueles que podem escolher Boa Viagem, Casa Forte, Graças ou Aflitos para morar, e não para os excluídos condenados fatalmente a viver para sempre no Coque, nos Coelhos ou na Ilha de Deus? Esse dado da realidade não passa de expressão das estruturas feudais da sociedade pernambucana, denunciadas por Kleber e explicadas por Cloves Geraldo. São elas que exigem mobilização da sociedade por um Recife Novo: Recife Novo, sim! De forma alguma, algo como um projeto Novo Recife sem absoluto sentido social.


Artigo publicado no DP, Sex. 1 de fevereiro de 2013
De Thimphu, com admiração
Clóvis Cavalcanti

Desde o sábado, 26 do corrente, estou em Thimphu, capital do Reino do Butão, país do Himalaia espremido entre a China e a Índia. Vim (com Vera) para participar de reunião do grupo de peritos em que me puseram para discutir como espalhar em termos globais a proposta butanesa de substituir o PIB (produto interno bruto) pela noção de felicidade interna bruta (FIB) como objetivo do desenvolvimento. A FIB faz parte do paradigma da economia butanesa há quase 40 anos. Não é novidade, portanto. Ganhou força quando perguntaram cavilosamente, em 1982, no exterior, ao quarto rei do país acerca da força da economia butanesa e seu PIB. O rei, de sopetão, respondeu: “A felicidade (FIB) é mais importante do que o PIB”. Foi uma coisa intuitiva, no meu entender. Não o resultado de raciocínio lógico, linear.


O Butão é um país budista. A população crê que seu quarto rei (que está vivo, tem 58 anos, mas passou o trono ao filho, de 32 hoje) é uma reencarnação do Senhor da Compaixão. Ele vive modestamente, para um ex-rei, anda incógnito de bicicleta, cultiva a terra. Além disso, conseguiu convencer seus súditos de que a democracia, com um primeiro ministro eleito, é melhor do que uma monarquia absoluta tal como antes. A população o queria rei com todos os poderes. Não foi fácil mudar a opinião do povo. Uma constituição foi aprovada em 2006, o rei abdicou, houve eleições. Agora tem-se parlamento, primeiro ministro, oposição. A sociedade é aberta. Admira mesmo ver que um país onde se valoriza tanto a tradição (os homens, por exemplo, usam uma espécie de quimono que vai até os joelhos, meiões e sapatos; as mulheres vestem saias longas, com blusas e mantos, todos de cores belíssimas) não demonstra conservadorismo. Pelo contrário, há igualdade de direitos entre homens e mulheres, liberdades políticas amplas, respeito às minorias.


Andando pelo país para conhecê-lo como parte do trabalho do meu grupo, impressiona ver como não há miséria nele. E nem gente sequer gordinha. Não se percebem desníveis sociais grandes, muito menos os indecentes. Não vi ainda ninguém pedindo esmola. Os campos são bem cultivados. Violência baixíssima. Saúde e educação gratuitas para todos. Em qualquer lugar fala-se inglês bom. Na segunda-feira, fomos a uma reserva biológica a 6 horas de carro de Thimphu, onde se protege a ameaçada espécie da cegonha do colo negro (no caminho, passamos por um ponto, de 3.200 m de altitude, de onde se avista em todo esplendor, no horizonte, a cordilheira fantástica do Himalaia, inclusive o ponto culminante do país, de 7.550 m de altitude). Na reserva, muito bem cuidada, Vera e eu, mais um casal americano, a guia e o motorista do carro, nos hospedamos e dormimos numa casa de pequeno proprietário rural (foi um recebimento com demonstração de extraordinária gentileza). A casa era ampla, bem decorada com motivos butaneses budistas. Nela, mora uma família de pai, mãe, um filho de 20 anos, outro de 8, e filha de 18. Pois bem, ali no mato, longe de qualquer lugar mais habitado, o rapaz e o menino, de enorme simpatia, falavam ótimo inglês (brinquei com o americano: “É melhor que o meu!”). A mãe entendia um pouco. A filha que não estava, fala. O pai, não. Aqui, na verdade, se tem uma língua nacional e 19 dialetos. Nossa guia e o motorista, entre si, conversavam no de Thimphu. Isso tudo me causa enorme admiração. Como um país economicamente pobre, guiado pela busca da felicidade, educa bem, dá saúde a todos, é organizado, seguro, belo! E limpo, sem poluição sonora, sem outdoors, sem apelos consumistas. Demonstra que seu caminho da felicidade não é utópico. Existe como fato. Vê-se. E faz a nós muito bem.


Artigo publicado no DP, dom. 20 de janeiro de 2013

VALORES EM CONFRONTO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

            A polêmica relacionada com o absurdo projeto Novo Recife, que interfere no agradável cais José Estelita, decorre de uma coisa que podemos denominar de “valores em confronto”. De um lado, interesses econômicos poderosos querem usar uma área pública para promover lucros privados. Do outro, a sociedade, que busca qualidade de vida, uma cidade para todos e com beleza estética, reage, invocando razões que dizem respeito não a lucros privados, mas a benefícios públicos. Pode-se imaginar a situação de conflito que aí surge na medida em que, aliados à Prefeitura (gestão do prefeito João da Costa, no caso), os interesses econômicos conseguem impor seus valores diante dos que lhe fazem contraponto.
            Para entender a questão, vale a pena recorrer a um exemplo hipotético. Imaginemos que se quisesse encontrar uma área pública do município para implantar um complexo habitacional e de serviços. Onde localizá-lo? Digamos que existam 3 possibilidades de localização – áreas A, B e C. O local A é um ecossistema público valioso, com biodiversidade, água, solo bom; como paisagem, porém, é sem graça; e poderia render algo em uso econômico. Já a alternativa B possui belo cenário, oferecendo muitos atrativos; como habitat é pobre, tem pouca biodiversidade; não sugere vantagens para uso econômico. Finalmente, o local C é ótimo para um complexo urbanístico, podendo gerar renda significativa; como paisagem é razoável; e como ecossistema, pobre. Assim, a comparação de A, B e C quanto a ecossistema ou habitat (dimensão 1), paisagem (dimensão 2) e  valor econômico (dimensão 3), indicaria a seguinte ordem de preferências. Em termos da dimensão 1, A-B-C; quanto à 2: B-C-A; e quanto à 3, C-B-A. Ou seja, tem-se uma classificação dos três locais que não faz nenhum deles se sobrepor aos demais em todas as categorias – ou dimensões – tomadas para efeito de comparação. O lugar A é o melhor para habitat natural, o B o é como paisagem e o C, como sítio de um projeto econômico.
Qual dos lugares deve ser o escolhido? Como decidir? Quem detém o poder de impor a linguagem econômica como discurso supremo de uma discussão de cunho socioambiental, político e cultural? Para a sociedade, interessa não só a valoração monetária, mas também avaliações físicas, estéticas, sociais e culturais. Não faz sentido simplificar a complexidade, impondo uma decisão estreita e que interessa apenas a um segmento da sociedade – por mais importante que seja – desqualificando outros atores. Nem faz sentido deixar que um enfrentamento persistente e sem remédio entre expansão econômica e conservação leve sempre ao sacrifício do patrimônio público. Ao herdarmos locais conservados, transformando-os em condomínios privados, agimos de maneira míope, esquecendo a complexidade e múltiplas dimensões da vida social. Além disso, comete-se uma injustiça socioambiental, às vezes e de modo legítimo, considerada como forma de racismo. Isso significa que o valor do dinheiro não pode impor descaradamente sua vontade, como no cais José Estelita. E como, aliás, parece estar acontecendo ainda no caso da estrambótica e lamentável arena do glorioso Sport Club Recife.   


Artigo publicado no DP, dom. 6 de janeiro de 2013
A ESTRANHA NOÇÃO DE PROGRESSO DO RECIFE
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social;
clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Trabalhando no momento em projeto do Butão, que lhe foi encomendado pela ONU a partir do objetivo que move esse país, de buscar a felicidade nacional em lugar do aumento ilimitado do produto interno bruto (PIB), causa-me ainda mais espanto constatar como, no Recife, se procura um tipo de progresso totalmente diverso. De fato, no Butão, o propósito é levar à felicidade humana e ao bem-estar de todas as formas de vida, respeitando limites planetários, com mínima degradação da natureza e depleção de recursos (sustentabilidade ecológica), distribuição justa dos frutos do trabalho social e uso eficiente da economia. Nada disso se observa, diga-se a bem da verdade, não somente no Recife, mas também em Olinda, em Pernambuco, no Brasil. Não se está aqui, com certeza, promovendo felicidade para as pessoas de forma duradoura e convincente e, muito menos, bem estar para todos os seres vivos.

No caso do Recife, a polêmica do (mal) denominado projeto Novo Recife demonstra bem isso. O que se quer com ele? Justiça social, construindo-se espaço para proveito de todas as classes que formam nossa sociedade, o que seria “novo”? Não. Com certeza, não. O que se aprovou há pouco para aproveitamento do belo espaço do Cais José Estelita foi a mais excludente iniciativa de desenvolvimento possível. Não irá para o espaço dali a população que habita o Coque, Brasília Teimosa, os Coelhos. Serão os mesmos grupos afluentes que tomaram conta das Torres Gêmeas do Cais de Santa Rita. Mais estranho é que tal suceda sob a batuta de um partido que teria compromissos com a classe trabalhadora. Nesse particular, os dois prefeitos petistas do Recife constituem a negação de seu discurso. Deixam uma herança maldita e indesculpável. Seus métodos foram autocráticos, sem compromisso com a inclusão dos grupos marginalizados. A esperança é de que o prefeito Geraldo Júlio desperte para a insensatez do Novo Recife – uma agressão ambiental que desfigura a paisagem, como as Torres Gêmeas.

Aliás, em matéria de insensatez ecológica – tirando a elogiável atitude do prefeito João da Costa de respeitar o legado do Hospital da Tamarineira –, o Recife está cheio de aberrações. Chamar, por exemplo, de “parque” a área do D. Lindu ou a do novíssimo parque de Apipucos é desconhecer a tradição desse modelo em muitas partes do Brasil (Parque da Cidade, em Brasília, o Farroupilha, em Porto Alegre, o Bosque Rodrigues Alves, em Belém do Pará) e do mundo. E que dizer da desfiguração do Memorial Arcoverde, em Olinda, destruído pelo Cirque du Soleil em 2009, sob as bênçãos do governo do estado e da prefeitura olindense? Nossa noção de progresso, mais que estranha, é uma aberração. Oferece-se mais e mais conforto a quem já desfruta dele em abundância. Para os excluídos não são migalhas que se oferece. O que se lhes dá é o pior dos mundos: promessas ocas e uma realidade de abandono, marginalidade e negação da felicidade. Está na hora de mudar o paradigma vigente. Geraldo Júlio tem a oportunidade de pensar a respeito. E o governador Eduardo Campos, bem assessorado pelo secretário Sérgio Xavier, pode ser uma novidade significativa no cenário nacional buscando a felicidade humana e combatendo a insustentabilidade ecológica, a exclusão e o uso ineficiente de recursos.

Artigo publicado no DP, dom. 16 de dezembro de 2012

SECA, NATAL, POBREZA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social;

1970 foi um ano de enorme sofrimento para a população sertaneja do Nordeste. Uma seca de grandes proporções, a primeira da era da Sudene, que havia sido criada no rasto da estiagem braba de 1958, alcançou praticamente todo o semiárido da região. Provocou grande quebra de safra de produtos de subsistência, morte de rebanhos e levas extensas de flagelados do fenômeno. Na verdade, ela expunha com severidade o estado de enorme pobreza da população sertaneja, assunto que Celso Furtado (1920-2004) e sua equipe expuseram em trabalho marcante, o famoso “Relatório do GTDN” (de 1959).  Meu grande amigo Dirceu Pessoa (1937-1987), que fora técnico da Sudene, conseguiu convencer a última da necessidade de realização de uma pesquisa socioeconômica de grande porte sobre o flagelo de 1970. Fui chamado por Dirceu, que fundara sua empresa de consultoria, a Sirac, a integrar a equipe do estudo. Mobilizamos equipes vastas para levantamentos de campo sobre a situação das vítimas oficiais da seca (eram um milhão), alistadas em frentes de trabalho, bem como sobre proprietários rurais de todo porte e outros atores sociais.  

Escrevemos, nós dois, para a Sudene, um relatório intitulado Caráter e Efeitos da Seca Nordestina de 1970, que foi o estudo mais abrangente, até então, do fenômeno climático que, como em 2012, aflige periodicamente a região. A realidade que conseguimos apreender era a de que os trabalhadores rurais sem terra eram quem mais sofria com a ausência de chuvas. Quanto mais terra fosse controlada pelas pessoas, tanto menor o impacto da seca nesse nível social. Em outras palavras, a seca – que é algo de certa rotina em zonas semiáridas do mundo – simplesmente retirava a tênue capa de proteção dos assalariados, meeiros, posseiros, deixando-os na completa indigência. Em 1979-1981, durante nova grande seca, já na Fundação Joaquim Nabuco, Dirceu e eu levamos à frente outra pesquisa que mostrou a persistência do desastre social do sertão, decorrente, em anos de inverno miserável, da situação prévia de exclusão em que vive grande parte da população sertaneja.

Em ambos os estudos, presenciamos cenários desoladores de sofrimento e privação. Uma linhagem indômita e forte de gente do Nordeste – tão bem cantada por Luiz Gonzaga (1912-1989) –, ademais, se submetia à vergonha da esmola governamental por completa falta de opções. Depois das duas pesquisas, sugerimos algumas ações que, em anos bons, fortalecessem a sociedade nordestina para conviver menos penosamente com a seca. Nada, entretanto, com as características de projetos monumentais do tipo da Transposição do São Francisco, sobre a qual, aliás, também fizemos uma pesquisa na Fundação J. Nabuco em 1983 que, em termos muito simples e claros, mostrou que os sertanejos não queriam essa obra (logo esquecida pelo governo militar, que encomendara o estudo justamente para saber o que a população pensava da ideia). É assim que chegamos a mais um Natal em ano de seca terrível. O momento é de esperança para o mundo cristão. Só que, para atingir o que se espera, é preciso cultuar não o dinheiro como valor supremo, como faz nossa sociedade, mas a felicidade plena das pessoas.

Artigo publicado no DP, dom. 2 de dezembro de 2012

CRESCIMENTO E PROSPERIDADE
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br
“Crescimento sem prosperidade” é o título em tradução literal do interessante livro, publicado na Grã-Bretanha em 2009, Prosperity without Growth. Seu autor, um economista, Tim Jackson, faz parte do mesmo grupo de trabalho sobre o Butão, já referido por mim aqui, no qual fui incluído. Quando nos conhecemos no Rio, em junho deste ano, brinquei: “Crescimento sem prosperidade ou prosperidade em crescimento?” Meu comentário não deve ter sido original, mas Tim, de qualquer forma, sorriu. É que, de fato, virou dogma falar em crescimento como requisito indispensável para o progresso humano. No livro, contudo, Jackson afirma que, em qualquer senso genuíno da palavra, “prosperidade transcende preocupações materiais”. Ele realizou pesquisa idônea sobre a questão por encomenda da Comissão de Desenvolvimento Sustentável, do governo britânico. No seu raciocínio, partindo das complexas relações entre a economia, o meio ambiente e a sociedade, os dados levantados provam que, “depois de certo ponto, o crescimento não eleva o bem-estar humano”. Para ele, em face da crise de 2008, o caminho que se trilha hoje para o sucesso econômico revela-se fundamentalmente equivocado. No caso das economias avançadas do Ocidente, “a prosperidade sem crescimento não é mais um sonho utópico. Trata-se de necessidade financeira e ecológica”.
É óbvio que num país onde o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) constitui a prioridade máxima da política pública, usar o livro de Jackson como suporte de análise não atrai simpatias. Ao mesmo tempo, quando se têm tantas carências, como as brasileiras, o crescimento é necessário para, por exemplo, promover infra-estrutura, educação, saúde, habitação. Claro, isso requereria clareza quando às interconexões entre tantas coisas básicas para o bem-estar humano. Só que essa não tem sido a regra no Brasil. Nossa saúde, por exemplo, maltrata de forma penosa até classes sociais que não precisam passar, pelos recursos que possui, por situações de incerteza em tratamentos de doenças menos convencionais. Que diferença do Japão, para ilustrar, onde todos os recursos são assegurados sem fila e sem chateação no momento em que se precisar do que quer que seja – até um hospital em casa por muitas décadas! Aqui se tem muito crescimento e poucas ilhas ou poças de prosperidade.
Um país que tem tudo para ser uma desgraça – Bangladesh – prova que é possível alcançar prosperidade sem crescimento. Sobre isso – e revelando enorme surpresa pelo que constatou –, a insuspeita revista britânica The Economist, de 3.11.12, declara: “A experiência de Bangladesh...mostra que não temos que esperar por...crescimento econômico elevado para deflagrar transformações sociais”. Esse país, uma vez e meia maior que Pernambuco (é o 94º do mundo em área) tem uma população de 161 milhões. Não tem recursos naturais importantes. Sujeita-se a ciclones tropicais violentos. É muito pobre (1.900 dólares de renda per capita). E sofreu três golpes de estado entre 1975 e 2007. O que explica seu sucesso, a despeito de um crescimento irrisório? Investimento (saúde e educação) na força de trabalho feminina, microcrédito, ONGs excelentes (como o Grameen Bank) e uma resposta positiva da população. Como o Brasil seria diferente se seguisse o caminho da prosperidade, e não o da fé no PAC!

 

Artigo publicado no DP, dom. 18 de novembro de 2012

FESTA LITERÁRIA QUE INCOMODA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br


Há um ano, escrevi no DIARIO: “Acho estranho que a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) decida por si própria que vai ficar em Olinda em 2012”. Não que eu tenha qualquer coisa contra eventos de promoção da literatura. Não sou autor de romances, novelas, contos. Mas, além de ter lido, e ler, muito, já escrevi livros e publico artigos de literatura científica há mais de quatro décadas (o último, em abril deste ano, na revista Estudos Avançados, da USP). Assisti a muitos eventos de escritores no Brasil e em outros países, como os promovidos no Rio em julho de 1961 e 1962 (conheci Manuel Bandeira na ocasião) e a Feira do Livro de Guadalajara, no México, em 2001. O problema é que a Fliporto, que deve seu nome a Porto de Galinhas, de onde provém, escolheu um espaço público de Olinda que privatiza e deixa arrasado, sem contar que sua infraestrutura nem de longe adota modelo ecologicamente correto. De fato, o que os moradores de Olinda veem é sua agradável praça do Carmo ocupada por semanas (sim, a Fliporto, que acaba hoje, dura 4 dias, mas a área que invade é desarrumada para seu benefício muito tempo antes) com instalações que são cópias de estufas tornadas viáveis tão só mediante uso de potentes sistemas de ar-condicionado. Uma aberração que ofenderia um defensor de soluções adaptadas ao trópico como Gilberto Freyre, por exemplo.
Ora, tudo é decidido autoritariamente, a portas fechadas, entre os promotores da Festa e os poderes municipais, sem qualquer consulta à população que vive na área e paga seus impostos para ter essa possibilidade. Não conheço ninguém no meu círculo de convivência (eu moro a 300 m da praça do Carmo), com efeito, que tenha podido opinar sobre o transtorno que a Fliporto causa aos moradores. Ninguém foi avisado do evento. Sabe-se dele pela mudança (para muito pior) no visual da praça, pelos painéis que o anunciam nos postes, pelo noticiário dos jornais, pela comunicação do preço de 80 reais para ingresso nas atividades da Festa. É tudo antidemocrático, arrogante e excludente. A mesma coisa, aliás, de que Olinda já foi vítima quando, contra todo bom senso e lucidez, se instalou o Cirque du Soleil no Parque Memorial Arcoverde em 2009. Destruíram uma área de vegetação e campos esportivos, cobrindo-a de paralelepípedos e asfalto, para gozo da minoria de privilegiados (não 1%, mas 0,01% da sociedade) que podia pagar os ingressos durante 4 semanas de espetáculos. O que ficou depois? A destruição do parque, a despeito da alegação de que ele seria refeito e de que a empresa canadense que o usou pagou indenização por isso. Está lá a desgraça para quem quiser ver, com um campo de futebol, que antes existia em moldes aceitáveis, improvisado nos últimos tempos através da colocação de barro vermelho sobre o asfalto miserável, jamais removido.
O modelo de concepção e gestão dessas coisas – Fliporto, Cirque du Soleil – demonstra incrível insensibilidade social de quem as promove. Demonstra também desprezo – ou será ignorância – de princípios ecológicos. E reflete o vezo prepotente de quem não tem respeito pela fórmula participativa da vida política. A Fliporto é uma festa literária que incomoda. Que vá abusar do Centro de Convenções, do D. Lindu. Olinda já o foi demais! 


Artigo publicado no DP, dom. 21 de outubro de 2012


TURISMO PÓS-COPA DO MUNDO DE 2014
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Escrevi aqui, faz pouco, sobre o reino do Butão. Pois bem, esse país tem uma política rigorosa de controle do turismo. Admite uns 10 mil turistas estrangeiros por ano (pagando por dia de permanência um imposto de 440 reais). Conheci o primeiro-ministro butanês, Jigmi Thinley, no Rio de Janeiro, em junho passado. Perguntei-lhe então sobre o sentido dessa política. Explicou-me: “Nós queremos um turismo de alto valor e baixo impacto”. O oposto do que temos aqui. O assunto vem à baila na medida em que nos preparamos para uma avalancha de turistas no período da Copa do Mundo de 2014. A dúvida é se nos preparamos realmente, de modo que mais e mais turistas apareçam depois. Como estamos em matéria de língua inglesa, por exemplo? No Butão fala-se inglês nos ambientes urbanos, dos táxis aos hotéis, sem contar quem possui nível de educação secundária na população em geral. Quantas pessoas se comunicam nessa língua entre nós? Faço o teste entre meus alunos na UFPE. Indago no início das aulas: “Quem fala inglês aqui, levante o braço”. Uma pessoa ergue a mão – duas no máximo. Há sempre umas 3-5 que conseguem ler. Ora, isso é um atestado incrível de atraso – comum, infelizmente, entre intelectuais, professores universitários, pesquisadores, técnicos.
Recentemente, no Rio de Janeiro, comentei em hotéis, restaurantes e com taxistas que os benefícios turísticos da Copa e das Olimpíadas de 2016 devem ser bem aproveitados para se fazer do Rio, no pós-eventos, uma atração permanente, semelhante não digo a Paris, mas a Praga, Atenas ou Lisboa. Isso requer domínio bom do inglês. Requer também uma qualidade decente de serviços. Limpeza. Educação. E preços que valham a pena – não os escorchantes que se cobram hoje em hotéis e restaurantes no Brasil. A propósito, almoçando no dia 6 de outubro no Oyster Bar, restaurante de New York no subsolo da Grand Central Station, com amigas recifenses (Mônica Monteiro, Anita Távora, Silvana Meireles e Gisela Abad), tive uma experiência excelente. Começa que se trata de espaço enorme. Muito bem decorado, bonito. Reservei mesa com antecedência. A recepção foi competente. Atendimento sem nenhuma demora, preciso, de bom nível. Pedimos a carta de vinhos. Havia mais de 300 para escolha. O primeiro indicado, um tinto do vale do Napa, veio logo em seguida. Aqui no Recife, é comum, depois de uma escolha, o aviso: “Está em falta”. Cardápio superior. Comemos salmão-rei selvagem, de rio, peixe espada, calamares, carpácio de salmão e outras iguarias. Nenhuma espera depois de feitos os pedidos. Foram mais de 2 horas de festim, num sábado à tarde, no ritmo civilizado e gratificante da slow food. Tudo isso, mais cerveja Guinness, cheesecake (o dali, considerado o melhor dos EUA), café, água, por 66 dólares por pessoa.  
Turismo é atividade que se alimenta de referências dos turistas satisfeitos. Infelizmente, estamos muito longe de enriquecer nossas atrações – monumentos históricos em Olinda, belas praias, folclore, cultura – com um conjunto de recursos que faça quem nos visita sair falando bem de nós. Nossa infraestrutura é precária; o trânsito, horroroso. Falta-nos transporte público digno. Há muita arquitetura medíocre em toda parte, etc. Turismo de alto valor e baixo impacto exige uma qualidade que não é comum em muito daquilo que temos para oferecer.  
 

Artigo publicado no DP, dom. 7 de outubro de 2012

REPULSA AO “MENSALÃO”
Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social



Meu amigo, o professor da UFPE Lucivânio Jatobá postou em seu espaço do Facebook, na semana passada, a seguinte declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Melo: “O cidadão tem o direito de exigir que o estado seja dirigido por pessoas íntegras e por juízes probos. […] Quem tem o exercício do poder não pode exercê-lo em seu próprio benefício.” E acrescentou: “Aplausos, Excelência! Aplausos!” Essa admiração não seria necessária se vivêssemos em um país que cultivasse, de forma rigorosa, sobretudo entre os políticos, a virtude da probidade. Ninguém notaria, na verdade, o cidadão decente. Os de indigno comportamento, se porventura existissem, seriam logo identificados – e escorraçados, como se impõe. No Brasil atual, tristemente, o contrário é que prevalece. A ponto de muita gente se sentir sem ânimo para votar nas eleições municipais de hoje. E começar a enxergar no ministro do STF Joaquim Barbosa, com sua cruzada de limpeza nos pareceres que dá sobre o abominável escândalo do “mensalão”, uma esperança de dignidade. Sobre o julgamento que ocorre agora em Brasília, perguntei a uma jovem de 23 anos, da zona rural de Gravatá, domingo passado, se o estava acompanhando. Ela afirmou que sim. Indaguei ainda sua opinião. Ela demonstrou nojo com respeito ao que está sabendo. E teceu elogios a Joaquim Barbosa, falando ao mesmo tempo mal de ministros que não demonstram firmeza equivalente.

Outro geógrafo, como Lucivânio, professor da UFPE e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, meu amigo, o grande Mário Lacerda de Melo (1913-2004), acentuava com freqüência que a primeira condição para alguém ser homem público era a da probidade; depois vinha a da competência. Ele gostava de citar Barbosa Lima Sobrinho, ex-governador de Pernambuco (1948-1951), com quem trabalhou – e a quem me apresentou em 1996 na Fundação Nabuco –, como exemplo de integridade. Procuro seguir seu conselho até mesmo para escolher mecânico para meu carro. Sem contar que procuro inspiração também nas lições que meu pai não cansava de ministrar aos filhos – lições visíveis de respeito à lei, de honradez máxima. É à luz de antecedentes assim que dói ver o quadro de ruína da integridade pública no Brasil. Querer fazer de conta que o “mensalão” foi um crimezinho, um caso banal de “caixa 2”, uma ação de “aloprados”, a reprodução de práticas comuns no nosso cenário público, francamente, é o mesmo que achar que um estupro pode ser justificado por este ou aquele motivo. Quando demos um voto de confiança na proposta de renovação que o PT trazia em 2002, foi por acreditar que se estaria ali refundando o Brasil. Que se marchava para um novo tipo de poder em que os mandatários não iriam exercê-lo em seu próprio benefício. O “mensalão” constituiu um golpe miserável nessa expectativa. Merece a mais enfática repulsa. E um banimento dos que com ele se envolveram.



Artigo publicado no DP, dom. 23 de setembro de 2012


FLORA DAS CAATINGAS: BELO E VALIOSO LIVRO

Clóvis Cavalcanti - Economista ecológico e pesquisador social;  clovis.cavalcanti@yahoo.com.br



Sabe-se que a caatinga é um dos biomas menos conhecidos da ciência no Brasil. Ao mesmo tempo, tem sido vítima de longo processo de destruição, agravado nas últimas décadas. Uma tentativa de oferecer luz sobre esse ecossistema que confere identidade própria ao Sertão nordestino e, simultaneamente, permitir que se atue sobre ele de forma responsável encontra-se no livro recém-publicado Flora das Caatingas do Rio São Francisco. Trata-se de obra de enorme valor, em edição primorosa. Seu organizador – e autor ou coautor de vários dos capítulos que a integram – é o biólogo da conservação (botânico) José Alves de Siqueira Filho. Tive o privilégio de colaborar com ele, jovem e brilhante pesquisador da Univasf, na magnífica obra – também de grande valor artístico em seu design – que produziu juntamente com o grande jurista e botânico Elton Leme, Fragmentos da Mata Atlântica do Nordeste (de 2006). Sou testemunha da seriedade, rigor e envolvimento na pesquisa que José Alves impõe a seu trabalho. No caso do livro sobre a Mata Atlântica, ele e Elton Leme passaram 10 anos em pesquisas de campo. No da belíssima obra de agora, foram quatro anos, envolvendo 99 coautores que, em 212 expedições de campo, percorreram 340 mil km. Um trabalho que ninguém pode fazer sentado apenas na frente de computadores com acesso às maravilhas do Google: tem que ser lá na realidade, apalpando-a, vendo-a, sentindo-a, captando-a (os economistas são useiros e vezeiros na modalidade de pesquisa puramente de gabinete, só consultando estatísticas frias e dando-se por satisfeitos com isso).

O livro oferece conhecimento sólido sobre os mecanismos que regulam e organizam as comunidades vegetais ao longo do rio São Francisco, compondo um conjunto que José Alves classifica em sua apresentação da obra como de várias “caatingas”, e não de uma apenas. Interessante é que o trabalho resultou de convite feito pelo Ministério da Integração Nacional, interessado nos impactos da Transposição do São Francisco e na conservação da flora e fauna da região. José Alves escreve: “Com olhos de um biólogo da conservação, posso afirmar que muito do que vi foi chocante, mas também se configurou em uma fonte de aprendizado fantástica e uma possibilidade de amadurecimento profissional jamais imaginada”. Como assinala ainda, iniciadas as obras do projeto, tomadas as decisões (controvertidas), restava a possibilidade de “uma espécie de prestação de contas à sociedade brasileira diante do expressivo recurso investido”. O livro tem esse propósito. Inclusive mostra como “todos os mecanismos de crescimento econômico” levam no caso do S. Francisco a “progressiva e contínua desconstrução da sustentabilidade”. De fato, o panorama aí visto mostra “formação de solos salinizados, desertificação de áreas e migração para novas fronteiras agrícolas, repetindo ad infinitum um ciclo insustentável”. Para a biologia da conservação, trata-se de um cenário de desastres futuros “cada vez mais difíceis de serem evitados pela sociedade pós-moderna”. Algo como o que procurei sintetizar no capítulo que escrevi para o livro sobre a Mata Atlântica: opulência vegetal, ganância insaciável e a entronização da entropia. Triste. Tudo exposto na moldura de belo livro de arte produzido pela competência de Andrea Jakobsson (do Rio de Janeiro).



Artigo publicado no DP, dom. 9 de setembro de 2012
UM NOVO PARADIGMA DE DESENVOLVIMENTO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

O Butão (ou Bhutan) é um país pouco conhecido. Não admira. Com uma área equivalente à do estado do Espírito Santo (mais do dobro da de Sergipe), fica espremido entre dois gigantes – China e Índia. A Costa Rica, contudo, é só um pouco maior que ele e a Holanda, menor. Em população, o país se equipara à Região Metropolitana do Recife. E equivale ao Timor Leste e Trinidad-Tobago. Nos últimos tempos, porém, tem aparecido no cenário internacional por haver adotado como bússola do progresso da sociedade o conceito de “felicidade interna bruta” (FIB). Como diz documento do governo butanês, supõe-se que “a felicidade é um objetivo fundamental do ser humano e aspiração universal; que o PIB [produto interno bruto], por sua natureza, não reflete esse objetivo; que padrões insustentáveis ​​de produção e consumo impedem o desenvolvimento durável; e que uma abordagem mais inclusiva, equitativa e equilibrada é necessária para promover sustentabilidade, erradicação da pobreza e alimentar o bem-estar e uma felicidade profunda”.
Independente do que se pense sobre o conceito, o fato é de que ele foi proposto deliberadamente pelo rei do Butão em 1972 como contraponto à busca universal de aumento do PIB. A ideia, portanto, não é nova. Novidade é estar ela sendo agora mais conhecida. Desde 2 de abril último, o Butão iniciou um processo junto às Nações Unidas para estender ao mundo o novo paradigma de desenvolvimento embutido na FIB. Em press-release, o governo do país faz alusão a um decreto do rei, de agosto passado, que cria um grupo de trabalho internacional de peritos convocado para assessorar o país nessa empreitada, no qual se declara que “A Felicidade Interna Bruta reflete e é produzida pela integração do desenvolvimento material, relacional e espiritual”. O mesmo documento explica: “A experiência prática do Butão em seguir esse caminho multidimensional do desenvolvimento social e pessoal integrado pode contribuir e ser benéfico para outras nações e para todos os seres sencientes.” A expectativa é de que o Grupo de Trabalho, compreendendo economistas, cientistas, filósofos e outros profissionais, possa, com o recurso a saberes diversos, elaborar o novo paradigma de desenvolvimento global para promover bem-estar e felicidade como propósito global, através de políticas públicas internacionais efetivas. O Grupo deve se alimentar das melhores práticas existentes, de pesquisas e discursos elaborados em todo o mundo por pensadores progressistas, visando alcançar quatro princípios-chave, a saber: bem-estar e felicidade como objetivos e propósitos fundamentais, e sustentabilidade ecológica, justa distribuição e uso eficiente de recursos como condições necessárias para alcançar aquela meta. No rol das 55 pessoas, algumas muito ilustres, que formam esse grupo, tive a honra de ver meu nome incluído. Minha própria FIB subiu.
  
 Artigo publicado no DP, dom. 26 de agosto de 2012
QUANDO A VITÓRIA É DO TALENTO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Devemos à suave pernambucana Yane Marques a alegria de termos ganho uma medalha – ainda que de bronze – no último dia das Olimpíadas de Londres. Não fosse isso, a frustração pelo medíocre desempenho brasileiro nos agradáveis jogos olímpicos de 2012 teria sido ainda maior. A conquista da atleta, em uma modalidade – o pentatlo moderno – totalmente ignorada pela maioria das pessoas no país só pode ser atribuída a seu talento único. De fato, quem é que encontra facilidade em qualquer espaço esportivo nacional para a prática simultânea de esgrima, tiro, equitação, natação e corrida? Yane teve a sorte, já atleta consagrada, de ser acolhida pelo Exército, que sempre promoveu atividades esportivas em bom nível. Tive um professor de educação física no Colégio Nova Friburgo (estado do Rio), onde cursei o secundário, que havia se especializado em esgrima no CPOR. Com ele, aprendemos um pouco desse difícil esporte (o colégio dispunha de bons equipamentos). Yane não contou com patrocinadores. Imagino o esforço que fez para alcançar a forma que lhe permitiu destacar-se entre 36 competidoras, subindo ao pódio olímpico. Seu feito, então, é para ser cantado em prosa e verso. Penso que, especialmente em Pernambuco, temos elevado débito para com essa linda conterrânea.
Assistindo à frustrante campanha do Brasil em Londres, não se pode esconder que isso se deve ao desleixo com que se trata a juventude do país. O desleixo é evidente quando, por exemplo, nos comparamos com Cuba. Na nação caribenha, o índice de desenvolvimento humano a coloca no 51.º lugar, em termos mundiais, enquanto o gigante que somos obtém a 85.ª posição. Cuba tem mortalidade infantil comparável à do Canadá e esperança de vida no nível dos Estados Unidos. Resultado: em Londres, os cubanos ficaram em 16.º lugar no quadro de medalhas (foram 5 ouros), enquanto o Brasil alcançou o 22.º (3 ouros). Em Cuba, por pura dedicação, pois o país não é rico (seu nível de renda per capita é bem inferior ao brasileiro), formam-se excelentes atletas, cujo destaque é realçado pelo fato de Cuba ter apenas 5,8% da população brasileira.
São dados que incomodam e assustam, sobretudo quando se constata que o panorama da educação e saúde, entre nós, é dos mais infelizes. No Brasil, não se lê, não se tem muita gente falando inglês com fluência, não se adotam práticas civilizadas como a do silêncio, mais da metade dos domicílios não tem saneamento (é uma desgraça morar em habitação sem sanitário digno), doenças como leishmaniose, hanseníase, esquistossomose, doença de Chagas, febre reumática, ainda têm incidência absurda, etc. Enfim, possuímos uma fachada brilhante que oculta mazelas sociais inadmissíveis (que um país como Cuba já conseguiu superar). O insucesso brasileiro em jogos olímpicos vai perdurar enquanto não se superarem tais labéus. Até lá, teremos que depender de valores exemplares, de talento verdadeiro bem aproveitado, como no caso da admirável pernambucana Yane Marques (e da piauiense Sarah Menezes, ouro olímpico no judô, do paulista Arthur Zanetti, campeão na argola, e das belas meninas do vôlei).
 
Artigo publicado no DP, dom. 13 de agosto de 2012
VITÓRIA DA MEDIOCRIDADE
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

É triste. A população olindense praticamente não tem em quem votar este ano para prefeito da cidade. No Recife, apesar de todos os contratempos da escolha do candidato do PT – com descabida interferência de um suposto “cérebro” paulista do partido na definição da candidatura de Humberto Costa –, pelo menos se tem bom leque de opções. De Roberto Numeriano a Mendonça Filho, de Edna Costa a Daniel Coelho, a Jair Pedro, e de Humberto a Geraldo Júlio, o eleitor vislumbra perspectivas. Já em Olinda, o que se tem é a possível façanha de perpetuação na prefeitura de um desbotado Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o do atual ocupante do cargo (Renildo Calheiros) e de sua antecessora (Luciana Santos). Quando Luciana se apresentou em 2000, foi como um raio luminoso no cenário de mediocridade em que a política olindense tinha mergulhado. Jovem, cheia de energia, ligada, ela correspondeu à expectativa no seu primeiro mandato. Já no segundo, foi um desastre, quando se deixou envolver por manobras politiqueiras de baixo nível. Sua sucessão trouxe um forasteiro para o seu lugar, Renildo Calheiros – alagoano, originário da política estudantil, sem vínculos com Olinda, da qual sequer era morador de verdade. Não sei dos detalhes, mas pessoa informada me contou que o nome de Renildo foi uma imposição do então presidente Lula da Silva.
O resultado é que a cidade paga a conta – ou seja, nós, moradores permanentes. Um lugar admirado como Olinda, Patrimônio da Humanidade, tem um poder público municipal que nada adiciona para que essa admiração aumente e se consolide. Há iniciativas particulares que a reforçam, sem dúvida. É o caso do legado de belos monumentos da igreja católica e dos respectivos sítios ecológicos (áreas verdes fantásticas do convento franciscano, das beneditinas do Monte, das freiras do Santa Gertrudes e do convento das Dorotéias, dos monges de São Bento, do vetusto Seminário de Olinda). É o caso também do sítio dos Manguinhos, o Horto Del Rey, o segundo mais antigo jardim botânico do Brasil. É o caso ainda do Hotel 7 Colinas, exemplo de bom gosto moderno, com agradável parque; de restaurantes como o Maison do Bonfim, o Beijupirá, a Oficina do Sabor, o Don Francesco, que contribuem para que a vida em Olinda fique mais charmosa. Sem falar de esforços federais como no caso da restauração da igreja do Carmo, uma relíquia do primeiro convento carmelita das Américas.
Exemplo da má gestão municipal de Olinda é a obra que se faz neste momento na av. Marcos Freire (beira-mar do Bairro Novo). O calçadão foi implantado com lajes de pedra na gestão de José Arnaldo há 22 anos. Inexplicavelmente, Luciana Santos retirou tais pedras há 8 anos, substituindo-as por cimento e ladrilhos – que, logo, apresentaram problemas. Pois bem, Renildo está substituindo esse material... pelo mesmo material! É inacreditável. A única diferença da calçada de Luciana para a de Calheiros é sua largura. Diminuiu 70 centímetros, ampliando a ciclofaixa. Precisava destruir todo o calçadão? Infelizmente, essa é mais uma razão para tanta tristeza dos eleitores na próxima eleição municipal. Vitória da mediocridade.
  
Artigo publicado no DP, dom. 29 de julho de 2012
CONTRASTE DO MARANHÃO COM GARANHUNS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Neste julho, estive em Garanhuns e São Luís do Maranhão. No primeiro, para o fabuloso FIG (Festival de Inverno, em sua 22ª edição). Na capital timbira, para o importante evento da 64ª Reunião Anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). Conheço São Luís desde julho de 1968. Visitei a cidade como turista, numa época em que ela não era destino turístico algum. Hoje, teoricamente, exibe tal rótulo. No entanto, o que a cidade de belo (e aviltado) patrimônio histórico oferece é a imagem de uma decadência inexorável. Seu aeroporto, reformado há menos de 20 anos, passa por nova reforma – que se arrasta há pelo menos 2 anos – porque a anterior foi um desastre. Quem nele desce, tem horrível impressão. De lá ao hotel na praia onde fiquei (o Veleiros Mar), faz-se um percurso que não é a regra para quem vai de aeroportos a hotéis em qualquer lugar civilizado, ou semicivilizado, do planeta. São vias de calçamento muito ruim com desvios e mudanças de direção que cansam e espantam.
No meu hotel, por outro lado, serviços básicos do tipo água de beber no apartamento ou atendimento de restaurante, quando o hóspede não quer, ou não pode, sair do quarto, eram desconhecidos. Numa noite, solicitei uma pizza e suco de laranja. Informação do empregado do chamado room service: “Não temos atendimento nos apartamentos. O hóspede deve buscar no restaurante o que pediu”. Certo, pensei, vou buscar. Queria deixar o pedido e esperar o aviso de pegar o que desejava quanto tudo estivesse pronto. Nova frustração: “Não temos suco de laranja”. Desisti. Logo na chegada ao hotel, depois de lavar as mãos, vi que faltavam toalhas no cômodo que ocupei. Telefonei para a recepção. Recomendaram-me procurar a governança. Ninguém atendia do outro lado. Voltei a ligar para a recepção. Mandaram-me aguardar. Esperei 20 minutos. Nada. Nova chamada à recepção. Recomendação: ligar para a governança. “Ora, lá não atendem”, protestei. Disseram que iam providenciar. Mais 10 minutos, chegaram as toalhas!
O fenômeno do desmoronamento maranhense era visível no campus da Universidade Federal (a UFMA), no Bacanga. Em obras desordenadas, a infra-estrutura disponível exibia tudo o que de ruim se poderia esperar. Em enorme contraste, aliás, com o que encontrei na própria São Luís, em 1995, na 47ª Reunião Anual da SBPC. Nessa ocasião, o campus e o apoio logístico exibiam estado muito superior. Agora, é comum faltar luz, por exemplo. Isso aconteceu numa mesa que presidi dia 23, das 15h30 às 18h. Às 17h, a energia desapareceu. Acabaram-se iluminação e ar condicionado. Voltaram às 18h. Nos dias 24 e 25, nas aulas que dei, de 8h às 10h, o ar condicionado ia e vinha. Algumas vezes, apagava-se a luz e o data show também. No térreo do prédio central do encontro, simplesmente inexistia sanitário! Combinando hotel, aeroporto, cidade, patrimônio, campus, o que se pode dizer de São Luís é que é lugar a ser evitado. Uma pena. Em 1995, Roseana Sarney governava o estado. Continua a governar hoje. Seu pai, que deveria estar de pijamas em casa, manda na República. Dizem os taxistas com quem andei que as razões do atraso maranhense residem aí. Um contraste com a beleza de Garanhuns e seu maravilhoso Festival de Inverno.
 
Artigo publicado no DP, dom. 15 de julho de 2012
OBEAU GESTE DE MAURÍCIO RANDS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

No deplorável episódio da nomeação paulista de um candidato do PT a prefeito do Recife, o esperado de um político com a formação acadêmica de Maurício Rands seria que, de modo civilizado, reconhecesse a vitória, na prévia do Partido, do prefeito João da Costa, retirando sua postulação. Não foi isso o que fez, submetendo-se ao carão que foi passado em São Paulo a ele e a seu opositor. Alijado aí do páreo, despareceu para uma reflexão sobre o fato. O prefeito, no seu indiscutível direito, tentou reverter a situação, visando mudar o revés que seus “superiores” – que não deveriam se considerar assim – lhe impuseram. Perdeu. Foi humilhado ao extremo. Maurício Rands, em contrapartida, aproveitou bem seu sumiço. A consciência lhe falou mais alto. Num gesto apreciável para quem vê na política o exercício da cidadania plena, desligou-se do PT. Mais: renunciou a seu mandato de deputado e afastou-se da vida pública. Fez o que os franceses chamariam de “beau geste”.
O inacreditável é que haja quem a isso considere como traição, usando o samba de Beth Carvalho para fazer supor que o PT tenha sempre dado a mão a Rands. Sou amigo de seu irmão Alexandre, competente economista, e fiquei sabendo algo de Maurício quando fui professor visitante na Universidade de Oxford (Grã-Bretanha), em 2000. Lá ele se doutorou – uma honra, sem dúvida, não acessível a tantos que desejariam estudar nessa formidável universidade, fundada há mais de 800 anos. Seu orientador, Hermínio Martins, sociólogo português, meu amigo, tinha sempre palavras positivas sobre o aluno. Por isso, não me surpreende o caminho que escolheu. Consegue, assim, pairar acima da mediocridade de políticos que, para o avanço da carreira, aceitam qualquer imposição. Na eleição de 2002, quando Rands foi candidato a deputado federal pela primeira vez, surpreendeu-me em Gravatá a mobilização de militantes a seu favor. Rands, ao lançar sua candidatura, disse que ia bancá-la com rendimentos próprios de seu ofício como advogado trabalhista. Na ocasião, favoreceu enormemente os candidatos do PT, pois fazia campanha por todos eles, inclusive Humberto Costa. E obteve grande votação. É, pois, com a maior surpresa que o vejo ser acusado de trair “a quem sempre lhe deu a mão”.
Não tenho qualquer motivo pessoal para falar a favor de Rands. Nunca votei nele (votei em Pedro Eugênio, por exemplo). Só trocamos cumprimentos sociais creio que uma única vez (mas me beneficio da hospitalidade de seu irmão Alexandre). O que, para mim, merece registro na atitude de Maurício foi ele ter abdicado de partido, e de cargos. Pois o hábito é de políticos saírem de partido, mas não renunciarem a mandatos, embora até se compreenda que não o façam. A invocação do samba de Beth Carvalho, passando a ideia de traição de Maurício Rands, revela pobreza de espírito. Ao mesmo tempo, querer atribuir a políticos paulistas ou a quem desfrute de elevados cargos na República a condição de grandes eleitores do prefeito do Recife, como se os detentores de título em Pernambuco fossem crianças bobas precisando de tutores, é de uma indigência mental extrema. Além de fazer a exaltação de extemporâneo autoritarismo.

Artigo publicado no DP, dom. 17 de junho de 2012
A RIO-92 FOI MAIS SÉRIA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Estive presente às grandes conferências da ONU no Rio, em 1992 (a Cúpula da Terra ou Eco-92, como ficou conhecida), e agora em junho (a Rio+20). Na verdade, não participei dos eventos oficiais de ambas. Na primeira, durante 3 semanas, assisti à parte científica, à parte de tecnologia e meio ambiente e às discussões da economia ecológica. Na versão de agora, durante apenas 5 dias, fiquei todo o tempo no congresso bienal da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE, sigla em inglês),  que tem uma correspondente brasileira (EcoEco), da qual sou presidente de honra. Isso não impediu que eu tivesse contato com pessoas que estavam em outras atividades, do universo paralelo que precedeu e acompanhou a Rio+20, e andasse um pouco na Cúpula da Terra (em 1992, sua equivalente foi o Fórum Global). Da experiência, posso dizer que a Rio-92 foi mais séria. Ela não só produziu compromissos concretos (não importa se eles tenham se esvaziado com o tempo), a exemplo da Agenda 21 e Convenção do Clima, como introduziu o conceito de desenvolvimento sustentável – a meu ver, um pleonasmo, pois não existe desenvolvimento insustentável.
O encontro da ISEE, no entanto, foi muito proveitoso. Falaram lá, na abertura (a que presidi), Cristovam Buarque e a presidente do WWF, Yolanda Kakabadse. Posteriormente: os criadores do conceito da pegada ecológica (William Rees e Mathis Wackernagel), a indiana que venceu uma luta contra a Coca e a Pepsi na Índia (Sunita Narain), o canadense (Peter Victor) e o britânico (Tim Jackson) que mostraram como se pode ter desenvolvimento sem crescimento econômico, Ignacy Sachs – bem conhecido no Brasil –, mais gente interessante e, por último, Jigmi Thinley, primeiro ministro do Butão (Bhutan). Esse país de feição budista, perdido no Himalaia, ficou conhecido por haver rejeitado há quase 4 décadas o modelo de desenvolvimento centrado no PIB (produto interno bruto), adotando em seu lugar a noção de felicidade nacional bruta (FNB). Sobre ele, a Rede Globo apresentou ótimo Globo Repórter, com Glória Maria, há um ano, em que a jornalista não conseguia esconder sua perplexidade diante do que encontrou ali: um povo alegre; um país igualitário; um clima de tolerância e compreensão; uma valorização dos laços familiares; uma proteção decidida dos ecossistemas nacionais (as florestas butanesas cobrem hoje 80% do território do país. Eram 60% há 50 anos).
            Thinley começou elogiando o campo da economia ecológica. Afirmou: “Chego mesmo a dizer que o trabalho dos economistas ecológicos deveria ser na verdade o ponto de referência primário para a cúpula que está começando”. Segundo ele, essa reflexão oferece expressão corajosa da bondade básica e da sabedoria inerente da humanidade. Para ele, a economia ecológica tem demonstrado sem sombra de dúvida que é absurdo isolar os sistemas econômicos do ecossistema que os abriga e lhes provê recursos básicos de sustentação da vida, além de absorver todos os seus dejetos. Ele acrescentou ainda que o Butão será, em breve, o primeiro país 100% orgânico do mundo. Realmente, palavras precisas e sensatas, do maior significado e que levam a admirar-se uma nação pequena como o Butão que sabe ser dona de seu destino.
 
 
Artigo publicado no DP, dom. 17 de junho de 2012
A VOLTA DOS BIÔNICOS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Pode-se dourar a pílula como for, mas para quem já viveu sob o império das escolhas biônicas, a indicação do candidato do PT a prefeito do Recife tem enorme semelhança com o abominável processo do período militar recente no Brasil. Não sou eleitor regular do Partido dos Trabalhadores. Votei nele algumas vezes, inclusive em Humberto Costa. Nas eleições de 2010, sufraguei apenas nomes do meu partido, o PV. Mas, como observador da cena política, não posso deixar de registrar o enorme desagrado que colhi de inúmeras pessoas que pensam com seriedade nossos problemas, em face da rasteira de que foi vítima o prefeito João da Costa. Afinal, quem deveria julgá-lo, primeiro, eram os filiados do PT e, depois, caso saísse candidato à reeleição, o eleitorado recifense. Os integrantes do partido se manifestaram de forma democrática na prévia realizada, a qual deveria servir de exemplo a outras instâncias do PT, e aos demais partidos brasileiros. Tristemente, não foi isso que se viu, porém. Uma camarilha assumiu o papel das bases, rasgou a manifestação dos filiados ao PT no Recife e impôs o nome que lhe convinha. Ora, um candidato desse naipe só pode ser chamado de biônico. Pelo menos, para nós, simples eleitores, massa de manobra da nova elite de coronéis sem a pompa do velho coronelato.

Como eleitor que sou em Olinda, talvez alguém sugira que eu devesse ficar calado. Ora, fazer isso é simplesmente querer impor mais obscurantismo numa situação lúgubre. Está na hora de todos se manifestarem, de invocar os brios pernambucanos – nosso “rubro veio”, diria Evaldo Cabral de Mello. A capital de Pernambuco não é São Paulo. Parecia. O prefeito João da Costa e seu adversário dentro do PT, nada menos do que um doutor da vetusta Universidade de Oxford, Maurício Rands, para resolver sua pendenga ficaram num vaivém grotesco entre o Recife e a capital paulista. Lá, ouviam admoestações, relhos, puxões de orelha. Não sei se era bem assim, mas as cenas mostradas das reuniões na Paulicéia fazem supô-lo. Durante a ditadura militar (ou “democracia relativa”, como a definiu o general-presidente Ernesto Geisel), carões em adultos crescidos eram frequentes. Repetiu-se a dose agora, sem possibilidades de apelação para quem quer que seja.

Aliás, o presidente Lula da Silva, segundo comentários ouvidos em Olinda, teria apontado o nome do prefeito Renildo Calheiros como candidato em 2008, na sucessão de Luciana Santos. O fato é que a autoridade olindense não é um nome da cidade, não morava aqui; apenas integra o mesmo partido (PCdoB) da prefeita que o antecedeu. Votei em Luciana, uma olindense autêntica. Não fiz o mesmo em Calheiros. E depois de 3 anos e meio de mandato inoperante, é lamentável que se candidate à reeleição. Os filiados a partido da chamada base foram ouvidos em Olinda? Não. Na minha rua, no sítio histórico, desconheço quem quer que tenha sido consultado. Em 2002, Luciana Santos chegou a vir a minha casa para escutar o que eu tinha a dizer de seu nome como candidata. Foram coisas boas. Calheiros, pelo contrário, tem meu repúdio. O mesmo que sinto com relação à volta dos biônicos no Recife.

Artigo publicado no DP, dom. 3 de junho de 2012

A REDUÇÃO DO IPI DOS CARROS BRASILEIROS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Entre leitores pacientes, conto com pessoas qualificadas como o biólogo e cordelista dos bons, meu ex-aluno Bartolomeu Leal de Sá. Recentemente, dele recebi mensagem contestando a atual política do governo cortando no IPI dos automóveis. Em sua argumentação, Bartolomeu esclarece: “As pessoas que desejam comprar ou trocar o carro usado aplaudem a decisão do governo para baixar os preços de automóveis e criar facilidade reduzindo os juros e aumentando o prazo do financiamento. Os que não têm carro alegram-se em poder realizar o sonho de ter mais conforto, e poderem se deslocar com mais rapidez”. Todavia, acrescenta: “mais carros nas ruas das grandes cidades significa trânsito congestionado, imobilidade urbana, poluição generalizada, atrasos, prejuízos, péssima qualidade de vida. O conforto do automóvel será o ar refrigerado, a música ambiente, as luzes dos controles no painel. Desfrutando de tudo isto, parado no trânsito”. Concordo com Bartolomeu. E acrescento que os congestionamentos contribuem para maior emissão de CO2, o gás-estufa que parece ser o vilão do aquecimento global (há quem conteste isso).
Como observa Bartolomeu, “O objetivo do governo não é bem tornar possível o sonho das pessoas [de ter o seu carrinho], mas aumentar o faturamento das montadoras, dos fornecedores, das concessionárias, dos produtores e vendedores de combustíveis, enfim aumentar o consumismo neste setor, aumentar o PIB, e em conseqüência arrecadar mais impostos, o que compensará a redução [do IPI]. Governos e empresas fazem acordos entre si, para ajustar seus interesses de faturamento, e não para ajudar o povo. Mas isto deixa os consumidores eufóricos”. Na verdade, o sonho das pessoas é viver bem, ter paz, poder sair sem medo à rua, confraternizar, aproveitar a beleza do mundo. Infelizmente, os meios de publicidade e de comunicação fazem crer que, para isso, é preciso consumir insanamente. Ora, consumir requer produção de bens e serviços. E produzir significa duas ações: extrair mais recursos da natureza (não se produz alguma coisa do nada) e jogar aquilo que se produziu e virou sucata algum dia de volta à natureza. De um lado, cavam-se buracos cada vez maiores, alguns dos quais eternos; de outro, amontoa-se detrito de todo tipo (cinzas, pó, lixo eletrônico, etc.), acumulando-se sujeira, parte da qual também eterna.
Promovendo o automóvel, supõe-se que o PIB vá crescer. O que aliviaria a tensão suscitada pela ameaça de declínio na atividade econômica. Numa ótica puramente econômica, isso pode fazer sentido. Contudo, levando em conta os impactos negativos da indústria automobilística, é óbvio que a saída tem que ser de outra índole. O que acontece é que o governo não tem orientação para determinar o tipo de crescimento que interessa ao país. Resolver problema de transporte da população não tem que levar ao automóvel. Pelo contrário, o modelo do carro está ultrapassado para o meio urbano. Como propõe Bartolomeu, “Seria mais eficaz... que o governo federal investisse ou atraísse investidores, para explorar serviços de trens metropolitanos de qualidade”. Sua justificativa: o “transporte público de qualidade é melhor que o transporte individual, de carro parado numa fila de trânsito congestionado”. Concordo.


 
Artigo publicado no DP, dom. 20 maio. de 2012
 
MENOS DE UM CONTRA MAIS DE 99 POR CENTO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social
            O mal-estar que está causando ao país a lamentável peça de legislação saída da Câmara de Deputados no dia 25.4.12 dá todo sentido à monumental campanha “Veta, Dilma!”, em curso no país. Só o Greenpeace, uma ONG ambientalista de relevo mundial, conseguiu reunir quase 2 milhões de pessoas num abaixo-assinado pedindo à presidente que rechace o projeto dos deputados brasileiros. A propósito, o prof. José Eli da Veiga, da USP, escreveu no Valor – jornal paulista – de 15 do corrente: “Qual será o limite de desfaçatez dos que sonham com uma lei que legitime os desmatamentos criminosos dos últimos 12 anos e ainda torne desprotegidas as áreas úmidas, os manguezais, as margens dos rios, as encostas e os topos de morro?” Pois é isso justamente o que permite a decisão da Câmara Federal, ao aprovar a triste proposta de reforma – apoiada surpreendentemente por parecer de um congressista do PCdoB – do salutar Código Florestal brasileiro. Como lembra o respeitado prof. José Eli, meu amigo, o território brasileiro tem sido ocupado “por um esquema de desmatamento, queimada e capim que atropela todas as precauções intrínsecas ao cuidado de se manter as APP [áreas de preservação permanente]”. Diz-se que a necessidade de aumentar a produção agrícola do país impõe isso.
Só que, com o projeto da Câmara, as áreas protegidas teriam “imediato salto de valorização patrimonial, apesar de todos os riscos de erosão dos solos e assoreamento de rios” que adviriam da rejeição dos cuidados com terrenos frágeis do ponto de vista ambiental. Ótimo para os especuladores. O medo dos que têm destruído de modo sistemático nossas terras, levados por uma gula insaciável de lucro, é que o veto de Dilma Rousseff significa “exigir a reversão de tão trágico malfeito”, conforme José Eli, que cito também acima e abaixo. A Lei de Crimes Ambientais (de 12/2/98) está regulamentada desde 1999. Desmatar APP depois dela gera crimes dolosos “que, se perdoados, configuraria mais indulto que anistia”.
Daí por que é fundamental que não se crie uma situação em que o crime compensa – e crime em escala de 8,5 milhões de km2. A quem interessa que o projeto da Câmara passe? Aos menos de 1% de brasileiros que desmatam, põem fogo, destroem biodiversidade, aterram manguezais. Tentam disfarçar o crime alegando que não permitir que se avance em APP significa que os preços de alimentos vão subir em decorrência de diminuição da área cultivada. Daí ser preciso revogar o saudável Código Florestal em vigor. Essa é a argumentação da presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), senadora Kátia Abreu (PSD/TO), a quem o relator do PCdoB, o hoje ministro Aldo Rebelo, equivocadamente se aliou. Estudo do próprio agronegócio, o “Outlook Brasil 2022”, mostra que a área necessária para expandir a produção de grãos até 2022 não chega a 3% do espaço coberto por capim. Ora, tudo isso equivale a querer impor a mais de 99% dos brasileiros, o que interessa a menos de 1%! Por algo assim começou a briga do Occupy Wall Street. Veta, Dilma!
  
 
Artigo publicado no DP, dom. 6 maio. de 2012

O TITANIC E A RIO+20
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

   Em que medida o destino do Titanic tem a ver com a conferência da ONU no Rio de Janeiro em 20-22 de junho próximo, a Rio+20? Nada, aparentemente, uma vez que a grande reunião que se aproxima é uma comemoração da conferência de junho de 1992, a Cúpula da Terra, também conhecida como “Rio 92”, cujo tema foi meio ambiente e desenvolvimento (o da que irá ocorrer é desenvolvimento sustentável, com ênfase no que se está chamando de “economia verde”). Ambas dizem respeito às possibilidades de se promover oportunidades econômicas à luz das restrições ecológicas do planeta. É aqui que o fim do Titanic no dia 15 de abril de 1912 e o encontro da ONU se cruzariam.
     A ideia vem do cineasta James Cameron, diretor do aclamado filme Titanic, que declarou, em recente programa da TV a cabo National Geographic, ser o afundamento do navio uma metáfora do que acontece no mundo, hoje, em termos de arrogância, prepotência e fé na impossibilidade de dar errado o modelo econômico de crescimento que as nações do mundo consideram como solução para o progresso. Como se sabe, do navio, que fazia sua viagem inaugural, dizia-se que jamais naufragaria.  Segundo Cameron, a enorme máquina, “esse sistema humano, marchava para frente com tal dinâmica que não podia dar volta, não podia parar a tempo de evitar um desastre”. A seu ver, “isso é o que temos agora. Não podemos dar meia volta por causa da dinâmica do sistema, da dinâmica política, da dinâmica dos negócios”.
   Sobre o assunto, o blogueiro Dave Gardner, no site http://steadystate.org, postou uma coluna (“O Código do Titanic”) no dia 19.4.2012 em que considera a metáfora de Cameron bastante adequada na medida em que o tamanho do navio significa que ele não era ágil. Nem podia parar bruscamente, nem mudar de curso. Era necessário que o comandante pudesse ver muito à frente para sondar o horizonte distante e planejar o curso da viagem com antecedência. Com uma população de 7 bilhões de pessoas, um PIB de 75 trilhões dólares, cidades em toda parte (do Nepal ao Marrocos, da China ao Brasil) entupidas de carros, obras de infra-estrutura monumentais que se erguem de todos os lados, o mundo vê sua máquina econômica mover-se a todo pano, com ímpeto inexorável. Com um agravante: quase ninguém deseja vê-la parar.
    Em 1992, percebia-se claramente que a Terra estava com seus limites ameaçados pelo crescimento econômico (ficou pior em 2012). Daí, a noção de desenvolvimento sustentável – que a ONU conceituou como o da economia que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de satisfação das necessidades das gerações que virão. O uso excessivo da natureza conduz ao esgotamento não só de recursos não-renováveis, como também  de renováveis cujas taxas de reposição não forem respeitadas. Isso é o que se vê agora, com a capacidade de assimilação de CO2 da atmosfera ultrapassada, pesqueiros esgotados, rios que secam, solos que se desertificam, biodiversidade que se extingue. É nesse contexto que se persegue uma “economia verde”, um sistema que respeite a capacidade da natureza de prover recursos. Sentido da Rio+20. Para que não nos aconteça o destino trágico do Titanic.

 
 Artigo publicado no DP, dom. 28 abr. de 2012
“OCUPE ESTELITA, JÁ!”
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

   O grito de guerra “Ocupe Estelita, já!” foi lançado no Recife, com êxito, no domingo de Páscoa, 15 de abril último. Iniciativa da sociedade civil, um movimento se estrutura por detrás dessa palavra de ordem que diz respeito à briga da população contra o destempero de se desmontar a paisagem recifense tão agradável de ver na região do cais José Estelita às margens da baía do Cabanga. Lembro-me, quando criança, indo da casa de minha avó, no Pina, de ônibus, para o centro do Recife, e passando por esse local singular. Os armazéns dali, então fervilhando de estivadores e caminhões carregados de sacas de açúcar, compunham um cenário que agradava, o bairro de S. José emoldurando-o. Depois veio o absurdo do viaduto das Cinco Pontas, monumento à burrice arquitetônica, esmagando o forte de tanto significado histórico. Felizmente, urbanizou-se o cais e deixou-se a passagem livre para contemplação. Diante disso, o destino que as autoridades querem dar ao cais José Estelita, vendendo-o a especuladores imobiliários, é uma ofensa de enormes proporções à memória da capital pernambucana.
   Frente ao descalabro, rebela-se a população. É a batalha dos 99% de desprezados contra o 1% de beneficiários das arbitrariedades governamentais e da sede insaciável de lucro. A mesma motivação do movimento que iniciou a rebeldia contra a prepotência dos que se julgam donos dos destinos da coletividade. Como se sabe, tal movimento começou em Nova York (no Zuccotti Park) em 17.9.2010 com o nome de “Occupy Wall Street”. Nasceu, segundo um dos que o conceberam (Kalle Lasn, editor da revista Adbusters), a partir de eventos como a Primavera Árabe, as ações anarquistas nas ruas da Grécia, o protesto dos jovens “Indignados” da Espanha. Ou seja, trata-se de uma luta da sociedade contra o aparato que reprime a manifestação de maiorias substanciais da população. No caso americano, foi a percepção de como os ricos têm ficado absurdamente mais ricos enquanto 99% da sociedade não sai do canto ou enfrenta desemprego e declínio da renda real. Conforme Lasn, algo tem que ser feito para mudar o país. Nas suas palavras “Criemos um momento de Praça Tahir na América”.
   É o que precisa ser feito no Recife, em Pernambuco, no Nordeste, no Brasil. Lasn, sobre o Ocupe Wall Street, afirma: “Precisamos de uma mudança de regime também nos EUA”. Não, porém, “uma mudança dura como no Egito, onde ditadores torturavam gente. Estamos atrás de uma mudança suave”. Sem violência, claro. Ora, aqui entre nós, as ações públicas surgem embaladas por muitas formas de violência. Em Suape, por exemplo, muitas pessoas que ali sempre viveram reclamam de milícias armadas que as estão sitiando e ameaçando. É o vezo autoritário que continua valendo em plena vigência da democracia, conquistada a duras penas (sim, aqui houve tortura!). Está na hora de toda a sociedade reagir. De se rebelar contra a destruição de bens públicos, como essa do cais José Estelita. A cidade do Recife já foi demais sacrificada, como pela construção das abomináveis torres do cais de Santa Rita e da horrorosa av. Dantas Barreto. Está na hora de um “Ocupe o Recife” intenso, efetivo, corajoso.
 

 Artigo publicado no DP, dom. 8 abr. de 2012

OS VIADUTOS DA AGAMENON MAGALHÃES 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Em 1978, passei algumas semanas como professor visitante na Universidade de La  Trobe, em Melbourne ( Austrália). Voltei de lá impressionado com a qualidade do transporte de massa da respectiva região metropolitana. Um casal australiano de amigos e compadres (Rowan e Mary Ireland) me dava hospedagem (e a minha filha, Claudinha). Era fácil ir de sua casa, na cidade satélite de Lower Plenty (havia até uma Olinda nas redondezas) ao centro de Melbourne, cidade maior que o Recife. Tomava-se um trem e depois um bonde. Tudo rapidíssimo. O mesmo sistema, com aperfeiçoamentos, encontrei em 2000, quando lá estive de novo. Imaginei em 1978 por que o Recife não poderia ter algo semelhante. Trens, por exemplo, que saíssem do centro da cidade e fossem para Maria Farinha, para Barra de Jangada, para Beberibe ou Paulista, para Camaragibe, para Tejipió. Como isso, apoiado em linhas suplementares de bondes, facilitaria a mobilidade das pessoas! Tentei vender a idéia onde pude, mas não havia audiência. Não dá para estranhar que se chegue a 2012 no Recife com um sistema de transporte público estrangulado. E que surjam soluções paliativas mirando a Copa de 2012, como é o caso desse projeto local para a av. Agamenon Magalhães. Todo ele apoiado no modelo do ônibus.
A questão é que viaduto significa prioridade para os carros e não há futuro na primazia do automóvel como meio de transporte urbano. Os países mais ricos do mundo estão abrindo espaço cada vez mais para a bicicleta e, desde há muito (a exceção é os EUA), investem em trens e bondes. É assim na Suíça, na Áustria, na Holanda, na Itália. Os turistas brasileiros que andam por lá (pena que as autoridades, quando viajam, tenham transportes individuais em carrões) vêem como a coisa funciona, e bem. Até mesmo em Portugal, cujo desenvolvimento não é dos maiores, os transportes públicos oferecem condições bem melhores que aqui. É famosa, em Lisboa, a linha de bonde conhecida como Carreira 28, cujo terminal sul é no cemitério dos Prazeres (nome curioso). Há mais de um século que funciona.
É comum o governo alardear planos mirabolantes como favas contadas e exibir plantas, maquetes, animações que procuram convencer o público de que tudo foi bem planejado e que se terá no futuro aquilo que desenhos bonitos mostram. Tal é a sensação que experimentei vendo a publicidade da administração estadual com sua proposta para a Agamenon Magalhães. Não está em questão o intento do governo de melhorar a vida das pessoas, facilitando seus deslocamentos. Mas interessa aos usuários e a quem habita os espaços vizinhos à avenida que mais carros não convirjam para lá. Pelo contrário, é necessário afastá-los da cidade de modo geral, e que não se enfeie ainda mais a paisagem. Assim, causa a maior estranheza que nada se tenha feito para privilegiar a bicicleta no novo projeto e que o meio ferroviário não esteja nele contemplado. Vai se eternizar a hegemonia do ônibus com todas as limitações e falta de leveza a ele associadas? Os viadutos da Agamenon Magalhães sinalizam para isso. Mesmo que se ofereça uma solução de última hora contemplando bicicletas. Marginalmente.
 
 
 Artigo publicado no DP, dom. 25 mar. de 2012
 
DESIGUALDADES PERSISTENTES 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

Há cerca de um mês, um tio do marido de minha empregada de Olinda, José Ivanildo dos Santos, de 42 anos, passou mal e desmaiou na rua em S. Cruz do Capibaribe. Aí morava e fazia serviços de pedreiro. Sem documentos na ocasião, foi levado ao hospital público da cidade. A família, obviamente, não pôde ser logo notificada. E o caso era sério: requeria UTI. Esse recurso não estava disponível em qualquer lugar próximo – como foi dito aos parentes. O paciente foi levado então para Juazeiro do Norte (CE), local mais perto onde o sistema de saúde teria identificado uma vaga de UTI, a quase 600 km de distância. De recursos modestos, não foi possível à família prestar assistência a José Ivanildo. Ainda se conseguiu que alguém fosse até Juzeiro para se inteirar da situação e fazer uma visita ao doente. Ele não voltou do coma em que tinha entrado e faleceu uma semana depois (parece que tudo começou com comida estragada de que ele se serviu). Lutando com dificuldades, os familiares conseguiram trazer o corpo para Santa Cruz, onde foi enterrado. A prefeitura de Juazeiro deu o caixão. A família arcou com as despesas de transporte. Acompanhei de perto o drama e também colaborei para as despesas.
No mês de janeiro, meu amigo, o antropólogo e professor da UFPE Renato Athias, que estuda assuntos indígenas, estava em São Gabriel da Cachoeira, quase fronteira com a Colômbia. Sentiu-se mal. Foi a pé até o hospital que o Exército mantém ali e, logo, lhe diagnosticaram um infarto agudo. Ao mesmo tempo, mesmo sem um cardiologista na equipe médica do hospital, deram-lhe tratamento preciso, o que lhe salvou a vida. Uma UTI aérea foi providenciada e o levou até Manaus, a 850 km de distância. Na capital amazonense, fez-se o que era necessário e Renato hoje está de volta a suas atividades, recuperado do susto por que passou. Ótimo que tenha sido assim. Essa é a maneira com que todo cidadão brasileiro deveria ser tratado quando precisasse de algo tão importante quanto socorro médico. Aliás, trata-se de um direito civil consagrado pela Constituição Brasileira em vigor. Lamentavelmente, porém, o modo com que José Ivanildo e Renato foram tratados evidencia enorme desigualdade social. Algo que, na verdade, é um traço característico de nosso país.
Na semana que passou, fui a uma audiência no Fórum de Gravatá. Tive que firmar um documento. Um jovem de uns 20 anos, também na mesma audiência, não pôde deixar a assinatura no papel. Ficou sua impressão digital. Ou seja, de um jovem completamente analfabeto. Caso isolado? Sabemos muito bem que não. Os excluídos de nossa sociedade são enganados, na maioria dos casos, em termos da educação que recebem. Tenho um excelente trabalhador na minha propriedade de Gravatá – verdadeiro engenheiro, pelas habilidades que revela (até computador conserta!). Mas não lê. Soletra. Tem carteira de habilitação e é exímio na direção de carros e motos. São inumeráveis as situações dessa natureza em Gravatá, em Pernambuco, no Nordeste, no Brasil. Que país desigual, este Brasil!
 
Artigo publicado no DP, dom. 11 mar. de 2012

A HORA E VEZ DA BICICLETA 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

É visível, para quem pensa, que as condições do transporte urbano na Região Metropolitana do Recife caminham para o caos mais completo. Não adianta construir viaduto. Na verdade, isso, no longo prazo, só faz piorar. É que funciona como atrativo para que os carros individuais, que geram o problema, continuem a entrar impunemente no tecido da RMR. Em toda parte do mundo onde a sensatez tende a imperar, o que se faz é dificultar, nas cidades, a vida do automóvel – tão apreciado como suposto fator de mobilidade e símbolo de status. Na Bélgica, empresas estão pagando aos funcionários para que se dirijam ao trabalho de bicicleta. Em Cingapura, o correspondente a nosso IPVA é tão alto que quase equivale a se comprar um novo carro todo ano para poder andar com o velho. Em Londres, desenharam-se anéis em torno do centro da cidade para entrar nos quais, de carro, paga-se um pedágio cada vez maior à medida que se chega perto do eixo de referência. A cobrança é feita através de cartão magnético colado no parabrisa dos veículos por leitura de câmeras instaladas exatamente para tanto. Há lugares na Europa onde, simplesmente, os autos não entram. Caso de Louvain-la-Neufe, na Bélgica. E de Vauban, subúrbio de Freiburg, no sudoeste alemão, perto da França e Suíça.

Bom, em todos esses lugares, os transportes públicos são de qualidade muito superior aos da RMR. Mas, a despeito disso, promove-se o uso da bicicleta. Esta é encontrada na Europa inteira. Amsterdã, Berna, Bremen, Cambridge, Copenhague, Gotemburgo – cidades de elevado padrão de vida – oferecem as melhores condições possíveis para ciclistas. Nas estradas de rodagem européias é comum a existência de vias paralelas para bicicletas. Indo de trem de alta velocidade, certa vez, de Paris a Genebra, eu via quase ao lado dos trilhos, em certos trechos, rodovias, ciclovias e canais por onde trafegavam balsas, iates a barcos leves. Se alguém vai do Recife a Gravatá, o que tem como opção? Somente uma BR-232 cada vez mais martirizada pelo tráfego que não pára de engrossar.

Está na hora de dar valor à bicicleta na RMR, transporte que muita gente de baixa renda já utiliza no seu dia-a-dia. Como seria conveniente que uma faixa exclusiva fosse reservada para ciclistas de Olinda a Candeias pela Agamenon Magalhães e vias que lhe correspondem no trajeto! Ou da Pracinha do Diário a Camaragibe. Ou do Marco Zero à Macaxeira, tendo como eixo a av. Norte. Mas não é pintar a faixa exclusiva e deixar os afoitos pedalando suas bicicletas sob a ameaça de motoristas enfurecidos. Necessita-se de isolar completamente o espaço cicloviário, proibindo-o também às ameaçadoras motos que infernizam o trânsito recifense. Quando vereador do Recife, há 20 anos, o saudoso comunista histórico Byron Sarinho conseguiu aprovar lei criando ciclovias no Recife. Se tivesserm sido implantadas então, como estariam melhor a cidade, seus habitantes e o trânsito infernal que nos martiriza!
Artigo publicado no DP, dom. 26 fev. de 2012

CARNAVAL, ATRASO E DESIGUALDADE 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Passado mais um Carnaval, é inevitável que se avalie o que aconteceu. Como folião de Olinda, posso dizer que a festa da cidade agradou. Houve progresso em relação a anos recentes, com mais liberdade de circulação para blocos e pessoas, por exemplo. Sabendo-se evitar certos pontos, tudo corre de forma agradável. É isso que faço. Não passo na rua Prudente de Morais, nos 4 Cantos, na Ribeira, na pç. de São Pedro, na rua do Bonfim. Esses espaços tornam-se aberrações (inventam um carnaval próprio, pobre de valores e de conteúdo). A escolha do horário também é importante. O bom carnaval termina no começo da noite. Depois, é gente bebendo, parada no meio da rua, homens urinando nas calçadas, sem nenguma graça. Nas manhãs e tardes, entretanto, tem-se a oportunidade de pegar Ceroula (que era melhor quando saía às 15h), Eu Acho É Pouco (o de adultos e a versão mirim, esta às 9h da segunda-feira), Mulher na Vara, Sala de Justiça, Bonecos Gigantes. Fora desse tempo, bom mesmo é o Homem da Meia-Noite, que este ano foi um arraso. No Recife, onde vou uma única vez nos dias de carnaval, o desfile do Galo da Madrugada, que começa às 9h, ainda oferece coisa boa. Mas só até a pç. Sérgio Loreto e longe dos trios barulhentos que o monopolizam cada vez mais (acompanho a Frevioca; mas a orquestra no chão de 2011 foi muito mais gostosa).
Passada a Sérgio Loreto, o desfile desemboca num corredor abominável. Embaixo, o povão, incluindo pessoas de outros níveis, mas que preferem o ruge-ruge momesco da folia popular. Trepados em camarotes de luxo, nas beiradas, os privilegiados de todas as estirpes, capitalistas, socialistas e comunistas, todos irmanados na inglória ação de não se sujar dos odores e suores do povaréu, preferindo a companhia de autoridades, parceiros, lobistas, carreiristas, amigos de ocasião que desfrutam do melhor que a classe poderosa sabe reservar para si. Eu fujo dessa situação constrangedora, à qual um cunhado meu, major do exército, que dela experimentou, se refere como “nojenta”. Ele, que é paranaense, acredita que, em 5 anos, o Carnaval do Recife virará festa baiana. Aliás, um casal de amigos paulistas que veio para Olinda e ficou, com os filhos, no exemplar Hotel 7 Colinas – guardião do bom carnaval –, foi uma noite ao Recife Antigo e não se agradou. Avaliou melhor o carnaval de Olinda, com mais vibração, dança na rua, alegria de quem brinca sem querer incomodar ninguém.
Numa conversa posterior com amigos e familiares que vinham a minha casa (tivemos, nos 4 dias, um total de 125 pessoas alomoçando comigo e Vera, algumas todos os dias), a impressão que se tem é de que o cenário que se vê reflete bem a condição de atraso cultural e educacional que caracteriza nossa sociedade, além dos privilégios de que desfruta a classe dominante. Impressiona, por exemplo, como carros que nada têm a ver com Olinda ocupam os estacionamentos. Na minha rua não ficam os veículos de minha casa, retirados para deixar espaço para os foliões. Aí vêm os forasteiros, alguns com placas de outros estados, com ou sem adesivo de morador. Na terça-feira, durante todo o dia um carrão negro (Hyundai Santa Fe), do Recife, sem adesivo, achou pouco; passou o dia inteiro estacionando sobre a calçada! Sem dúvida, nossa sociedade incivil, atrasada e prepotente assegura as aberrações do Carnaval.  
 
 
Artigo publicado no DP, dom. 13 fev. de 2012
O SOFRIMENTO DA POPULAÇÃO EM IPOJUCA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social


            Durante muito tempo, eu ia com assiduidade à região das praias de Ipojuca, a de Muro Alto, que descobri em 1972, em especial. Todo o espaço ali existente me encantava enormemente e às pessoas com quem fazia programas no lugar (programas que não eram só de fim de semana). Levei muitos estrangeiros para conhecer as belezas de Porto de Galinhas, Cupe, Gamboa, Suape, Calhetas. Foram tempos memoráveis. Nos contatos com a população, sobressaía uma pobreza altiva. Havia um único residente em Calhetas, por exemplo, pescador, que morava com a mãe. Parecia um homem muito feliz, vivendo com dignidade. O mesmo transparecia de famílias humildes que apareciam em Muro Alto (então uma praia totalmente desabitada e sem estradas de acesso), aos domingos, para o divertimento de colher ouriços do mar, assá-los e comê-los ali. Algumas vezes meus acompanhantes e eu provamos da iguaria. Na vila de Nossa Senhora do Ó encontrávamos as mangas mais deliciosas da Região Metropolitana do Recife. Perto de Suape, os cajus e as mangabas eram fantásticos. Bom, isso é só uma pincelada rápida do que eu poderia sair dizendo sobre a região que hoje simboliza o “progresso” de Pernambuco e na qual só estive duas vezes, muito a contragosto, nos últimos 17 anos.
            A última vez, a convite da comunidade franciscana de Ipojuca, foi para dar uma palestra em 3.11.11, sobre os impactos do complexo industrial-portuário de Suape. Aliás, desse mesmo tema tratou um manifesto criticando a obra, que escrevi, foi subscrito por alguns nomes de peso da ciência em Pernambuco e saiu publicado em abril de 1975 no Jornal da Cidade (semanário hoje extinto). O documento, que pode ser encontrado no Google, alertava para realidades trágicas como as que hoje se delineiam no município de Ipojuca e outros vizinhos. A situação observada, de fato, mostra que as populações aí vivendo constituem verdadeiros mártires dos interesses hegemônicos da economia. Pude ver isso no dia 3.11.11, a começar do trânsito infernal que se tem de enfrentar para chegar e sair de Ipojuca. Na palestra que proferi havia umas 200 pessoas, inclusive autoridades do município. Estas, aliás, foram as únicas que, sem negar os problemas existentes, procuraram fazer uma defesa dos inevitáveis “custos do progresso”. Depoimentos candentes foi o que o público em geral ofereceu. Algo semelhante está acontecendo no momento, em escala até maior, na Mongólia, para satisfazer a voracidade do absurdo crescimento chinês. É imensa a dimensão do impacto sobre os bens da natureza que lá e aqui se produz. Igualmente, impõe-se um sacrifício humano que destrói pessoas, famílias, comunidades, formas de vida – um bem-estar que jamais será reposto. Tornam-se explicáveis, dessa forma, os protestos constantes que se verificam nas proximidades das obras de Suape. E tornam-se louváveis atitudes, como a do Psol, que tem se empenhado em mobilizar os atingidos pela megalomania de Suape. Uma obra que jamais atrairia para morar em suas proximidades aqueles que a defendem com unhas e dentes. 
 
Artigo publicado no DP, dom. 29 jan. de 2012

OLINDA, CARNAVAL E ELEIÇÕES
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

            A expectativa da chegada do Carnaval é um momento de aperreio para quem mora no sítio histórico de Olinda e para quem ali paga seu IPTU. As autoridades municipais falam que as “prévias” atraem turistas, os quais supostamente deixariam um retorno financeiro para a cidade. Deve-se duvidar dessa asserção. Os “turistas” que invadem Olinda aos domingos nesta época do ano não estão nem um pouco interessados nos valores culturais e históricos que fazem da cidade um lugar especial. São pessoas de baixa demanda de cultura, que vão ali à procura de imaginária zona franca para vazão de instintos incivis, totalmente inadequados para ambientes com foros de civilização. Ou será que o turismo é atraído por arrastões, depredação do patrimônio, lixo jogado no espaço público, urina despejada acintosamente no meio da rua? Será isso que se vê na Times Square, de Nova York, no Palácio de Buckingham, em Londres, no Largo do Chiado, em Lisboa? Minha prima Lita, que mora perto da prefeitura de Olinda, contou-me na semana que passou que, em frente a sua casa, numa ladeira, aos domingos, urina desce continuamente pelo pé do meio fio como se fosse água de chuva. Que “turismo” é esse que tanto agrada aos gestores municipais? O fato é que, sem exceção, quem mora na cidade alta, deplora de forma veemente os festejos carnavalescos da atualidade que ali se verificam durante meses até o tríduo convencional. No meu caso, que tenho a sorte de residir no sítio histórico, mas em rua poupada da desordem (sofro, porém, da poluição que os amantes do lixo musical impõem), não tenho como sair de carro aos domingos. Ou tranco-me com Vera, minha mulher, em casa, ou vamos para o ambiente salubre que temos no brejo de altitude de Gravatá.
            Os infortúnios por que passam os olindenses levam a que se deva pensar com cuidado na eleição municipal deste ano. Não se pode mais ter o partido que comanda a cidade desde 2001 no poder. É preciso substituí-lo por uma proposta de mais respeito à cidadania dos eleitores dali. O Carnaval de Olinda tem que ser desenhado de acordo com a visão dos seus habitantes. Por que essa festa tem fama? Porque, no passado, ela era um momento de sonho, de alegria, de confraternização, de respeito à convivência em nível elevado. Em 1976, por exemplo, primeiro ano da administração do prefeito Germano Coelho, o Carnaval foi uma beleza. Mas havia a permissão para os carros circularem no meio dos blocos. Em 1979, por conta de uma mobilização dos moradores, que assumiram diretamente a responsabilidade pela providência, essa permissão foi revogada. Bloqueou-se a cidade ao trânsito de veículos. Foi difícil; havia quem burlasse a proibição; mas o balanço foi positivo. Nos anos seguintes, aperfeiçoou-se a norma, embora haja quem teime em desrespeitá-la. Algo tem que ser feito para restituir a paz e o encanto do Carnaval olindense. O prefeito atual já se mostrou incapaz disso. Está na hora de encontrar novo gestor e outro partido que restaurem a Olinda de nossos sonhos.     


Artigo publicado no DP, dom. 15 jan. de 2012
PROGRESSO PRECÁRIO, SE É QUE É PROGRESSO
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

            Tenho uma experiência de quase 38 anos como proprietário no brejo de altitude do município de Gravatá (PE). O local é ímpar. Sempre foi tranqüilo, a ponto de deixarmos aberta, até hoje, nossa casa de campo, quando nos distanciamos dela. Salvo duas exceções, nunca, ali, se deu desaparecimento de qualquer coisa. Na primeira investida (em 1985), um ladrão, à noite, roubou alguns cobertores e um par de sandálias havaianas. Na outra ocasião (2007), um mais sofisticado (que logo identificamos) carregou vinhos, uísques, taças e um abridor europeu de garrafas. Ultimamente, essa paz está sendo ameaçada. Pela violência que extrapola das cidades maiores de Pernambuco. Pessoas da região vêem com temor a invasão do crack, de que se afligem famílias cujos filhos não querem trabalhar e se entregam ao vício. Assaltos nas estradas tem se tornado comum. No sábado, 6 de janeiro, às 18h30, um rapaz do brejo (de nome Jaime, e conhecido como “Dílson”), foi vítima de assalto quando voltava da cidade, a 10 km de distância. Dois ladrões tentaram tomar-lhe a moto no local do Riacho do Mel. Ele não entregou o bem que havia adquirido há pouco. Foi morto, junto com seu carona. Tinha 18 anos. No mesmo dia, às 6h, quando tomava o café, um morador de mais idade do brejo, viúvo (seu Djalma), viu entrarem dois malfeitores em sua casa. Pediram dinheiro. Ele falou que não tinha. Aí, levou uma pisa e tiraram a quantia modesta que carregava no bolso. Mais tarde, ele reclamou a minha ex-empregada Zeza, sua vizinha, que nunca apanhara de ninguém, nem do pai nem da mãe.
            Algumas estatísticas mostram diminuição da violência no Recife e região metropolitana, mas no estado como um todo os índices não têm caído. Isso não é indicador de progresso. Ao longo dos anos de minha ligação com a zona rural de Gravatá, tenho presenciado algumas mudanças positivas. Quando cheguei lá, por exemplo, não havia energia elétrica. Só em 1980, passamos a ter luz na casa (mas era melhor sem ela...). As pessoas andavam a cavalo, jegue, burro ou a pé. Hoje pegam paus-de-arara, ônibus, motos. Alguns têm carro. Todos vêem TV, embora, com antenas parabólicas, estejam perdendo sua identidade nordestina. As escolas (públicas) dali, entretanto, são ruins. Ensinam muito pouco – o que, aliás, não difere da precariedade geral que se verifica na zona urbana do interior pernambucano. Constatação análoga se aplica à área da saúde. Nesse ponto, na verdade, os serviços no interior do estado merecem muitas críticas. Na quarta-feira, dia 4 de janeiro, um incêndio próximo a minha propriedade avançava para ela. O caseiro ligou preocupado. Acionei os bombeiros. Eles foram lá, mas estavam cansados. E acabou a água porque faltava eletricidade para bombeá-la. Dois trabalhadores meus, mais um rapaz vizinho e uns “pirralhas”, terminaram pondo fim ao fogo. Usaram abafadores dos bombeiros, que, sentados, observavam a luta dos locais e os elogiavam pela ajuda que ofereciam. Segundo eles, incomum. Quanto à energia elétrica, voltou no dia seguinte. Com árvores queimadas, canos de água derretidos, o chão transformado em tapete negro. Não, isso não é progresso.
 
 
Artigo publicado no DP, dom. 1 jan. de 2012

LIÇÕES DA CONJUNTURA EM PERNAMBUCO 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

               Nas últimas semanas, duas notícias deixaram apreensivas as pessoas que cultivam valores de decência e zelo com a coisa pública. A primeira delas falava  da retirada do apoio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) ao trabalho que a ASA (sigla da Articulação do Semi-Árido, uma ONG que trabalha no sertão) realiza. Com êxito, a ASA tem construído cisternas de placas para aliviar o problema da falta de água das populações rurais sertanejas. De repente, surge a informação de que o MDS quer introduzir cisternas de plástico no lugar das apreciadas cisternas de placas. Estas custam menos da metade do preço daquelas, empregam material e mão-de-obra locais em sua confecção e dispensam transporte para os sítios de instalação. Apenas duas das de plástico, devido a seu tamanho, cabem nos caminhões que as transportariam. Ora, o programa da ASA é de um milhão de cisternas. Já foram instaladas 350 mil. Logo, 650 mil teriam que ser carregadas nas estradas, com encarecimento exorbitante do projeto todo. E com dispensa de força de trabalho sertaneja, inclusive para os reparos das cisternas. Como salienta o pesquisador João Suassuna, a ASA é “uma instituição que vinha desenvolvendo um dos trabalhos mais viáveis na solução definitiva das questões do abastecimento das populações difusas residentes no polígono das secas”. Felizmente, o bom senso prevaleceu, depois que uma onda de protestos indignados cobrou apoio para a ASA. Em seguida a uma reunião dela com o MDS, o governo voltou atrás. Continuará com os apoios ao programa “Um milhão de cisternas”. No episódio foram vitoriosos a prudência, a sensatez e o poder de articulação dos movimentos sociais. Em benefício do bem público.             
               Tristemente, não é essa a sensação que causa iniciativa da Assembléia Legislativa de Pernambuco, de beneficiar deputados de legislaturas passadas com um misterioso “auxilio-moradia”. Pior são as justificativas para isso. Uma delas se refere ao fato de que se padre é remunerado, por que não deputados? Ora, o que o caso está mostrando é uma falta total de sintonia dos deputados estaduais de Pernambuco com a realidade da população e seus sentimentos. Qual é o trabalhador que, morando em Paulista e trabalhando em Suape, vai poder ser ressarcido de gasto de moradia para ganhar salário pouco acima do mínimo. A situação que se criou em Pernambuco causa enorme mal-estar. Vale referir o que aconteceu na Grã-Bretanha em 2009. Membros do Parlamento (deputados federais) de lá, moradores de cidades distantes, recebem auxílio para alugar apartamento em Londres. Alguns usaram essa verba para fazer reformas em suas casas permanentes. Quando o caso foi descoberto, estourou um escândalo que causou reações raivosas dos eleitores. Como resultado, muitos deputados renunciaram, alguns foram presos e todos tiveram que devolver os recursos mal empregados. Uma lição que deveria ser aprendida e aplicada aqui. Ao invés disso, os deputados mostram desdém quanto à opinião pública e se divertem alegremente nas suas esbanjadoras confraternizações de fim de ano. Mau.

________________________________________________
   
Artigo publicado no DP, dom. 18 dez. de 2011

 ATRASO PERSISTENTE DO BRASIL 

Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Fala-se constantemente sobre a ocorrência de um processo de ascensão social no Brasil na última década. Não consigo me convencer de que isso seja verdade. Pelo menos, na minha compreensão, se existe, não se trata de um fenômeno sustentável. Na semana passada, conversando com um frentista do posto de gasolina onde abasteço meu carro, indaguei por que há tanta mudança no quadro de empregados dali. Ele me disse que é uma dificuldade estrutural – chamemo-la assim (interpretação minha). Não se consegue contratar gente “responsável”. Ninguém quer trabalhar. As pessoas de perfil de renda mais baixo preferem, segundo o frentista, o benefício de uma bolsa qualquer dessas que o governo distribui em abundância. Tais pessoas, jovens, não se guiam por princípios de civilidade. Nas proximidades fica um bairro periférico de Olinda, a Ilha do Maruim, onde se poderia recrutar mão-de-obra. Mas o nível de educação dos candidatos é muito fraco. O frentista me contou que ouviu de mais de uma professora pública do lugar como a vida delas não é fácil. Por exemplo, recebem ameaças de alunos que pedem para não colocarem falta nos dias em que não vão à aula. É para garantir a migalha da esmola do governo. Uma professora da comunidade do convento franciscano de Olinda, por sua vez, freqüentadora da missa a que assisto, relata histórias que dão conta da educação lamentável que se oferece à juventude.
É óbvio que uma sociedade que não ataca com disposição a questão de educar os moços está fadada a destino miserável. Não importa que as pessoas consumam, ainda mais quando se trata de um consumo tão oco como este do período natalino. Crédito? Sua expansão é só o prelúdio da formação de bolhas financeiras que, mais cedo ou mais tarde, explodirão, como ocorreu nos EUA em 2008, acontece neste momento na Europa, pode manifestar-se aqui. De forma paralela, o quadro da saúde brasileira é dos mais tristes. O tratamento do ex-presidente Lula, beneficiado com todos os privilégios a que tem acesso a classe rica – o 1% do movimento “Occupy” – evidencia uma realidade cruel do país. Essa realidade se traduz no fato, por exemplo, de que, no Brasil, o número de pessoas que não têm acesso a saneamento básico (situação que ilustra um quadro de extrema pobreza), em 2010, era muito maior do que toda a população do país em 1940: 106 milhões contra 41 milhões de habitantes, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico. Não dispor de saneamento no domicílio indica melhor a miséria do que dados de renda por pessoa. Ou se consegue conceber um ser humano vivendo bem e que não possua saneamento básico em casa? Eu seria um desgraçado se me enquadrasse nisso.
Que adianta ter celular, forno de microondas, um carro comprado a prestação pesada, se os filhos não estudam de fato? Mesmo a saúde dos afluentes não garante bem-estar. A irmã de uma nora minha, residente na Holanda, onde tem cobertura da saúde pública, possui plano aqui também. Neste mês de dezembro precisou ser operada no Recife; foi um drama, semanas de tempo perdido na seguradora, mal-estar indizível. Isso, no caso de quem pode pagar. E quem não pode? Vivemos um atraso persistente e insuportável.    

 Artigo publicado no DP, dom. 20 nov. de 2011

POR QUE NÃO FUI À FLIPORTO EM OLINDA 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Acho estranho que a Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) decida por si própria que vai ficar em Olinda em 2012. Ora, para mim, e muitos outros habitantes do Sítio Histórico, esse evento se transformou num transtorno. Quer ir para Olinda, vá para o Centro de Convenções. Ou para Peixinhos. Não para a praça da Preguiça, o Sítio de Seu Reis, etc. Essa festa se julga proprietária da cidade? Ela paga o IPTU anual (pago o meu de uma vez sempre no mês de fevereiro)? Fujo de um encontro assim, que traz um guru (literato? Prêmio Nobel?), para falar de leis espirituais em meia hora de palestra por 150 mil reais. Ora, vá ser materialista assim na quinta dos infernos. Se é para orientar uma meditação de 7 minutos, por que não chamar a mestra Célida Samico, que mora junto do Mosteiro de São Bento, sem ônus maiores? Por que não dar os 150 mil reais do guru ao Seminário de Olinda e realizar lá atividades realmente literárias? O seminário está desabando. Olinda perderá o charme que faz com que se deseje tanto usá-la como cenário para encontros e badalações (Casa Cor é a bola da vez), caso monumentos como ele virem ruína. Essa foi uma das razões que me fizeram fugir da minha cidade para meu refúgio de Gravatá na sexta, dia 11.11.11, e voltar no dia 15. Disse-o a minha amiga querida Fátima Quintas, explicando por que não ia ao lançamento de seu belo livro sobre o Oriente em Gilberto Freyre. Aliás, convém lembrar as inúmeras personalidades ilustres que o grande sociólogo, meu amigo também, trouxe a Pernambuco sem pagar nada (ou pagando honorários simbólicos). Uma delas, por exemplo, o grande teatrólogo Eugene Ionescu, membro da Academia Francesa, que falou na Fundação Nabuco em agosto de 1982, numa rica reunião do Seminário de Tropicologia.
Eu mesmo trouxe, com Roberto Cavalcanti, dois vencedores (mais tarde) do Prêmio Nobel de Economia, para palestras no Recife, sem gastar um tostão: James Tobin, meu professor em Yale, que foi chefe da assessoria econômica do Pres. John Kennedy, em 1968, e Gunnar Myrdal, cuja mulher (Alva) também ganhou o Nobel (da Paz), em 1969. Sem falar na visita do extraordinário economista romeno-americano Nicholas Georgescu-Roegen, em julho de 1973. Nomes assim, da ciência, são de pessoas que enriquecem o conhecimento, sem cobrar nada quando falam. Caso, vale mencionar, de Albert Einstein, outro Nobel, o cientista mais importante do século XX, que esteve no Brasil em maio de 1925, a custo zero. A idéia da Fliporto é boa, claro. Quem a faz e freqüenta contribui para a cultura. Mas que seja, de fato, um encontro da melhor literatura e que não perturbe a vida já tão sacrificada dos olindenses. Vá para o Parque da Jaqueira em 2012. Não para o Sítio Histórico de Olinda.

Artigo publicado no DP, dom. 6 nov. de 2011

 DOMINGOS SEM LEI EM OLINDA 

Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Muitas pessoas em Olinda pedem-me para transmitir o furor que sentem diante do aparente desgoverno da cidade. Outro dia, quando eu corria na Orla, fui parado por um casal que rogou que eu expressasse aqui a angústia dos moradores da área onde vive, perto da caótica praça de São Pedro. Nem anotei seus nomes. Mas o que ali me foi pedido está bem expresso em texto de meu médico, Carlos Marinho, morador da rua do Bonfim. Sua casa, aliás, reformada de acordo com as regras do Iphan, foi incluída em álbum da Caixa Econômica Federal como exemplo de boa prática de preservação do patrimônio olindense. Carlos Marinho, cidadão participante, folião, amante da cidade, intitulou seu texto de “Domingo sem lei ou Olinda, patrimônio dos arrastões”. Nele começou escrevendo: “Tombada pelo Iphan e Unesco, a cidade alta de Olinda, conhecida também como Sítio Histórico, vem a cada final de semana transformando-se em verdadeiro inferno para seus moradores, comerciantes e turistas. Com o cair da tarde, principalmente aos domingos, a cidade histórica é invadida por drogados, gangues de marginais, batuqueiros da desordem e da paz pública, carros, muitos carros, obstruindo ruas e ladeiras, transformando a cidade alta em verdadeiro caos urbano, e deixando os moradores reféns em suas casas, já que não podem sequer exercer o direito de ir e vir, tamanha a confusão de gente, de automóveis e arrastões. Pensar que todo esse descaso ocorre sob as vistas do poder público, representado pela Prefeitura Municipal de Olinda, Segurança Pública e Governadoria do Estado, é de fazer chorar”.
Acrescenta Carlos Marinho: “Não bastasse o som alto e de mau gosto, na maioria das vezes, produzido pelos batuqueiros de plantão dos finais de semana, o ambiente dantesco se completa por uma legião de barracas, isopores infectos, carros que se transformam em bares ambulantes em cada esquina, quebra-quebra de garrafas e todo tipo de lixo da fanfarra, jogado às ruas. Gente urinando nas calçadas e um comércio, de todo tipo de drogas, complementam o trágico cenário dos domingos sem lei. O incrível e inadmissível é que o poder público não se deu conta, ou não consegue demonstrar nenhuma estratégia convincente e de sua exclusiva responsabilidade para coibir tais exageros e desmandos. Sabe ele, e não deve esquecer que, eleitos ou não, são os impostos pagos pelo povo que mantêm os governantes e que deveriam ser usados para proteger a ordem, o bem-estar, a segurança, e o respeito à maioria da população”. Conclui o médico revoltado: “Sr. Prefeito, Sr Presidente da Câmara de Vereadores, Deputados Estaduais, Federais, Senadores e Sr. Governador do Estado de Pernambuco, BASTA!”.

Artigo publicado no DP, dom. 23 de out. de 2011

BOM FILME-VERDADE 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.

Para quem gosta de entretenimento consistente no Recife, o bem-sucedido Cinema da Fundação representa um brinde. Grandes filmes são lá exibidos. As instalações e equipamentos da sala satisfazem gostos apurados. E há ainda um café anexo, com ambientação cult e serviço atencioso, oferecendo comida e bebida de qualidade. Lugar prazeroso para conversas. É possível encontrar lá pessoas que se destacam pela inteligência – caso do meu amigo Jomar Muniz de Brito, uma referência do pensamento rebelde, freqüentador assíduo da sala. Dirigem a atividade dois bons cineastas, Kleber Mendonça, nacionalmente conhecido, e Luiz Joaquim. Seu trabalho de montagem da programação é impecável. Agrada em cheio.
Não sou crítico de cinema. Apenas me encanto ou decepciono com filmes que vejo (fujo de fita americana cheia de efeitos especiais, por exemplo). Recentemente, assisti no Cinema da Fundação a uma película nova e, para mim, sedutora – Avenida Brasília Formosa, dirigida por jovem cineasta pernambucano, Gabriel Mascaro. Sem ser entendido em sétima arte, classifico o filme como cinema-verdade. Ele trata do mundo real no bairro recifense de Brasília Teimosa a partir de quatro personagens principais, que representam a si próprios. Fábio é evangélico, garçom e faz vídeos dali. Registra importantes eventos. Ele é contratado por uma jovem manicure, Débora, moça cheia de vida, alegre, simpática, bonita, para fazer um videobook dela e ajudá-la em sua obsessão: tentar uma vaga no (famigerado) Big Brother. É o caminho para uma ascensão social por ela vislumbrado. Conversando com as amigas, idéias picantes também surgem quanto a esse reality show. Isso, aliás, enriquece o filme, ao mostrar cenas da vida de pessoas comuns. Fábio também filma o aniversário de 5 anos de Cauan, que é fã do Homem Aranha e um terceiro personagem da montagem. Já o pescador Pirambu, o quarto personagem, era de Brasília Teimosa, mas vive agora (pior do que antes) num conjunto residencial no Cordeiro, construído pelo governo para abrigar a população que morava nas antigas palafitas do bairro, de onde surge a Avenida Brasília Formosa.
Mostrando a vida dessas pessoas, seus relacionamentos, suas percepções, seus projetos, Gabriel Mascaro presta enorme serviço. Cumpre-o com encanto e arte. Até a mediocridade da vida em ambientes tão limitados, inclusive fisicamente, é superada pela arte de viver das pessoas filmadas. Aliás, a obra permite inclusive comparar a mediocridade arquitetônica da classe alta (as torres do Cais de Santa Rita se destacam como monumentos de feiúra agressiva nos cenários filmados) com as soluções mais humanas da população de baixa renda. Pena que pouquíssima gente vá a um espetáculo de cinema como esse, dispondo, porém, de pachorra e tempo ilimitado (quase 200 horas) para novelas idiotas que a televisão transmite, a exemplo de uma que acabou há pouco e mostrava até dinossauros se bulindo. Arte verdadeira não vai bem numa sociedade inculta. Assim, pelo menos, é que Paulo Prado escrevia de nosso país em Retrato do Brasil.

Artigo publicado no DP, dom. 9 de out. de 2011

INFERNO EM OLINDA 

Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Normalmente, aos domingos, logo depois do ano-novo, o sítio histórico de Olinda, vira um inferno. Por motivos inexplicáveis para os moradores da cidade, hordas errantes de pessoas ocupam o lugar para beber, urinar, tomar droga, fazer barulho, danificar o patrimônio, desrespeitar as mais elementares normas de pudor. Bom, sabe-se que isso reflete o baixo nível de educação e cultura de nossa sociedade (embora se suponha que as pessoas devam ser mais comedidas nos bairros onde moram). Os habitantes da cidade tombada pela Unesco ficam reféns de uma situação que os impede de se locomover, de desfrutar do descanso merecido do fim de semana, de não ter aborrecimentos. Agora, o quadro infernal está se formando desde o mês de setembro. São inúmeros os casos de moradores que não conseguem chegar a sua casa voltando de fora da cidade. Logradouros como a r. do Bonfim, a praça de S. Pedro, a r. Prudente de Morais, a r. do Amparo, a Ribeira ficam intransitáveis. Nos bares, música alta é colocada para que quem estiver fora do estabelecimento ouça também. Moro relativamente distante dessas zonas infernais de barulho e gente perdida, mas, muitas vezes, em minha casa, não consigo desfrutar a música de minha preferência. Sou forçado, como numa sala de tortura, a escutar as escolhas lamentáveis, distorcidas, de quem confunde barulho com melodia. Ora, qualquer peça musical – canto gregoriano, Mozart, Bach, Stravinski – tem que ser ouvida em tom que não incomode. Num salão de concerto não existe alto falante para a música executada por uma orquestra ou para as vozes de um coral (que cante, por exemplo, o coro dos escravos hebreus da ópera Nabucco, de Verdi).
O pior é que a população olindense sofre durante a semana toda, diante de ações do governo municipal que ofendem os brios do cidadão. Enquanto, por um lado, a Prefeitura faz obras necessárias, como a revitalização do Alto da Sé, por outro, assume atitudes que não merecem elogios. É o caso, por exemplo, de cortes de árvores que têm sido feitos em muitos locais, como a Sé, os Milagres, a praça do Carmo e a do Jacaré. Ao mesmo tempo, a população do Alto da Sé, que sempre viveu ali, é tratada como um estorvo. E ainda paira a ameaça, que já vem de muito tempo, de se colocar um teleférico ligando esse local privilegiado ao Bonsucesso ou área adjacente. Na frente do convento franciscano, uma relíquia colonial da cidade-patrimônio, desfez-se o simpático adro, substituindo-o por uma passagem sufocante, com grade de ferro e acesso totalmente vedado a pessoas de idade ou que tenham dificuldade de locomoção. Desrespeito à estética, à cultura, à cidadania. Esse desrespeito se manifesta em obras mal feitas, como o calçamento da praça do Carmo. As pedras não foram bem assentadas. Em dois anos de inaugurado, o calçamento está a receber reparos constantes. Fica a pergunta: quem paga a conta? É uma situação que se soma a outras para mostrar como o inferno se plantou em Olinda.

 Artigo publicado no DP, domingo, 25 de setembro de 2011

CONSUMIDORES DE SUCATA SOFISTICADA 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Notícia do maior relevo dada na semana que passou (sem eco por aqui) foi a de que o consórcio industrial alemão Siemens, com 400 mil empregados em todo o mundo, abandonou por completo o setor de energia nuclear – de que foi um dos maiores construtores, projetistas e vendedores no planeta. O anúncio foi dado pelo diretor geral da organização, Peter Löscher. Há dois anos, o próprio Löscher falava de planos para a construção de 400 novos reatores em todo o mundo até 2030 (são 572 as usinas nucleares hoje existentes). A Siemens ergue atualmente uma central atômica em Angra dos Reis, com tecnologia dos anos setenta, a qual, na Alemanha, é considerada insegura. Tão insegura, que a chanceler Angela Merkel, doutora em física, classifica como “incontrolável”. Algo com essa característica, que os alemães rejeitam, pode ser adotado tranqüilamente pelos brasileiros? Não faz sentido. Vale acrescentar que as conversações nucleares que o Japão entabolava com a Índia, o Brasil, os Emirados Árabes e a Turquia, antes do acidente de Fukushima, foram suspensas. As premissas dessa solução energética perderam consistência. Países sérios não querem se envolver com os altos riscos da energia nuclear.
O primeiro reator da Siemens, curiosamente, foi vendido à Argentina há quase 50 anos, para a central Atucha I. Antes, pois, de haver um equivalente na Alemanha. Será que os germânicos temiam fazer uma primeira experiência em seu próprio território e só a realizaram depois que Atucha I funcionou sem problemas? Essa é uma especulação do ambientalista e escritor argentino Antonio Elio Brailovski que faz sentido. Neste momento, a Siemens constrói a central Atucha II no país vizinho, uma coisa que decidiu que não fará em mais nenhum lugar. No Brasil, ao mesmo tempo, prevalece a insistência quando à solução nuclear, haja vista a ameaça nada discreta de uma usina em Itacuruba, sertão de Pernambuco. Usa-se como justificativa para isso a afirmação de que se trata de “tecnologia de ponta”. Mas o fato é que somos inveterados compradores de “sucata sofisticada”, como diz Brailovski. E nos orgulhamos “de investir no que os europeus descartam”.
Esse quadro de idéias serve para situar a decisão do governo de Pernambuco de trazer para Suape uma planta termelétrica de R$ 2 bilhões, com capacidade de gerar 1.452 MW, o que lhe permite ostentar galardão discutível: o de “maior do mundo”. Ora, no instante em que a Alemanha decide desfazer-se da energia nuclear, dando ênfase às fontes renováveis, com o intento de fazer que elas respondam por 35% da eletricidade do país em 2020 (agora são responsáveis por 17%), fica-se com a sensação de que somos realmente consumidores de sucata sofisticada. A lógica para justificar a decisão de Pernambuco é frágil e só se sustenta no contexto de um discurso autoritário.

 Artigo publicado no DP, domingo, 11 de setembro de 2011



MUDANÇAS NA FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Quando o nome de Fernando J. Freire foi escolhido para novo presidente da Fundação Joaquim Nabuco (FJN), ninguém na instituição sabia qualquer coisa a seu respeito. Logo vieram informações que indicavam de quem se tratava: um acadêmico, doutor, professor, ex-pró-reitor de pesquisa e pós-graduação da Rural. Isso sinalizava para coisas positivas, apesar do fato de sua formação ser em agronomia, com doutorado em solos. Nada a ver, portanto, com o trabalho de pesquisas sociais das origens e sentido da FJN. Como pessoa, Fernando mostrou-se de imediato um gestor atento para o lado humano da instituição, sem perder de vista os compromissos assumidos perante o ministro da Educação. É aqui, na verdade, que se manifesta uma fraqueza do processo de escolha do presidente da FJN. De cima para baixo, de Brasília para a periferia, consultando antes o que o ministro Fernando Haddad pensa da FJN do que o que esta, com 62 anos de história, construiu como patrimônio de produção intelectual. Um dado merece relevo. O ministro, quando assessor de Cristovam Buarque, então titular do MEC, em encontro com Jorge Siqueira, que me substituiu em 2003 como superintendente do Instituto de Pesquisas Sociais da FJN, e uma pesquisadora nossa, demonstrou não saber o que era a Fundação. Pior: que ela fosse do MEC.
Cristovam Buarque, por sua vez, quando assumiu o Ministério em 2003, chamou para dirigir a FJN um político quase aposentado, Fernando Lyra. Disse-me Cristovam, que foi meu aluno, falando no dia da indicação de Lyra, que o chamara por três motivos. Era um ex-ministro (da Justiça); tinha visibilidade; a Fundação precisava disso. Depois, Lyra era “um homem do diálogo”, algo necessário para a FJN naquele momento (segundo ele). Terceiro motivo: “Lyra é meu amigo”. Cristovam perguntou-me o que eu achava de sua decisão. Respondi: “Surpreendente”. Pouco depois, o escolhido, que me procurou, via Tânia Bacelar, para ter uma conversa, me contou que a Fundação não era sua “praia”. Que não queria presidi-la. Cristovam, a mim, assegurou que Lyra ficaria 6 meses (ficou 8 anos). Seria uma transição para se adotar novo modelo de escolha do presidente. Achei sensata a idéia, pois sempre defendi que a seleção fosse através de um comitê de busca. Que é justamente o que Fernando J. Freire propõe agora, em linha com sua boa visão.
Como não podia deixar de ser, a gestão de Lyra não teve rumo. A pesquisa ficou largada. Recursos vieram em abundância, sim, mas isso foi fruto da prodigalidade perigosa do governo federal (que hoje percebe que precisa ser austero). Duas revistas científicas idôneas e respeitadas da FJN, Ciência & Trópico e Cadernos de Estudos Sociais, que eram publicadas em dia, sumiram. Ao mesmo tempo, a feia, mal-acabada, cheia de erros de revisão e pretensiosa revista Massangana, invenção dos novos gestores, teve um número publicado. Como não obteve público, foi extinta. Excessiva importância se deu à área cultural, como se estivéssemos no Ministério da Cultura. Perdeu a pesquisa, motivo da existência da FJN, e atividade que lhe deu o prestígio de que desfruta. Fernando J. Freire decidiu mudar isso. Pena que Brasília fique dando ordens.

 Artigo publicado no DP, domingo, 28 de agosto de 2011

A ILUSÃO DO CRESCIMENTO ECONÔMICO 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

O articulado jornalista científico britânico George Monbiot, em artigo dia 23 deste mês, no The Guardian, de Londres, indaga em que medida o crescimento econômico dos últimos 60 anos é real; em que medida, ilusão. Será sustentável o nível de riqueza e conforto alcançado, quer saber. Assinala ele: “Vá à Irlanda e você verá que mesmo conjuntos habitacionais são miragens: maravilhas da nova economia, erguidas em cima de dívidas, permanecem vazias e sem valor”. Pior é que, para manter a ilusão, “infligimos desde 1950 mais danos aos sistemas vivos do planeta do que nos 100.000 anos anteriores”. A destruição durará séculos; os possíveis benefícios do processo chegarão em muitos casos a meses. É essa a insanidade do crescimento, denunciada pelos ecologistas – e por pesquisadores idôneos de muitas partes do mundo –, que leva alguns a se referir aos defensores do ambientalismo como “ecochatos”. Segundo Monbiot, na Irlanda, “Entre outras iniqüidades, o governo forçou a construção de uma via expressa através do Vale do Gabhra, parte de um sítio [arqueológico] – o complexo da Colina de Tara – comparável em sua importância a Stonehenge”. Tal ação, no juízo do jornalista, foi tanto um ato de vandalismo deliberado quanto uma indicação de propósito: consideração nenhuma impediria o milagre econômico em construção. Porém, a estrada “ainda não tinha entrado em operação quando se deu o colapso do milagre”.
Algo semelhante acontece no Brasil hoje. Tudo é feito para acomodar o interesse econômico antes de qualquer outro intento (caso da hidrelétrica de Belo Monte). A justificativa é a de que se precisa produzir mais e mais, razão por que não há como evitar que se cause ruína ao meio ambiente. Esse raciocínio leva a que, em Pernambuco, por exemplo, o patrimônio da Mata Atlântica, legado pelos indígenas que aqui habitavam antes de 1500, tenha se reduzido em cerca de 96-97 por cento! Se isso levasse a uma atitude de respeito pelo restinho de floresta que ficou (em fragmentos), já seria uma esperança. No entanto, a mata continua sendo destruída, inclusive com o patrocínio do governo de Pernambuco (agora, parece, mais contido em sua ânsia por influência de “ecochatos” que o governador Eduardo Campos levou em boa hora para sua companhia).
Simultaneamente, o que se vê no mundo é o crescimento do desemprego e da desigualdade, o declínio da mobilidade social, a perda pelos pobres de coisas simples que os alegravam (como a paisagem bonita de Suape). Dados recentes mostram que, nas últimas décadas, no Reino Unido, a renda dos mais ricos aumentou 273 vezes mais do que a dos pobres. Tudo isso, simultaneamente, com aquecimento global, aumento do lixo jogado fora pela sociedade de consumo, envenenamento de populações marginais que lidam com resíduos eletrônicos altamente tóxicos, desflorestamento, perda de biodiversidade, etc. É um rosário de mazelas que os ecologistas sempre denunciaram, na companhia agora de movimentos ecossocialistas e, mesmo, de ambientalismo conservador. Está em jogo nossa sobrevivência, que uma insustentável sociedade de consumo só faz pôr em risco.
Artigo publicado no DP, domingo, 14 de agosto de 2011


LOUVANDO MAURO MOTA
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

Conheci Mauro Mota em abril de 1966. Ele precisava de um economista para escrever o relatório de estudo que o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS) empreendia para a Sudene. Os dados tinham sido levantados. Faltava quem os analisasse. Eram a respeito do mercado de pescado do Grande Recife. Mauro falou com Roberto Cavalcanti de Albuquerque, que me indicou. Começou aí uma aproximação que durou até sua morte em 1984. A relação teve como base sua confiança em mim, nos meus 25 anos, a ponto de ele me ceder seu gabinete de diretor – único local refrigerado do IJNPS à época – para que lá, nos fins de semana e feriados, eu produzisse meu trabalho (no restante do tempo, eu dava aulas nas universidades do Recife, depois UFPE, e Católica de Pernambuco. Em 1966, havia essa loucura, permitida por lei). Quando terminei a tarefa, ele me propôs outra incumbência: analisar os dados de um levantamento (para o DNOCS) sobre a bacia do açude Poço da Cruz. Aceitei-a e chamei meu amigo e colega de Sudene Dirceu Pessoa (1937-1987) para me ajudar. Terminei o trabalho no início de 1967.

Logo em seguida, Mauro me convidou para eu dirigir o Departamento de Economia do IJNPS. Eu tinha me demitido da Sudene para me dedicar à universidade; fazer pesquisas vinha bem a calhar. Assim, em outubro de 1967 passei a figurar nos quadros da instituição que Mauro dirigia. Mais uma vez, a confiança dele em mim marcou nossa ligação. Fiquei até outubro de 1970 no cargo, quando decidi me dedicar exclusivamente à UFPE. Era loucura fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Renunciei aos meus múltiplos empregos. Mas saí triste do IJNPS. Minha amizade pelo diretor fazia-me lamentar ter que me afastar de sua companhia. Tanto que não falei pessoalmente com ele. Deixei uma carta de demissão no meu último dia de diretor – e sumi. Só semanas depois é que nos falamos sobre minha forma heterodoxa de renunciar ao cargo (a que retornei em 1973). Ele compreendeu meu gesto, ou assim fez que eu percebesse, na grande generosidade e capacidade de afeto que nunca deixou de transmitir. Víamo-nos sempre. Eu lia seus artigos no Diario. Gostava de sua forma de escrever. Aliás, falando, Mauro também cativava. Não lhe faltavam histórias para contar, o que fazia com fino senso de humor.

Lembrar de Mauro às vésperas de seu centenário permite que se recorde sua figura admirável e as lições de valores humanos que ele nos legou. Mauro conseguiu dar ao IJNPS, que engatinhava em 1956, o prestígio de uma instituição idônea e respeitada ao findar seu mandato em 1971. Sua gestão, cercada em boa parte pela dureza do regime militar, sempre se pautou por princípios de justiça e competência. Pude, por exemplo, incorporar dois sociólogos comunistas a minha equipe sem que ele fizesse qualquer objeção. Isso não era trivial na década de 1960. Mauro, de fato, foi uma pessoa de enorme grandeza. Sem contar sua bela obra de pesquisador (que o diga O Cajueiro Nordestino), de poeta, e do jornalista que marcou este seu jornal querido.

 Artigo publicado no DP, domingo, 31 de julho de 2011

 

COMIDA SAUDÁVEL VERSUS COMIDA-LIXO 
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social; clovis.cavalcanti@yahoo.com.br

            Em 1971, incomodado com meus hábitos alimentares que se deterioravam, resolvi refazê-los na direção de uma comida saudável. Por razões de saúde, na época, meu pai tentava seguir a macrobiótica. Procurei informar-me a respeito e vi que ela tinha idéias bastante razoáveis, em sintonia com meus propósitos. Empreendi então uma revolução na minha vida, abandonando o modelo apressado – mecânico, desprovido de arte –, que praticava. Meu pai não prosseguiu com sua experiência; mas ele foi sempre mais cuidadoso com a comida, inclusive demorando-se à mesa (um almoço seu levava uma hora, ou mais), mastigando inúmeras vezes cada porção. Ele tentava repassar isso para seus filhos. Porém, terminávamos caindo na tendência dominante (embora, mais tarde, praticamente todos aderimos ao modelo paterno). Eu havia estudado nos EUA e me habituara a minimizar o tempo dedicado à refeição. Em 1971, cansara disso. Foi aí que, através da macrobiótica, aprendi as virtudes da mastigação (facilita o processo digestivo). Em nossa casa, comíamos muito açúcar (minha mãe fazia doces fantásticos). Os sucos, café, chá eram adoçados a ponto de virar mel. Suprimi essa dependência. Também substituí o sal refinado (cloreto de sódio) pelo sal marinho (um composto diversificado). E aderi aos cereais integrais; à galinha e ovos de capoeira; ao peixe regular. A carne saiu. Anos depois, entrou bode no cardápio (por recomendação de um grande homeopata autodidata, Ambrosino Cruz). O álcool, eliminado, reapareceu sob controle (a própria cachaça não faz mal).
            Penso nisso porque me assusta a maneira imprópria com que as pessoas se alimentam em nosso meio. A Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor), do Rio de Janeiro, costuma apresentar em sua revista mensal, Proteste, situações que retratam bem a realidade de que falo. No número de maio deste ano, por exemplo, ela diz: “Visitamos os seis maiores shoppings de São Paulo para avaliar as condições sanitárias dos alimentos vendidos nos restaurantes self-service. O resultado foi alarmante”. A organização faz denúncias, encaminha processos às autoridades responsáveis e vence sempre as batalhas. Mas o serviço que presta aos consumidores é que vale. Porém, as pessoas continuam comendo mal. E porcamente. Isso tem preocupado muito, não aqui, mas nos EUA, o presidente Barack Obama. Sua mulher, Michelle, se empenha vivamente em mudar os hábitos de comida do país. É de lá que vem a horrorosa fast food (comida rápida), que se alastra pelo mundo – contra a qual se opõe o movimento Slow Food (comida lenta), da Itália. A primeira dama americana combate o excesso de peso e a obesidade. Briga contra os refrigerantes, o excesso de sal, gordura e açúcar nas comidas, o desprezo às frutas e verduras. Luta pelo consumo de cereais integrais, de comida saudável, enfim. O que ganha com isso? Uma população que não deseja mudar hábitos, controlada por grandes empresas que vêem a luta dos Obama como ameaça a seus lucros sujos. Em que alçapão nós caímos!   

 

4 comentários:

Sara disse...

Espero que em algum momento para contar uma história para a minha família tão bonito como você pode ver aqui, eu espero que em algum momento talvez tenha uma chance se eu posso ir morar em outro país porque Agora todo mundo quer alugar um apartamento

Unknown disse...

Professor,

Seu blog é lindo, os artigos publicados trazem uma visão muito peculiar e ao mesmo tempo realista das questões ambientais, junto à poesia. Trajetória acadêmica e de dedicação ao ensino maravilhosa.
Gratidão pela sua presença em nosso mundo.
Abraços
Rosely Alvim Sanches

Clóvis Cavalcanti disse...

Rosely, obrigado por sua generosidade. Abraços.

Adamares Marques disse...

Prof. Clóvis. Boa noite!

Me chamo Adamares Marques, sou Dra. em ciências biológicas e estou precisando de um contato seu para conversar sobre um projeto. Segue meu email: amsconsultar@gmail.com