segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Artigo Publicado

Diario de Pernambuco, Sabado de Zé Pereira, Dia do Galo, 20 fev. 2009

CARNAVAL, ALEGRIA E VERGONHA

Clóvis Cavalcanti
Economista e pesquisador social

Como tenho dito neste espaço, gosto imensamente do carnaval. Trata-se, para mim, de momento alegre que desperta sentimentos lúdicos sufocados ou adormecidos. É bom ver a festa ir chegando: nos acertos de marcha de muitos blocos; nas compras na região do Mercado de São José; na abertura oficial dos festejos, este ano, em Olinda com uma orquestra de frevo de quase 600 músicos (uma beleza); no baile do Bloco da Saudade; na saída de troças (como Turma da Jaqueira, Tá Maluco, Pisando na Jaca); na deliciosa apresentação do Escuta Levino – tudo no período que antecede a festa de Momo. Aí chega o sempre esperado Galo da Madrugada, a que não falto. Este ano, contudo, para seu desfile, inventaram uma babaquice: trazer bandas (Calypso e Saia Rodada) que, como disse o internauta Ruy Sarinho, são “duas porcarias do brega mais cafona”. Diante desse tipo de atitude, sinto vergonha de ser pernambucano. Nós, que temos um hino – tocado no carnaval – que fala de heróis, de um “povo coberto de glórias”, de “bravos guerreiros”, cedemos de forma vil e covarde a uma invasão de ritmos da mais pobre inspiração. Francamente, como escreveu Sarinho, uma coisa dessas é como “jogar na lata do lixo tudo o que a agremiação conquistou durante a sua história, até aqui”. Por que não honrar o legado de Enéas Freire?
Outro motivo de vergonha para mim, no Carnaval, é testemunhar, a cada ano, o exagero da exibição de desigualdade que o tríduo proporciona. Veja-se o caso, outra vez, do Galo. Tudo bem que, quem pode, exponha sua riqueza como achar melhor – embora existam super-ricos como Warren Buffett ou Antônio Ermírio de Moraes que preferem um perfil discreto. Discretíssimo até, quanto a Buffett, um dos dez homens mais ricos do mundo. O certo é que é inadmissível que camarotes do Galo, de caráter oficial, tenham que ser tão ostensivamente brindados por benesses. Para quê isso? É triste ver que socialistas e petistas contribuem para acentuar as disparidades de níveis de vida da população. Por que o governador não convida gente do povo apenas – lavadeiras, mecânicos, policiais, enfermeiras, pedreiros, telefonistas, professores – para seu camarote de tantas mordomias, justificando a denominação de seu PSB? Por que também o prefeito do Recife, de um partido que se diz de trabalhadores, permite que ele assuma os ares de uma agremiação de oligarcas? Enquanto isso, muita gente que gostaria de desfrutar de um mínimo de alegria no carnaval, é obrigado a fazer de tudo na ocasião para ganhar alguns trocados. Basta ver a multidão de vendedores de bebida e comida, de apanhadores de latas que se misturam aos foliões. Muitas vezes, são crianças, até de menos de 10 anos de idade. Tenho visto esse povo com muita tristeza. Não é raro que encontre pessoas tentando dançar enquanto carregam um isopor cheio de latinhas de cerveja na cabeça. Isso me dá muita vergonha.
Celso Furtado (1920-2004) – ele próprio um exemplo de sobriedade e ascetismo ou, como diz Tania Bacelar, de comportamento republicano – formulou reflexões importantes a esse respeito (não com o carnaval em mente). Sua preocupação era a concentração de renda, como a exibida pelos próprios governantes nos dias de Momo. Segundo Furtado, “toda economia concentradora de renda tende a impedir a formação de mercado interno”, não deixando que a demanda se expanda e formando excedentes populacionais. Nesse marco, as relações econômicas que se estabelecem “tendem sempre a formas de exploração”. Não é isso o que se quer de um país com perfil digno, com uma cidadania que se estenda a todos. A ocasião do carnaval, que proporciona tanta alegria, não pode ser motivo para que se negue a essência de uma terra que proclama os valor de seus brios, “sentinela indormida e sagrada” que é, defendendo “da pátria os lauréis”.

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