domingo, 16 de maio de 2010

artigo publicado DP, dom. 16.5.2010

EM DEFESA DOS INDÍGENAS E ANTROPÓLOGOS BRASILEIROS
Clóvis Cavalcanti
Economista ecológico e pesquisador social

É comum a publicação de notícias sobre indígenas brasileiros que os retratam como classe parasita ou de invasores das terras que ocupam. Até parece que, em 1500, quem estava aqui há 10.000 anos eram europeus e seus descendentes. Qualquer iniciativa de garantir aos índios, territórios para suas nações é tomada como afronta aos direitos dos brasileiros. Foi assim, por exemplo, no caso da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, com respeito à qual a corte suprema do país reconheceu a precedência da população nativa, de milhares de indivíduos que ali vive há cem séculos (contra quem se batia um grupo de algumas dezenas de pessoas, há menos de meio século na região). Geralmente, os índios são mostrados como seres preguiçosos, oportunistas, a serviço da cobiça internacional. É um estereótipo que volta de instante em instante – e que convence muita gente de que essa é a realidade.
Há duas semanas, grande revista de circulação nacional tratou do assunto, incriminando a classe dos antropólogos brasileiros e falando de uma “Antropologia oportunista”. É que os antropólogos trabalham estreitamente com populações indígenas – e não só no Brasil, mas em toda a parte em que há povos nativos, tribais, não-letrados, pré-modernos. Diante do que a revista em questão publicou, a Comissão de Assuntos Indígenas (CAI), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), através de seu coordenador, o respeitado antropólogo João Pacheco de Oliveira (do Museu Nacional), divulgou enérgica nota de repúdio, com esclarecimentos. Explicando o papel dos antropólogos na questão, a nota salienta que “Dados quantitativos inteiramente equivocados e fantasiosos ... conjugam-se à sistemática deformação da atuação dos antropólogos em processos administrativos e jurídicos relativos à definição de terras indígenas”. Por outro lado, “A imagem que a reportagem tenta criar da política indigenista como uma verdadeira terra de ninguém, ao sabor do arbítrio e das negociatas, é um absurdo completo e tem apenas por finalidade deslegitimar o direito de coletividades anteriormente subaltenizadas e marginalizadas”. Do mesmo modo, “A maneira insultuosa com que são referidas diversas lideranças indígenas e quilombolas, bem como truncadas as suas declarações, também surpreende e causa revolta. Sub-títulos como ‘os novos canibais’, ‘macumbeiros de cocar’, ‘teatrinho na praia’, ‘made in Paraguai’, ‘os carambolas’, explicitam o desprezo e o preconceito com que foram tratadas tais pessoas”.
O uso de linguagem acusatória para desqualificar o trabalho sério dos antropólogos, conforme diz a nota, serve-se “extensamente da chacota, da difamação e do desrespeito”. Por detrás do ataque, o objetivo último seria “enfraquecer os direitos indígenas (em disputas concretas com interesses privados)”. É aqui que faz sentido que “os alvos centrais destes ataques [sejam] os antropólogos, os líderes indígenas e os seus aliados”. Não há dúvida de que tratar os povos nativos brasileiros com desprezo representa uma forma de racismo. Ninguém se conforma que os primitivos habitantes do Brasil contem com um mínimo de privilégios como donos originários da terra. E donos zelosos. Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “As áreas indígenas da Amazônia são as áreas menos desmatadas, são elas que detêm a devastação nas fronteiras do país; e elas são peça essencial no processo de regularização ou estabilização jurídica da situação fundiária caótica que é a Amazônia, o paraíso da grilagem, da pistolagem, do tráfico de drogas, do contrabando e do subsídio. A Amazônia tem hoje cerca de 20% de seu território desmatado — nas áreas indígenas, é menos de 1%”. Por isso, defender os direitos dos povos originários do Brasil é combater o racismo anti-nativos. É ser pelo Brasil como patrimônio que os índios nos legaram.

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