domingo, 4 de abril de 2010
artigo publicado no DP, 4 abril 2010
A dessacralização da Semana Santa
Clóvis Cavalcanti // Economista
economista ecológico e pesquisador social
Sou proprietário de bela área de terra no brejo de altitude de Gravatá. Porém, 1999 foi o último ano em que lá passei a Semana Santa. Evito fazê-lo desde então. A razão: incomoda-me, como a muita gente mais (particularmente, pessoas simples com que converso no município), a transformação de um momento de luto da Cristandade em ocasião de festas alegres ali patrocinadas em boa medida pelo setor público. Não é só a realização de shows e espetáculos musicais barulhentos que espanta (isso também ocorre alhures). O comportamento de grande número das pessoas que vão a tais eventos revela falta de respeito a sentimentos cristãos e uma ausência assustadora de civilidade. Já tenho dito aqui que nossa sociedade é incivil; mas não é preciso que se exagere na incivilidade. Além do barulho, dos sons de baixo valor musical, das bebedeiras abusivas, é comum presenciar homens feitos urinando em espaços públicos nos locais próximos a shows e festas, com exibição da genitália. É como se, comparando-se, fosse a coisa mais natural do mundo um aluno levantar-se em sala de aula na UFPE e, com a bexiga cheia, aliviá-la ali mesmo, no chão ou usando uma garrafa PET para ser mais higiênico. Alguém aplaudiria isso, ou, para dar outro exemplo inadmissível, que um vizinho seu de apartamento urinasse no elevador lotado?
Alguma coisa está profundamente errada, sem dúvida, numa sociedade que teima em se dizer cristã, quando se celebra a Paixão de Jesus apelando para comportamentos deploráveis. Não é preciso chegar a exageros de luto como os de comemorações cheias de misticismo de pessoas que se flagelam até ficarem cobertas de sangue - nas Filipinas, no México, no Médio São Francisco (Bahia). Porém, quando se pensa na flagelação mostrada com terrível realismo no filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004), se isso tem algum significado, não é, obviamente, para se aplaudir o que acontece em Gravatá (e outras cidades do país) neste período. Córdoba, na Espanha, aonde fui na Páscoa de 2009, mostra como se pode combinar cultura com devoção religiosa, realizando belas cerimônias cobertas de significado e respeito aos valores da população cristã. Gravatá poderia oferecer alguma coisa condizente com os sentimentos da época. É verdade que, neste ano, haverá ali um concerto de música erudita - mas só. Em 2008, passei a Semana Santa em Cambridge, Inglaterra. O que pude presenciar nesse centro universitário, onde convivem cristãos, hinduístas, budistas, judeus, muçulmanos, ateus, foi uma programação de eventos que oferecia em quase todas as capelas da universidade (cada um dos 31 colleges tem a sua, a do King's de gótico belíssimo) peças sacras dos mais renomados compositores. Com meu filho Tiago, professor de Cambridge, e com minha mulher, Vera, assisti na Quarta-Feira de Trevas à Paixão de S. João, de J.S. Bach, no Jesus College. Simultaneamente, do mesmo compositor, se exibia no King's College a Paixão de S. Mateus. Espetáculos análogos ocorriam ao mesmo tempo em outros espaços (com lotação completa). Nada de música-lixo ou mesmo rock em todos os dias da semana.
Os britânicos não são nenhum paradigma de povo piedoso. Ninguém do país - família real, cientistas, políticos, artistas - se empenha, por exemplo, em demonstrar "fidelidade conjugal". O assunto é privado; cada um trata dele como achar mais adequado. Nem por isso na sociedade britânica se fazem exibições que possam ofender valores de qualquer religião; mas se permite liberdade de expressão à crítica religiosa, caso de Salman Rushdie e o Islamismo. Da Grã-Bretanha são os Rolling Stones, Sting, Elton John e mais gente da música pop. Esses artistas silenciam na Semana Santa. Está na hora de Gravatá perceber o equívoco de sua escolha: Semana Santa não pode ser semana de orgia.
Clóvis Cavalcanti // Economista
economista ecológico e pesquisador social
Sou proprietário de bela área de terra no brejo de altitude de Gravatá. Porém, 1999 foi o último ano em que lá passei a Semana Santa. Evito fazê-lo desde então. A razão: incomoda-me, como a muita gente mais (particularmente, pessoas simples com que converso no município), a transformação de um momento de luto da Cristandade em ocasião de festas alegres ali patrocinadas em boa medida pelo setor público. Não é só a realização de shows e espetáculos musicais barulhentos que espanta (isso também ocorre alhures). O comportamento de grande número das pessoas que vão a tais eventos revela falta de respeito a sentimentos cristãos e uma ausência assustadora de civilidade. Já tenho dito aqui que nossa sociedade é incivil; mas não é preciso que se exagere na incivilidade. Além do barulho, dos sons de baixo valor musical, das bebedeiras abusivas, é comum presenciar homens feitos urinando em espaços públicos nos locais próximos a shows e festas, com exibição da genitália. É como se, comparando-se, fosse a coisa mais natural do mundo um aluno levantar-se em sala de aula na UFPE e, com a bexiga cheia, aliviá-la ali mesmo, no chão ou usando uma garrafa PET para ser mais higiênico. Alguém aplaudiria isso, ou, para dar outro exemplo inadmissível, que um vizinho seu de apartamento urinasse no elevador lotado?
Alguma coisa está profundamente errada, sem dúvida, numa sociedade que teima em se dizer cristã, quando se celebra a Paixão de Jesus apelando para comportamentos deploráveis. Não é preciso chegar a exageros de luto como os de comemorações cheias de misticismo de pessoas que se flagelam até ficarem cobertas de sangue - nas Filipinas, no México, no Médio São Francisco (Bahia). Porém, quando se pensa na flagelação mostrada com terrível realismo no filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004), se isso tem algum significado, não é, obviamente, para se aplaudir o que acontece em Gravatá (e outras cidades do país) neste período. Córdoba, na Espanha, aonde fui na Páscoa de 2009, mostra como se pode combinar cultura com devoção religiosa, realizando belas cerimônias cobertas de significado e respeito aos valores da população cristã. Gravatá poderia oferecer alguma coisa condizente com os sentimentos da época. É verdade que, neste ano, haverá ali um concerto de música erudita - mas só. Em 2008, passei a Semana Santa em Cambridge, Inglaterra. O que pude presenciar nesse centro universitário, onde convivem cristãos, hinduístas, budistas, judeus, muçulmanos, ateus, foi uma programação de eventos que oferecia em quase todas as capelas da universidade (cada um dos 31 colleges tem a sua, a do King's de gótico belíssimo) peças sacras dos mais renomados compositores. Com meu filho Tiago, professor de Cambridge, e com minha mulher, Vera, assisti na Quarta-Feira de Trevas à Paixão de S. João, de J.S. Bach, no Jesus College. Simultaneamente, do mesmo compositor, se exibia no King's College a Paixão de S. Mateus. Espetáculos análogos ocorriam ao mesmo tempo em outros espaços (com lotação completa). Nada de música-lixo ou mesmo rock em todos os dias da semana.
Os britânicos não são nenhum paradigma de povo piedoso. Ninguém do país - família real, cientistas, políticos, artistas - se empenha, por exemplo, em demonstrar "fidelidade conjugal". O assunto é privado; cada um trata dele como achar mais adequado. Nem por isso na sociedade britânica se fazem exibições que possam ofender valores de qualquer religião; mas se permite liberdade de expressão à crítica religiosa, caso de Salman Rushdie e o Islamismo. Da Grã-Bretanha são os Rolling Stones, Sting, Elton John e mais gente da música pop. Esses artistas silenciam na Semana Santa. Está na hora de Gravatá perceber o equívoco de sua escolha: Semana Santa não pode ser semana de orgia.
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