domingo, 3 de maio de 2009
DP, 3 maio de 2009
FALTA DE ESPÍRITO REPUBLICANO
Clóvis Cavalcanti
Economista e pesquisador social
Se precisássemos de demonstração clara do baixo espírito republicano da sociedade brasileira, o episódio recente das viagens internacionais dos nossos congressistas serviria para dirimir qualquer dúvida. O que é que se entende por conduta republicana de quem ocupa cargos públicos no contexto de uma sociedade civilizada? Basicamente, agir no interesse da coletividade, na defesa do patrimônio comum, sem a captura privada da coisa pública (ou res publica, em latim). Sobre isso, é interessante assinalar o lema que se adota hoje na França, um país que sempre deu exemplos nessa questão: “liberdade, igualdade, fraternidade, republicanismo, laicismo”. Viajar com dinheiro do contribuinte, sem qualquer relação com o serviço prestado à população pelo detentor de cargo público, caracteriza uma situação de “captura privada” do que pertence a todos. Foi isso, sem sombra de dúvida, o que aconteceu quando, usando saldos de viagens não feitas, parlamentares de diversos partidos financiaram viagens suas ou de pessoas que lhes são próximas.
O que diria o CNPq de pesquisador que tivesse viagem patrocinada a um congresso científico e levasse junto, com dinheiro repassado pelo órgão e que porventura apresentasse saldo, mulher, namorada, amante, filho, genro, enteado, sogra? Começa que os cientistas normalmente apresentam conduta republicana. Mas se agissem pelo exemplo dos deputados, imediatamente sua prestação de contas seria impugnada pelo CNPq. Na verdade, é freqüente que pesquisadores tirem dinheiro do próprio bolso para financiar despesas de participação em congressos científicos. E olhe que não ir a eventos da ciência é ponto negativo para a carreira de um pesquisador, o qual deve falar o idioma – normalmente, inglês, mas que pode ser francês, espanhol, alemão – do evento. Sabe-se que não é comum entre deputados e senadores brasileiros o domínio de vários idiomas (às vezes, dominam mal o próprio idioma pátrio). Daí parecer ainda mais absurdo que tanta gente tenha viajado para – olhem os destinos – Paris, Nova York, Madri, Roma, Miami, Frankfurt. Em março de 2003, sentado ao meu lado na abertura de um seminário científico internacional na Fundação Joaquim Nabuco, o então prefeito João Paulo, do Recife (de quem não tenho aproximação), me disse que só iria viajar daí em diante a países que falassem português (esse intento, como se sabe, não foi levado a efeito). Sua justificativa: não se aproveita bem uma viagem quando não se conhece a língua do país visitado (ou outra que possa ser usada). Como já visitei 60 países, sei que o prefeito estava certo. No meu caso, sempre pude me comunicar em algum idioma do lugar onde estive. No Saara, francês e inglês; em Sri Lanka e na Malásia, inglês; na Suécia, inglês, etc. Os congressistas não têm obrigação de falar outras línguas, mas se querem tanto viajar para o exterior com dinheiro público, é necessário, ao menos, que consigam comunicar-se adequadamente aonde forem.
Essa ressalva, evidentemente, não serve de razão, sequer do modo mais remoto, para o caso de familiares e amigos que os representantes eleitos da população mandassem para fora do país com fundos do Tesouro nacional. Tentar defender o desvio de conduta observado como se ele não fosse nada demais só contribui para a constatação da pobreza de republicanismo que existe na sociedade brasileira. Pior é ver que esse atributo se estende como um vírus potente na camada que mais deveria servir de paradigma do zelo, da austeridade, com que se precisa cuidar do patrimônio público no país. Na verdade, vivemos numa nação em que se visa à concentração da riqueza sem qualquer pudor. Em artigo que li há pouco sobre os extremos de riqueza no mundo, uma observação me chamou a atenção: “Você não vai querer sair por aí numa Mercedes reluzente se seu vizinho está sofrendo”. Neste ponto, evidentemente, a questão recai no campo da ética, o qual, também, tal como o republicanismo, está em falta no Brasil.
Clóvis Cavalcanti
Economista e pesquisador social
Se precisássemos de demonstração clara do baixo espírito republicano da sociedade brasileira, o episódio recente das viagens internacionais dos nossos congressistas serviria para dirimir qualquer dúvida. O que é que se entende por conduta republicana de quem ocupa cargos públicos no contexto de uma sociedade civilizada? Basicamente, agir no interesse da coletividade, na defesa do patrimônio comum, sem a captura privada da coisa pública (ou res publica, em latim). Sobre isso, é interessante assinalar o lema que se adota hoje na França, um país que sempre deu exemplos nessa questão: “liberdade, igualdade, fraternidade, republicanismo, laicismo”. Viajar com dinheiro do contribuinte, sem qualquer relação com o serviço prestado à população pelo detentor de cargo público, caracteriza uma situação de “captura privada” do que pertence a todos. Foi isso, sem sombra de dúvida, o que aconteceu quando, usando saldos de viagens não feitas, parlamentares de diversos partidos financiaram viagens suas ou de pessoas que lhes são próximas.
O que diria o CNPq de pesquisador que tivesse viagem patrocinada a um congresso científico e levasse junto, com dinheiro repassado pelo órgão e que porventura apresentasse saldo, mulher, namorada, amante, filho, genro, enteado, sogra? Começa que os cientistas normalmente apresentam conduta republicana. Mas se agissem pelo exemplo dos deputados, imediatamente sua prestação de contas seria impugnada pelo CNPq. Na verdade, é freqüente que pesquisadores tirem dinheiro do próprio bolso para financiar despesas de participação em congressos científicos. E olhe que não ir a eventos da ciência é ponto negativo para a carreira de um pesquisador, o qual deve falar o idioma – normalmente, inglês, mas que pode ser francês, espanhol, alemão – do evento. Sabe-se que não é comum entre deputados e senadores brasileiros o domínio de vários idiomas (às vezes, dominam mal o próprio idioma pátrio). Daí parecer ainda mais absurdo que tanta gente tenha viajado para – olhem os destinos – Paris, Nova York, Madri, Roma, Miami, Frankfurt. Em março de 2003, sentado ao meu lado na abertura de um seminário científico internacional na Fundação Joaquim Nabuco, o então prefeito João Paulo, do Recife (de quem não tenho aproximação), me disse que só iria viajar daí em diante a países que falassem português (esse intento, como se sabe, não foi levado a efeito). Sua justificativa: não se aproveita bem uma viagem quando não se conhece a língua do país visitado (ou outra que possa ser usada). Como já visitei 60 países, sei que o prefeito estava certo. No meu caso, sempre pude me comunicar em algum idioma do lugar onde estive. No Saara, francês e inglês; em Sri Lanka e na Malásia, inglês; na Suécia, inglês, etc. Os congressistas não têm obrigação de falar outras línguas, mas se querem tanto viajar para o exterior com dinheiro público, é necessário, ao menos, que consigam comunicar-se adequadamente aonde forem.
Essa ressalva, evidentemente, não serve de razão, sequer do modo mais remoto, para o caso de familiares e amigos que os representantes eleitos da população mandassem para fora do país com fundos do Tesouro nacional. Tentar defender o desvio de conduta observado como se ele não fosse nada demais só contribui para a constatação da pobreza de republicanismo que existe na sociedade brasileira. Pior é ver que esse atributo se estende como um vírus potente na camada que mais deveria servir de paradigma do zelo, da austeridade, com que se precisa cuidar do patrimônio público no país. Na verdade, vivemos numa nação em que se visa à concentração da riqueza sem qualquer pudor. Em artigo que li há pouco sobre os extremos de riqueza no mundo, uma observação me chamou a atenção: “Você não vai querer sair por aí numa Mercedes reluzente se seu vizinho está sofrendo”. Neste ponto, evidentemente, a questão recai no campo da ética, o qual, também, tal como o republicanismo, está em falta no Brasil.
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